Considerando a prática da gravura, o tema da reprodutibilidade (...o W.
Benjamin andou a tentar entender, e a sua tentativa tem sido demasiado
reproduzida...) distrai com frequência da questão principal: a
consideração da originalidade ou especificidade do modo de criação
da obra. No caso da gravura a obra original é a impressão sobre papel de um
desenho realizado sobre cobre - o que não é o mesmo, quanto à
materialidade do objecto e à sua eficácia visual, que um desenho sobre
papel ou que a reprodução tipográfica ou fotográfica ou fotomecânica.
Os
processos de criação/gravação e de impressão de uma matriz são muito
diferentes entre si. Acontece que algumas obras gráficas (estampas) não
chegam a ser objecto de edição, não são reproduzidas/ /multiplicadas,
conhecendo-se apenas um ou dois ou pouco mais exemplares impressos (em
geral não numerados).
Uma estampa gravada pode não ser efectivamente um
múltiplo (será uma promessa ou ensaio de um múltiplo, um múltiplo virtual) se não é um exemplar de uma série editada - que pode ser em
número de 5, 30, 50, 75, 100, 150 ou 200 provas (ou pode também não ser
numerada). Deve poder dizer-se que quanto à gravura (nas suas diferentes
modalidades) o importante é o resultado impresso do desenho, da incisão, da
reacção dos ácidos, etc, sobre a matriz (metal, madeira, pedra); a
edição/multiplicação vem por acréscimo, se vier.
Gnu I e II, 1957?. Buril ( chapas 9x14 cm e 9x16 cm, papéis de dimensões variadas). Provas não numeradas - tiragens desconhecidas. Imagens de trabalho para um catálogo da obra gráfica tendencialmente completo.
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Mais dois bichos gravados, neste caso usando-se o linóleo para recortar a
figura e gravar em relevo. São obras de 1952 e são os mais antigos
exemplares do bestiário gravado de Júlio Pomar - Elefante: 14,5 x 17 cm
(mancha); Javali: 13 x 20 cm (idem), sobre papéis de diferentes
qualidades e dimensões. Ignora-se quantos exemplares foram produzidos,
conhecendo-se apenas 2 e 3 provas não numeradas, respectivamente.
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Terceiro e último exercício de reflexão sobre o que é a gravura,
enquanto disciplina artística e processo de criação de obras originais,
que podem - ou não - ser multiplicadas (impressas) e dar assim origem a
múltiplos, mas sem perderem por isso a condição de originais (provas
originais assinadas e numeradas, dentro de um limite fixado). Um original e um múltiplo simultaneamente. Como sucede com um prova fotográfica.
Deve
considerar-se que essas provas - impressas em prensas manuais de gravura
(não fotocopiadas, ou impressas em tipografia ou offset) - são
ao mesmo tempo originais (cada prova gravada é um original, se cumprir
as formalidades legais que limitam o nº de cópias editadas) e múltiplos
editados.
No caso junto, mais uma vez pondo em cena o bestiário do
artista, temos 1º um Burro, realizado em água-forte, em 1957 (chapa
20x26 cm), de que se desconhece o nº de provas impressas - sabe-se que
uma foi exposta em 1961 na SNBA numa exposição organizada pelo grande
coleccionador e divulgador Fernando Rau: "Gravura. Paisagistas e
Animalistas do Século XX" (com catálogo), que incluiu insignes artistas
internacionais e alguns portugueses; a Fundação adquiriu há poucos anos
uma prova não numerada em leilão (seria a mesma?), e o autor supõe que
apenas teria impresso um exemplar. No 2º caso temos a estampa Peru, água
forte / técnica mista, também de 1957, de 9 x 9,5 cm (chapa) e 20,2 x
17,4 cm (papel), que foi impressa em 450 exemplares (!!) pela
Cooperativa Gravura para ser oferecida a todos os seus sócios.
Temos
então um exemplar talvez único e uma edição em excesso, mas o que se
altera ou o que as distingue de facto quando as consideramos uma obra
gráfica original (uma gravura) e quando as reproduzimos num catálogo de
obra gráfica de um artista? Nada. A questão da aura tal como parece ser
argumentada por Benjamin vem introduzir confusões - o Burro é uma
raridade e o Peru não.... Os números de tiragem têm a ver com o
comércio das estampas e com a pequena história da produção do artista,
com a sociologia e a economia da arte, mas não alteram a condição (a
natureza...) de uma obra em concreto, e menos ainda a relação
material/visual com ela. É óbvio que uma estampa ou prova do Burro não é
mais um original do que uma prova do Peru, mesmo que o Burro seja um
múltiplo potencial não editado (mais valioso por isso?) e o Peru uma
prova editada em grande nº, um múltiplo concretizado, excessivamente
multiplicado porque a Gravura entendeu auto-comemorar-se um ano depois
da sua criação.
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