sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Gravura

Considerando a prática da gravura, o tema da reprodutibilidade (...o W. Benjamin andou a tentar entender, e a sua tentativa tem sido demasiado reproduzida...) distrai com frequência da questão principal: a consideração da originalidade ou especificidade do modo de criação da obra. No caso da gravura a obra original é a impressão sobre papel de um desenho realizado sobre cobre - o que não é o mesmo, quanto à materialidade do objecto e à sua eficácia visual, que um desenho sobre papel ou que a reprodução tipográfica ou fotográfica ou fotomecânica. 
Os processos de criação/gravação e de impressão de uma matriz são muito diferentes entre si. Acontece que algumas obras gráficas (estampas) não chegam a ser objecto de edição, não são reproduzidas/ /multiplicadas, conhecendo-se apenas um ou dois ou pouco mais exemplares impressos (em geral não numerados). 


Uma estampa gravada pode não ser efectivamente um múltiplo (será uma promessa ou ensaio de um múltiplo, um múltiplo virtual) se não é um exemplar de uma série editada - que pode ser em número de 5, 30, 50, 75, 100, 150 ou 200 provas (ou pode também não ser numerada). Deve poder dizer-se que quanto à gravura (nas suas diferentes modalidades) o importante é o resultado impresso do desenho, da incisão, da reacção dos ácidos, etc, sobre a matriz (metal, madeira, pedra); a edição/multiplicação vem por acréscimo, se vier. 

Gnu I e II, 1957?. Buril ( chapas 9x14 cm e 9x16 cm, papéis de dimensões variadas). Provas não numeradas - tiragens desconhecidas. Imagens de trabalho para um catálogo da obra gráfica tendencialmente completo. 



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Mais dois bichos gravados, neste caso usando-se o linóleo para recortar a figura e gravar em relevo. São obras de 1952 e são os mais antigos exemplares do bestiário gravado de Júlio Pomar - Elefante: 14,5 x 17 cm (mancha); Javali: 13 x 20 cm (idem), sobre papéis de diferentes qualidades e dimensões. Ignora-se quantos exemplares foram produzidos, conhecendo-se apenas 2 e 3 provas não numeradas, respectivamente.


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Terceiro e último exercício de reflexão sobre o que é a gravura, enquanto disciplina artística e processo de criação de obras originais, que podem - ou não - ser multiplicadas (impressas) e dar assim origem a múltiplos, mas sem perderem por isso a condição de originais (provas originais assinadas e numeradas, dentro de um limite fixado). Um original e um múltiplo simultaneamente. Como sucede com um prova fotográfica. 
Deve considerar-se que essas provas - impressas em prensas manuais de gravura (não fotocopiadas, ou impressas em tipografia ou offset) - são ao mesmo tempo originais (cada prova gravada é um original, se cumprir as formalidades legais que limitam o nº de cópias editadas) e múltiplos editados. 

No caso junto, mais uma vez pondo em cena o bestiário do artista, temos 1º um Burro, realizado em água-forte, em 1957 (chapa 20x26 cm), de que se desconhece o nº de provas impressas - sabe-se que uma foi exposta em 1961 na SNBA numa exposição organizada pelo grande coleccionador e divulgador Fernando Rau: "Gravura. Paisagistas e Animalistas do Século XX" (com catálogo), que incluiu insignes artistas internacionais e alguns portugueses; a Fundação adquiriu há poucos anos uma prova não numerada em leilão (seria a mesma?), e o autor supõe que apenas teria impresso um exemplar. No 2º caso temos a estampa Peru, água forte / técnica mista, também de 1957, de 9 x 9,5 cm (chapa) e 20,2 x 17,4 cm (papel), que foi impressa em 450 exemplares (!!) pela Cooperativa Gravura para ser oferecida a todos os seus sócios. 
Temos então um exemplar talvez único e uma edição em excesso, mas o que se altera ou o que as distingue de facto quando as consideramos uma obra gráfica original (uma gravura) e quando as reproduzimos num catálogo de obra gráfica de um artista? Nada. A questão da aura tal como parece ser argumentada por Benjamin vem introduzir confusões - o Burro é uma raridade e o Peru não.... Os números de tiragem têm a ver com o comércio das estampas e com a pequena história da produção do artista, com a sociologia e a economia da arte, mas não alteram a condição (a natureza...) de uma obra em concreto, e menos ainda a relação material/visual com ela. É óbvio que uma estampa ou prova do Burro não é mais um original do que uma prova do Peru, mesmo que o Burro seja um múltiplo potencial não editado (mais valioso por isso?) e o Peru uma prova editada em grande nº, um múltiplo concretizado, excessivamente multiplicado porque a Gravura entendeu auto-comemorar-se um ano depois da sua criação.





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