como deixar o neo-realismo, quando?
1955
como deixar o neo-realismo, quando?
1955
Quando em 2020 se expôs pela primeira vez a pintura Marcha de 1952, uma grande segunda Marcha clandestina que retomava o título e o sentido político da obra de 1946, entre a alegoria e os retratos dos camaradas, foi possível identificar um novo período neo-realista na obra de Júlio Pomar, marcado por uma renovada militância. Esse tempo vai de 1951 a 1954 e foi ostensivamente depreciado, mais tarde (1990*), por Mário Dionísio: "os retratos quase académicos", "a velha história das boas intenções que nunca bastam" - tinha sido antes o crítico mais próximo do artista, mas não escondeu os desentendimentos partidários. Fora ignorado ou desconsiderado por outros comentadores, nomeadamente por Ernesto de Sousa, mais atento ao posterior "encontro com as técnicas da abstracção" - falava em "quase simples registo", "regresso a uma humildade descritiva" (1960**). E também foi sendo esquecido pelo próprio artista, ditando a quase total ausência das futuras antologias.
Ver os artigos anteriores "1951-1954. Júlio Pomar e a politização da arte (parte II). O 2º tempo miltante, A Guerra Fria" ( politizacao-da-arte ) e "1951-52 Júlio Pomar Gravuras: a campanha pela paz" ( gravuras de campanha ) . E o capítulo "Marcha 1952. Rever o Neo-realismo", em 2023, A.Pomar.
O Gadanheiro foi exposto nas mostras da 9ª`Missão Estética, em Évora e na SNBA em 1945 (título Gadanha) e não na 1ª EGAP; e tb na 1ª Exposição da Primavera, Porto, Ateneu Comercial.Foto atribuida a Eduardo Nogueira (1898-1969), com estúdio em Évora CME: https://arqm.cm-evora.pt/
Dordio Gomes, que chefiou a Missão, escreve no Relatório apresentado à Academia Nacional de Belas Artes, que organizava as missões anuais (1937-1963): «(...) só Júlio Pomar se não interessou pela cidade, inteiramente absorvido pelo homem e pelo drama, luta titânica com a vida e a natureza rebelde (...) É este homem sofredor e heróico, movendo-se no seu cenário próprio, que surge em todos os seus trabalhos e constitui uma outra face do Alentejo, que era preciso ir procurar fora de muros». In Joana Baião, Cem anos depois: a Academia Nacional de Belas-Artes. Contextos, protagonistas, ações (1932-1974), 2016. - https://www.academia.edu/29957248/
Dos trabalhos de Júlio Pomar realizados em Évora conhecem-se, além do Gadanheiro; Descanso (antes Ceifeiro – doado por Castro Rodrigues ao Museu do Neo-Realismo); Retrato de Camponês (Évora), col. Fundação Júlio Pomar, agora exposto; e um fragmento de Semeador (col. particular), obra destruída pelo artista, enquanto Sábado desapareceu acidentalmente – nos dois casos conservam-se as respectivas fotografias. Mais um fresco transportável, Ceifa, deixado nas arrecadações do Liceu e nunca foi encontrado (Cat. Rais. vol I Nºs 24 a 29.
Pomar participou na 9ª Missão quando apenas tinha iniciado o 2º ano da Escola do Porto, certamente em substituição de Fernando Lanhas, a quem já ficara a dever a entrega da direcção da página ARTE.
Mário Dionísio escreveu na Seara Nova (08-12-1945):
«A posição ideológica perante a realidade, o consciente aproveitamento da lição de alguns dos maiores pintores de hoje, nomeadamente dos mexicanos (seria possível sem Orozco os arrojados planos do Semeador e do Gadanheiro?), as várias experiências de cor para que se atira (repare-se no céu, no chapéu, no lenço do Gadanheiro, ...) atiram-no para o caminho das amplas tentativas para onde a mansa pintura portuguesa precisa de ser sacudida». E não falava aí de realismo.
Col. MoMA. (Note-se que então e em geral as obras se conheciam a preto e branco)
Armando Gusmão (Democracia do Sul, Évora, 09-10-1945):
«Mas entre todos os jovens pintores, o mais arrojado pela concepção é Júlio Pomar. Na pintura e no desenho deste artista de 19 anos, há intenção e vigor quase brutal de expressão. Transforma os tipos em forças. Se a sua pintura é boa já, e lhe vaticina largo futuro, os seus desenhos são do melhor que temos visto. É bom lembrar que Pomar fêz o primeiro ano do curso; os outros eram finalistas. Um quadro deste moço agitou a opinião dos visitantes: o Gadanhelro. É de facto o melhor, como pintura, num moço a quem ainda se não ensinou a pintar; o Semeador, no entanto, pode vir a ser superior, quando vier a ser terminado. Houve quem dissesse que o Gadanheiro de Pomar não era alentejano; e creio que na afirmação ia certa censura. Eu confirmo a opinião; confirmo... mas esclareço. Pomar deturpa ou deforma as figuras no sentido da magestade do conceito; mas não do conceito indivíduo, sim do conceito espécie, porque na sua arte não se traduz nem o indivíduo a nem o indivíduo b, mas o tipo potencial comum a todos os indivíduos duma mesma espécie. Que importa não ser o Gadanheiro de cá, nem de lá? Que importa não ser o Gadanhelro alentejano, nem beirão, nem minhoto, se essa não foi a intenção do seu autor?! O quadro de Pomar não representa um indivíduo: representa uma ideia, Pomar faz da sua arte uma arma de combate. Na sua arte não se dirige ao público que o vê nas exposições; dirige-se àqueles que representa, para lhes dizer: este é o que te quero.»
Em artigo anterior: (07-10-1945): "Arte é deformação e não servilismo ao formal da Natureza. A arte existe na Natureza, em sugestão e potência; para criar obra de arte é necessário dissociar da Natureza os elementos artísticos para os associar de novo. A Natureza carece, pois, de interpretação. Dá-la, tal qual ela se nos apresenta, não é necessário: temo-la diariamente sob os nossos olhos. Registá-la fotograficamente, não interessa. Mas observá-la, senti-la e transformá-la, para dela nos dar os seus múltiplos pormenores de sugestão, aí reside a função do artista. Transformá-la, sim! porque realizar, em arte, é transformar».
No jornal A Defesa, orgão da Igreja (06-09-46):
«...dois nomes que a ordem alfabética juntou mas a arte diametralmente separou. Resende é todo amoroso em luminosidade e em caracteres (...) Júlio Pomar é medonho nos seus óleos Sábado, Gadanha, Ceifeiro [depois chamado Descanso] e Semeador, lembrando as mãos crispadas e formidáveis do primeiro luvas de ‘boxeur’ e os rostos inspirações de Gorki. As figuras de Júlio Pomar reflectem grande anseio social e revolucionário, bebido mais na literatura estrangeira do que no convívio com o bom homem da terra alentejana. E no entanto estes dois artistas de mérito são da EBAP»
#
Gadanheiro é o mais conseguido de uma série de quatro óleos, quase todos de grande formato, portadores de uma ambição pictural e política desmesuradamente heróica para a experiência do pintor. A concretização do projecto revolucionário sustenta-se aí numa firme estrutura compositiva diagonal e numa construção de profundidades espaciais, na paisagem estudada com Thomas H. Benton, que ampliam ameaçadoramente o movimento da figura do camponês brandindo a foice como uma alavanca que mudaria o mundo.
Pomar dirá mais tarde (*) que «acontece aqui pela primeira vez, ou pelo menos de uma forma mais nítida, qualquer coisa que vais ser uma constante na minha pintura, e que é uma relação entre o que se passa dentro da tela e os limites que o quadro tem. (…) há aqui um movimento, um tentativa de expansão, uma vontade de explosão, um choque com o limite, com os quatro bordos do quadro. Ou seja, o quadro é aqui duplamente investido pelo corpo em movimento: como acto e como imagem.» (A.Pomar, 2023, pp. 29-30) *em In Alexandre Melo, Júlio Pomar, suplemento de Arte Ibérica, Lisboa, nº 14, Maio 1998.
Michel Waldberg, Pomar, Ed. La Différence 1990, pág. 22:
"A mais 'demonstrativa' das telas antigas de Pomar é certamente o Gadanheiro (Ceifeiro). É uma figura 'banal' do mundo camponês, que a hipérbole transforma em símbolo, em arquétipo, que a hipertrofia (da foice, da perna, da mão, da manga, do pescoço, do queixo, do nariz, do chapéu) torna exemplar e ameaçadora. Que vai ceifar o ceifeiro? Quem o ceifeiro vai ceifar? De facto, para além, ou, talvez, aquém desta simbólica social (onde o fraco incarna a força, a desmesura) encontram-se já colocados todos os problemas que Pomar enquanto pintor, enfrenta: a relação da cor e do desenho, da cor e da luz, do fixo e do movente, da parte e do todo; a autonomia e a interdependência das formas; e mais concretamente ainda 'as mil e uma formas de utilizar a brocha, que aqui pica e ali raspa, palavras de quem surpreendeu Pissarro e Cézanne diante do motivo' *). Logo a lâmina da foice reclama a sua autonomia enquanto forma (pura forma, arrancada ao cabo pelo turbilhão do feno); logo aí ela escapa ao conhecido para se constituir à revelia (au su, a l'insu) do pintor em puro objecto de pintura. (...) Erigindo o ceifeiro como justiceiro, como corrector de males, Pomar erige-o também enquanto forma, na sua verticalidade; confere-lhe uma dupla rectidão. Mas Pomar, enquanto pintor, interessa-se menos pela injustiça e a sua reparação (que lhe importam como homem) do que pelo próprio processo da erecção.” (* J.P., Discours sur la cécité du peintre, La Différence 1985, pag 181 - traduções minhas.
![]() |
| Island Hay, 1945, Lithograph |
MUNCH, Ceifeiro, The Haymaker ,1916
#
Com a abertura do Museu do Chiado que veio substituir o velho MNAC em 1994, a sua primeira directora, Raquel Henriques da Silva, conseguiu os fundos necessários para adquirir o Gadanheiro e também o O2–44, 1943–1944, de Fernando Lanhas. A colecção contava apenas com Menina com um Galo Morto, de 1948, adquirido por Diogo de Macedo em 1952 durante a exposição na Galeria de Março. O quadro era então da colecção de Manuel de Brito, que por cumplicidade com o artista e responsabilidade cultural, acedeu a vendê-lo.
"Viver a paisagem"
Mais do que um exercício de observação e posse, uma experiência vital da natureza
Porta 33, Funchal
Expresso Cartaz 8 Dezembro 2000, pág. 19
JOÃO Queiroz desenha e pinta paisagens, mas tem uma grande resistência a usar pacificamente essa designação, isto é, a admitir a tradução daquilo que faz por uma palavra gasta e, em especial, a aceitar os hábitos ou códigos da representação-dominação da natureza que com ela se expressam. A sua mais recente exposição acontece no Funchal e todos os trabalhos expostos têm por origem, mais ou menos evidente, uma experiência de relação directa (visual/vital) com o ambiente natural do arquipélago. Qual é, porém, a diferença, a distância ou o trânsito que se estabelece entre a paisagem física que se visita ou em que se vive e o objecto (de arte) que se classifica como paisagem? Os trabalhos de João Queiroz somam à sua áspera sedução visual a capacidade de pôr questões, o que se deverá entender como um grau superior de eficácia.
Muitos dos seus desenhos, claramente realizados diante do motivo pela imediaticidade do traço que transcreve no papel a exploração do visível, estão expressamente localizados em Porto Santo e na Madeira, embora se exponham «sem título», contrariando uma cómoda identificação topográfica, que o observador informado poderá tentar, em vários casos, com maior ou menor facilidade. Pela diversidade da sua linguagem gráfica, eles recusam a aprendizagem mecânica dos gestos, a procura de um automatismo em que o olhar e a mão se associem num saber fazer ou na afirmação da «habilidade», para se reconhecerem talvez como o traço de um sismógrafo, como uma experiência sempre recomeçada, uma incerteza activa sobre o que é o desenho e também uma constatação permanente da alteridade do objecto visto e questionado.
Outros trabalhos (as pinturas, os desenhos de maior formato), que já foram realizados em Lisboa, resultam da reelaboração de informações memorizadas - de sensações recordadas e revividas -, ou reavivadas através da observação de esquiços, desenhos prévios ou mesmo fotografias. No entanto, se existe então uma recomposição dos elementos da paisagem, ela mantém ou recupera, através da concentração intencional sobre a emergência liminar das formas (antes da identificação dos objectos ou da sua categorização conceptual), a vibração sensorial diante do ambiente natural, sem se subordinar a um qualquer projecto de síntese descritiva ou de codificação formal.
O facto de se tratar da paisagem da Madeira e de aí se localizar a exposição confere urna intensidade particular à relação do espectador com o trabalho de João Queiroz, não só por o ambiente natural (ainda que degradado em muitas zonas pela desenfreada especulação turística) ter uma presença mais radical e emblemática no arquipélago do que noutros lugares, mas também porque a representação convencional da paisagem continua aí a alimentar uma produção tradicionalista e de largo consumo. O confronto com esta será certamente produtivo e permitirá entender como as paisagens que se expõem na Porta 33 assumem a persistência de um género (como uma necessidade ou um gosto que nenhum «progresso» conseguiu inviabilizar), ao mesmo tempo que o renovam mediante a sua problematização e a procura de diferentes comportamentos face à natureza, à arte e à vida.
Entretanto, deve referir-se a intensa visibilidade que a produção paisagística de João Queiroz tem tido nos últimos dois anos. Para além das mostras individuais, destacaram-se as participações nas colectivas «Paisagens no Singular» e «O Génio do Olhar, Desenho como Disciplina», duas produções itinerantes do IAC dirigidas respectivamente por Miguel Wandschneider e Nuno Faria e por Manuel Castro Caldas. Actualmente, é um dos artistas nomeados para o Prémio EDP de Desenho, que se apresenta no Palácio da Ajuda. (Até 3 de Fevereiro de 2001)
"A observação activa"
JOÃO QUEIROZ
Centro de Artes, Caldas da Rainha
EXPRESSO Cartaz, de 04.09.1999
"A experiência da natureza"
Prática e interrogação da pintura de paisagem
«Pintura» Centro de Arte Moderna (de 13 Abril a 30 Setembro 2006)
EXPRESSO Actual de 17-06-2006
A paisagem teve uma importância fulcral na pintura do século XIX, em duas direcções em parte coincidentes: por um lado, a exploração sistemática do mundo, associando o inventário dos lugares, a comunhão romântica com a natureza e o exotismo das viagens; por outro, o trânsito da observação do natural e da pintura realista de ar livre, enquanto estudo apaixonado da natureza, à ambição da «pintura pura», que se irá entender como projecto analítico ou sistema autónomo e auto-referencial. No seguinte século não houve linhas de continuidade reconhecíveis como evolução de um género, mas o corte cronológico não tem a arbitrariedade do calendário, porque «fauves», expressionistas e cubistas continuavam a reinventar a paisagem. O espectáculo das trincheiras da Grande Guerra, essas outras paisagens de morte radicalmente inéditas, terá tido retrospectivamente uma decisiva influência no que se chamou crise da representação (com outras referências, o historiador Yve-Alain Blois dirá que «o luto tem sido a actividade da pintura ao longo do século»).
A alternativa aberta pelas abstracções viria a permitir novos recomeços. Nas últimas décadas do século XX, dois artistas que se associam à geração da arte pop, apesar da sua independência face aos estilos, fizerem importantes contribuições para a história da paisagem: Wayne Thibaud, desde os anos 70, com vistas de São Francisco (paisagens urbanas, «cityscapes») e do delta do rio Sacramento; David Hockney, desde os anos 80, mas em especial no final dos 90, com as estradas do seu Yorkshire natal e os panoramas do Grand Canyon. Em ambos os pintores, as liberdades com as convenções perspécticas e a visão em movimento proporcionada pelo automóvel transformaram-se em poderosas inovações.
Com a recente viragem de século e a recuperação da pintura como medium outra vez contemporâneo, o interesse pela paisagem voltou a estar na moda. Em geral, exploram-se mediações fotográficas com uma intencional arbitrariedade de efeitos pictóricos e ilusionistas, estratégia que se legitimaria num suposto paradigma estabelecido por Gerhard Richter. Entre nós, a exposição «Paisagens no Singular», em 1999 <ver em arquivo>, procurou adaptar discursos sem abdicar das fórmulas gastas («a concepção da arte como representação da realidade foi definitivamente superada», dizia-se).
João Queiroz era a presença inovadora dessa mostra colectiva e tem continuado a dedicar-se ao desenho e à pintura da paisagem natural com uma maneira própria de problematizar, na sua obra e também através de breves textos e de entrevistas, as condições de possibilidade e os meios dessa forma particular de relação com a natureza. Dessa atitude reflexiva que pode decorrer da formação em filosofia faz parte, como um aparente paradoxo, o sublinhar da importância do que na atenção prestada à natureza e na evocação ou transcrição dessa experiência, que é também corporal para além de ser visual, resiste à palavra e à compreensão conceptual.
Do seu percurso está ausente o inventário ou a descrição de lugares, que não são nunca referenciados, mesmo se pudemos saber que determinada série teve origem numa estada na Madeira. Suspeitando da ambição de representar como sendo uma «tentativa de domínio», tratar-se-á de tornar visível uma experiência sensorial e emocional de imersão na natureza, partindo da identificação com esta para algo de transcendente ou desconhecido (falou-de de exercício espiritual, de «vislumbres de transcendência»). Assim, Queiroz parece interrogar a distância que vai do acto «puro» de ver (de ver o mundo, ou a natureza, suspendendo o que deles se sabe) ao gesto da mão, à aparição da forma no desenho e depois na pintura, na sua dimensão aparentemente mais física e menos programada, que se realiza também nas condições de aparente espontaneidade gestual da pincelada sobre a tela. Suspende-se neste exercício de passagem do visto ao pintado a interpretação do objecto, e logo a responsabilidade de descrever ou representar (não distinguimos perto ou longe, árvore ou sombra, nuvens ou rochedos), tal como se desejou suster logo na observação do mundo a análise e a classificação do visível.
Na galeria do CAM mostram-se seis telas de grandes dimensões que se reconhecem como pinturas de paisagem - mas detém-se esta identidade no limiar do reconhecimento, como janelas abertas para algo de indizível. Nos 190 x 250 cm do seu formato, a horizontalidade convencional interrompe-se no corte abrupto de uma secção que torna mais notória a indeterminação de qualquer itinerário espacial, sem solo nem linhas de horizonte, ao mesmo tempo que o irrealismo da cor sublinha a dificuldade de nomear volumes ou objectos. O que não se deixa descrever, mas não aceita a ideia da abstracção, nem conduz aqui a uma situação de indiferença da imagem, propõe-se reactivar a intensidade emocional da pintura como relação com o mundo.
2003
João Queiroz, Galeria Lisboa 20
Expresso 18-04-2003
A nova incursão de J.Q. pela pintura de paisagem é um exercício de alto risco, acolhido como um trabalho polémico. É bom que assim seja.
Desenhos anteriores realizados diante do motivo ensaiaram a experiência de uma relação corporal com a paisagem, mais funda do que uma transcrição mimética do visto, ao pensar a específica fisicalidade do olhar, da mão e do material; outras pinturas, apoiadas em notações desenhadas ou na memória, procuraram antes sustentar-se e suster-se sobre a condição própria da aparição da forma, assegurando uma qualquer referencialidade reconhecível ou verosímil, mesmo que resultante de uma conjunção de momentos plásticos exercitados sobre a tela. Agora, um outro modo de pensar a representação (a sua crise e possibilidade) é investido numa maior desrealização da paisagem, praticada em simultâneo com a aparência paradoxal de uma precisão mais naturalista.
A relação entre a parte e o todo, por vezes entre a figura (tronco, rocha ou flor) e o fundo, entre a cor natural e «artificial», entre a indefinição do espaço e a legibilidade da sua construção, distanciam a imagem pintada de um sistema de conhecimento da natureza para se afirmar como pintura. A gama cromática antes aberta à extensão de valores estridentes e puros fecha-se agora sobre uma paleta surda de terras e amarelos abstractamente iluminados.
Não se trata de enveredar por uma paisagem imaginária ou irrealista, mas de experimentar mais radicalmente a diferença entre natureza e representação pictural. Distanciada da observação directa, bem como da mediação fotográfica que tem sido o suporte fácil da recuperação do «género», a paisagem é assim muito mais uma questão de pintura, num exercício densamente reflectido (conceptual) que é também aplicadamente trabalhado como disciplina oficinal - conjunção particularmente perturbadora para alguns olhares.
2001
João Queiroz, Sala Jorge Vieira
10/11/2001
Anteriores mostras de desenhos paisagísticos de J.Q. associavam-se a lugares precisos, num exercício disciplinar de observação do natural que se indisciplinava na recusa de um estilo, de um virtuosismo ou saber fazer estabilizado para associar a procura de um sempre renovado acordo entre o olhar e a mão a uma vontade de interrogação especulativa sobre a natureza desse exercício e os seus resultados. Agora, vários dos lugares de viagem são mediados por lições ou estilos de clássicos, à maneira de Rembrandt, de Constable ou de pinturas chinesas, surgindo ao lado dos desenhos à vista outros de imaginação ou «a partir da televisão», ou só apontamentos, incluindo comentários escritos.
É um imenso «Livro de Estudos» que se expõe, mas este parece surgir menos como uma experiência viva, praticada como a abertura (ou reabertura) de um campo de possibilidades sempre a descobrir, do que como a demonstração de uma impossibilidade contemporânea de uma verdade do desenho ou da recusa a aspirar à «Grande Arte» de que fala Manuel Castro Caldas no catálogo.
A dimensão reflexiva separa-se do investimento corporal, que aparecia como essencial ao exercício do desenho, e o resultado talvez se torne mais problemático do que problematizador. (Parque das Nações, até 18)
1999
João Queiroz
Módulo
20-11-99
As paisagens de J.Q. foram sendo notadas ao longo do ano, em diversas mostras individuais e colectivas. Para o autor, que agora apresenta apenas pinturas, essa classificação como paisagens deve ser problematizada, pelo que tem acompanhado as suas obras com alguns textos de reflexão - J.Q. formou-se em filosofia e é professor de pintura e desenho. Ele recusa uma ideia tradicional de representação que se identifica com «um olhar dominador, coisificador, totalizante», o qual pretenderia hierarquizar, nomear e reduzir a «radical alteridade e infinidade que a natureza constitui para nós». Esse terá sido por muito tempo o olhar de uma pintura que interrogava a natureza sem se dissociar da observação científica e que também se foi sempre interrogando a si mesmo, sem se fixar numa qualquer «tradição». A pretensão da exacta transcrição da realidade com que se academizou o naturalismo tardio, já divorciado da ciência e congelando-se em visões sentimentais, foi paralela às explorações do imaginário simbólico e abstracto, com que se condenava não a representação mas sim a própria observação. J.Q. não pretende trabalhar sobre a história da arte, embora a conheça, mas sobre a experiência visual directa da paisagem, diante do motivo, no caso do desenho, ou através da memória, na pintura. É o trânsito entre o ver e o fazer, entre o olho e a mão, que lhe interessa como objecto da sua pintura, situando-se para além da representação ou do sentido das imagens. (Até 25)
#
Sou o que Vejo (colectiva)
Sociedade Nacional de Belas Artes
05-06-99
Não se via há muito o grande salão da SNBA assim utilizado como um qualificado espaço de exposições. O que se aí mostra são trabalhos de alguns dos participantes num 3º Simpósio realizado em Feital-Trancoso, em 97 e 98, dedicado ao desenho e organizado por Maria Lino e o atelier Temos Tempo. É um exercício de deslocalização do trabalho, de comunicação entre artistas e, neste caso, de imersão e observação da paisagem que um simpósio propicia; nessas condições, dinâmicas e imprevistas, a prática de atelier e a produção estabilizada pode abrir-se a outros desafios e descobertas.
João Queiroz, Maria João Salema e Sérgio Taborda, todos eles também docentes no Ar.Co, comprovam as virtualidades da situação - J. Queiroz com os desenhos que sustentam a sua aparição em recentes exposições, centrada na paisagem, redescobrindo a observação e a representação da natureza, em diálogo com citações e comentários escritos, eventualmente defensivos perante os desafios do olhar; M.J. Salema com desenhos a pastel, isolando o motivo como ilha ou bolha na página do papel, diluindo as formas na cor atmosférica; Taborda, com exercícios onde a construção formal é interrogação sobre a luz e o automatismo da mão.
Outros participantes internacionais mostram aguarelas, «frottages» e fotografias. Maria Lino, que expôs em Lisboa em 1968 e se instalou na Alemanha entre 1970 e 97, expõe esculturas e desenhos. Aquelas, usam o tronco de madeira para rudemente configurarem uma presença humana, por vezes sublinhada a cor, estranhamente monumental, abstracta e próxima, ou usam a articulação de tábuas recortadas, em planos cheios e vazios que esboçam situações narrativas,
enquanto outras peças ainda praticam o humor da «assemblage». Os seus desenhos a pincel têm também o corpo como tema, vertido em campos de energia e tensão, em que se sintetiza a forma e o gesto gráfico. (Até 19)
1997
JOÃO QUEIROZ
Liv. Assírio & Alvim
01-03-97
O desenho proposto como problematização do desenho, ou uma prática que se manifesta como inventário de possibilidades e de inevitáveis «échecs», num exercício que não tem outro sentido do que declarar sem sentido uma tradição ou disciplina, emoldurando-se como o seu vestígio. Do gesto compulsivo que marca ou risca, prática obsessiva que já não se considera a si mesmo «expressiva» nem visa o «estilo», ao desenho que se furta a ser exercício de observação (paisagem, no caso), suspendendo o possível «link» entre o olhar e a mão que traça, cumprem-se os itinerários — os gestos de uma aprendizagem esvaziada de qualquer projecto que a si mesmo se procure transcender — de algo que parece querer preservar-se como uma actividade sem razão ou insondável, para assegurar uma primeira (e última) existência processual e, talvez, identitária: a manifestação de uma intimidade que também já não se revela ou constrói como universo privado.
1996
JOÃO QUEIROZ
Boqueirão da Praia da Galé
20-04-96
No velho armazém-galeria de culto, onde os objectos sempre se substituem por ideias ou acções, assegurando pela via de uma radical recusa da recuperação mercantil e da memória museológica uma última verdade da arte como inquetação ou atitude vital, por vezes com assinalável intensidade problematizadora, é agora um desenho que se expõe, mas realizado sobre o chão, irreprodutível e inconservável. «Refluxos feitos pelo pescoço de um pato meio afogado» nomeia literalmente um desenho de limite circular que tira partido das irregularidades do pavimento, como se o gesto repetisse inexplicados rituais da gravação de cavernas, compulsivas necessidades de expressão para sempre não-significantes.
#
JOÃO QUEIROZ, Palmira Suso - 2 Fev.91 (...)
ver "Paisagens plurais" 10 Abril 99
BALTAZAR TORRES, JOÃO QUEIROZ, MICHAEL BIBERSTEIN, ROSA CARVALHO
Quadrado Azul (até 6 de Maio), Módulo (até 28), Pedro Oliveira (até 17) e Canvas (até 14).
Porto