sábado, 6 de maio de 2000

Brasil, 2000, Chiado, OLHARES MODERNISTAS

Identificação de um país

expresso 6 de Maio 2000

OLHARES MODERNISTAS

Museu do Chiado (Até 28 Junho)


Muitas e variadas histórias se abrigam sob a designação de modernismo, em correspondência, pelo menos, com a diversidade das situações locais em que, nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do séc. XX, se confrontam tradições ou academismos regionalmente estabelecidos com dinâmicas de renovação que se reivindicam da mudança dos tempos. Se, mesmo nas grandes metrópoles, a modernidade não pode sintetizar-se num aspiração unitária e linear, o caso brasileiro é particularmente significativo da pluralidade dos modernismos. 

O que a vontade de mudança transportava de informação internacional (variável consoante a sua proveniência, que está longe de ser apenas parisiense, e com diferentes conteúdos, antes e depois da primeira guerra mundial) não vinha significar um simples e mecânico acertar do passo com «a vanguarda» nem é redutível à interpretação formalista que a voga dos «estudos culturais» atribui ao modernismo, vendo-o como um processo centralista, elitista e autoritário - na caricatura pós-modernista de um Thomas McEvilley diz-se mesmo que «o modernismo incluia no seu âmago um mito da história que visava justificar o colonialismo». 


No Brasil, o modernismo é ao mesmo tempo internacionalista e nacionalista (ou melhor, nativista), e o interesse pelos «primitivos» (os índios e negros bem reais no país) não se confunde com o deslumbramento pelo exotismo descoberto nos ídolos tribais. A vontade de futuro (que pode ser amalgamada com a voga do futurismo) fazia acompanhar a renovação formal com a redescoberta de um outro passado oculto pela colonização, e a abertura cultural ao exterior associava-se ao inquérito sobre a identidade própria, tomando por mito fundador a deglutição pelos índios do bispo português Sardinha, naufragado nas costas brasileiras em 1554. Devorar o outro vindo de fora com a sabedoria autóctone do ritual antropofágico seria a palavra de ordem do manifesto de Oswaldo de Andrade, em 1928, depois com reactivação tropicalista em finais da década de 60. 

Modernismo tardio, o brasileiro encontra-se já com o clima cultural dominante na Europa dos anos 20, que é mais o do chamado regresso à ordem do que das primeiras vanguardas, aproximando-se assim de outros contemporâneos realismos nacionais e vivenciando em simultâneo orientações desencontradas, expressionismos vários, o cubismo disciplinado da «art deco» e surrealismo, por exemplo.


Organizada em quatro secções temáticas e genericamente cronológicas que cobrem um itinerário que vai de 1915 ao início dos anos 40 -  «Princípios», «Explosão Tropical», «Urbanidades» e «Reivenção da História» -, a mostra é um panorama sintético e didáctico, que insere as criações visuais no contexto literário e cultural do tempo, acompanhando a interdisciplinaridade própria das manifestações modernistas brasileiras (que na famosa Semana de Arte Moderna de 1922, se prolongou com a música de Villa-Lôbos). 

No primeiro espaço destaca-se o papel pioneiro de Anita Malfati, com trânsito anterior pela Alemanha e Estados Unidos, cuja exposição de 1917 gerou os primeiros escândalos - leia-se a crítica de Monteiro Lobato, onde a posição anti-expressionista, contra os que «vêem anormalmente a natureza», se funda nas referências modernas de Lenbach, Zorn, Rodin e Zuloaga. 

As obras do escultor Victor Brecheret, com formação em Roma, e de Vicente Rego Monteiro dão conta da transição prudente e da informação sincrética que ainda preside à Semana de 1922, sem que se chegue a revelar a originalidade posterior da obra do segundo.

É em «Explosão Tropical» que se observa a viragem para a descoberta da realidade brasileira, estimulada pela visita de Blaise Cendrars e pelos estudos parisienses de Tarsila do Amaral, em que predomina a lição de Léger. Em O Lago, a paisagem molda-se com um colorido vibrante e uma ingenuidade mágica, enquanto os estudos desenhados para A Negra e Abaporu (que ilustrou o «Manifesto Antropófago») recentram o nacionalismo modernista brasileiro sobre as culturas étnicas. Com Lasar Segall, artista de origem lituana, com fortes relações com o expressionismo alemão, idênticos interesses inscrevem-se na tela O Bananal e projectos decorativos sobre a fauna local. 

São os mesmos dois artistas que logo a seguir testemunham que não é só uma visão edílica e primitivista que marca o modernismo brasileiro, mas também a transformação do país sob a dinâmica do desenvolvimento económico e urbano. As excelentes gravuras de Lasar Segall tomam por tema os novos arranha-céus de São Paulo e a aglomeração dos deserdados nas favelas que envolvem as cidades – significativamente, em Favela, de 1930, o espaço ogival do morro ocupado pelos negros é idêntico ao do superlotado convés do seu famoso Navio de Emigrantes (1939-41). As Meninas de Fábrica, na xilogravura de Livio Abramo que serve de aproximação à tradição brasileira da gravura de intervenção social, e a Rua das Mulheres, de Emiliano Di Cavalcanti, são duas observações simétricas das transformações da sociedade moderna.

A secção final é dominada pela presença de Portinari, já precedida pela exibição do Chorinho (1942) da colecção do próprio Museu do Chiado. Uma sequência de desenhos ilustra o tema da antropofagia, enquanto um estudo Brasil, de 1953-61, documenta a ambição de sintetizar a história nacional.


Aracy Amaral

textos sobre relações entre Portugal e Brasil, nomeadamente com um importante inventário de contactos e trânsitos estabelecido por José-Augusto França (que no entanto não refere a longa presença do brasileiro Waldemar da Costa)



Nota:

A exposição ocupa o espaço do Museu habitualmente atribuído à sua colecção de obras do século XX português, já antes deslocada para acolher uma anterior mostra. Não se deverá acolher como um facto banal essa suspensão da função essencial que se espera de um museu, mas antes como a escandalosa demonstração de que urge proceder à ampliação das suas instalações. Já autorizada pela resolução de fazer sair a polícia do edifício, já com previstas comparticipações comunitárias, só os impasses políticos explicam o actual silêncio em torno da questão.



ALEXANDRE POMAR

sexta-feira, 7 de abril de 2000

2000, René Bertholo, Serralves

René Bertholo Serralves 2000

FIGURA.FICÇÃO
Catálogo da retrospectiva de René Bertholo no Museu de Serralves
7 de Abril - 28 de Maio de 2000

Rene (Inclui textos de John Ashbery, André Balthazar, João Fernandes, Sebastião Fonseca, José-Augusto França, Jean-Jacques Lavêque e Alexandre Pomar. As entrevistas foram conduzidas por Xavier Douroux & Frank Gautherot, Pierre Restany e Jean-Luc Verley.)

1. René Bertholo é um actores, é mesmo um dos protagonistas, que intervêm na conjuntura em que, no início dos anos 60, em Paris, tal como em outras capitais, se procede ao ensaio das condições de possibilidade de uma figuração entendida como nova, isto é, defendida como de ruptura ou de vanguarda face ao predomínio das expressões abstraccionistas.
Esse é um ciclo complexo em que às manifestações de um corte geracional e cultural se associavam linhas mais ou menos subterrâneas de continuidade com precedentes práticas realistas e, especialmente, com orientações críticas dos valores instituídos que se interessaram por várias formas de figuração primitivista (infantil, popular, grafitista, etc), desde Dubuffet e Chaissac até às manifestações do grupo Cobra, de Appel, Jorn, Constant e outros, sobre heranças do surrealismo revolucionário belga e com sequência imaginista e situacionista. Aos «novos realismos» que se aproximavam da interpretação de uma nova «natureza industrial, mecânica, publicitária» (1) por via da apropriação directa dos seus produtos e detritos (assemblage, acumulação), somam-se então as práticas picturais que buscam a sua renovação no reportório das imagens populares da cultura urbana, sob as designações Pop e neofiguração, a qual, em versão mais parisiense, se nomeava figuração narrativa e, a seguir, figuração crítica. A respectiva consagração enquanto atitude vanguardista seria tão rápida como efémera, logo desvalorizada como prática regressiva (2) e substituída pela aceleração da lógica das rupturas, ao ritmo de uma crescente dissociação dos circuitos de legitimação, a que o seu próprio êxito público dera lugar. Diferentes atitudes radicais, que recuperavam o vector da autonomia formalista ou escolhiam o primado da atitude, poriam então em causa, outra vez, a continuidade da pintura como medium ainda potencialmente inovador e relegavam para a área do «mainstream», ou para a travessia do deserto, quase todos os artistas que estiveram associados àquele processo.

A década é tumultuosa. Nela se encerra a guerra da Argélia e abre a do Vietname (e também as guerras portuguesas), transportadas para o interior das metrópoles, num processo em que os sucessos económicos do pós-guerra são confrontados com a estagnação das expectativas políticas geradas pela vitória aliada, identificando-se a contestação ideológica com a miragem da emergência de alternativas nas periferias pré-capitalistas. (A conjuntura política, que aqui se terá de supor conhecida, voltará a ser referida a propósito da obra de R.B., na medida em que ele próprio se vai confrontar claramente com as marcas mais efémeras daquela.) É também uma década que assiste à substituição das consagrações parisienses pelo dinamismo de um novo centro, Nova Iorque, e também à afirmação de outras capitais, aonde chegam mais cedo os ecos norte-americanos ou que têm mais experimentada a sua condição periférica. A França nunca mais saberia, até hoje, defender os seus artistas e os estrangeiros que acolhia, tornando-se doentiamente dependente dos gestos de reconhecimento vindos do exterior.

Sendo um dos protagonistas de uma dinâmica colectiva de renovação, e é raríssimo que na arte portuguesa se verifique, em vez da dependência ou da sintonia, essa participação plena no centro da acção internacional, René Bertholo é – em grande medida por isso mesmo (o confronto surdo entre estrangeirados e «resistentes» que no interior se acomodaram continua a atravessar o panorama nacional) – o último dos artistas portugueses afirmados nos anos 60 a ser objecto de um olhar retrospectivo. Valerá a pena enfrentar o atraso da revisão da sua obra, que muitas vezes foi sendo apontada como indispensável, mas que tem ainda em Serralves uma abordagem só antológica.

Ter-se-ia de falar da dispersão real de uma obra que percorre então um largo circuito internacional de exibição, da Itália aos países nórdicos e também aos Estados Unidos – neste caso, por sinal, integrando um importante panorama oficial francês, «Painting in France, 1900-1967», itinerante por Washington, Nova Iorque, Boston, Chicago e São Francisco, cuja reduzida projecção funcionou como decisivo revelador da menorização do centro parisiense. Uma obra dispersa é mais difícil de reunir, e conhece-se a regra da facilidade e a pobreza de meios que têm curso institucional entre nós; não há nada como as obras de gaveta e atelier para favorecer as «descobertas» de que se alimentam os comissários, com a vantagem adicional de não sujarem as mãos procurando num mercado privado que, para mais, não precisou dos seus préstimos.

Ter-se-ia de falar também numa obra quantitativamente escassa, ou lenta, que nunca se estabeleceu como cadeia de produção, ao arrepio de outras «fábricas» que se tornaram emblemáticas da década de 60 e serviram de modelo aos circuitos de distribuição que a partir de então se começaram a montar com uma lógica já não artesanal – estava a nascer, sobre a contestação da década, a indústria do espectáculo cultural. Mais ainda, notar-se-á que René Bertholo constrói, desde 60 até ao presente, um universo imaginário particularmente individualizado e coerente que sucessivamente se retoma e reorienta, configurando-se sempre sobre novas condições expressivas, através de rupturas interiores mais ou menos explícitas, o que corresponde à recusa em estabilizar uma imagem de marca administrável como repetição «ad eternum» de múltiplos predefinidos e bem reconhecíveis, a que se chama em muitos casos a carreira. Poucos dos seus contemporâneos internacionais escaparam a essa tentação e raros foram tão incisivos como ele ao rejeitarem o carreirismo artístico e mesmo «a profissão» de pintor.

Por outro lado, se os primeiros períodos marcantes da obra de René Bertholo se reconhecem como característicos (e caracterizadores) dos anos 60, servindo por isso mesmo a habitual mas muito discutível tendência historicista de privilegiar os momentos de primeira consagração dos movimentos e dos artistas – de que resulta, em geral, a valorização sucessiva de cada vez mais curtos ciclos criativos e um relegar desatento e indiferenciado das obras de maturidade para um pantanoso «mainstream» –,  a produção mais recente do pintor, que é decididamente mais realista e abre, por isso mesmo, um campo mais vasto de possibilidades à expressão da imaginação e do sonho, que desde o início a alimentava, é aquela que hoje mais nos deve interessar, pelas qualidades próprias da sua realização pictural e pela originalidade radical do seu universo ficcional. Um universo imagético acertado com o seu tempo de realização, na sua própria dimensão autobiográfica e nos ecos, sintomas e questionamentos que o atravessam, mesmo se a dependência de valores mais correntes e mais mediatizados impedirão alguns de o reconhecer. E, em especial, uma obra que se enfrenta com uma das questões decisivas deixada pela herança modernista, a da viabilidade da ficção depois da desconstrução das convenções e dos mitos.
Uma tendência dominante que substitui a crítica das obras pela aplicação mecânica das grelhas cronológicas ou geracionais esforçar-se-á por sugerir, como sucede por exemplo a propósito de Paula Rego, que na pintura de René Bertholo ocorre uma sobrevivência de problemáticas dos anos 60 – a continuidade das tensões bipolares abstracção/neofiguração, representação/apresentação (e também se dirá, noutras prosas ainda mais inconsequentes, que enquanto pintura se trata do prolongamento de uma tradição já muitas vezes extinta...). Não importa. Se a cegueira não for fatal, reconhecer-se-á que o que existe de participação numa dinâmica colectivamente renovadora nos anos 60, expressando com originalidade própria um certo ar do tempo, ao intervir na reabertura de um campo de expressão figurativa sem abdicar da sua aprendizagem das lições do automatismo psíquico e da exploração abstraccionista, evolui e enriquece-se depois no sentido de uma cada vez maior afirmação individualizada para ser uma das obras incontornáveis do presente – o virar do século.
O trabalho recente de René Bertholo (como todo o seu trabalho, aliás, ao longo de diversas fases) não é o congelamento de um estilo pessoal ou a circunscrição de uma linguagem imediatamente reconhecíveis como um domínio de produção assegurado por um «copyright», como sucede, por exemplo, com Arroyo, Erro, Klasen e outros nomes que acompanharam a chamada neofiguração, no que esta ambicionou afirmar como exercício da constatação e do comentário. Sob os vectores da continuidade, não se caracterizando as suas últimas duas décadas por uma mutação por fases bem delimitadas, a obra sempre lenta e numericamente escassa da maturidade recente de René Bertholo é um processo constante de reapropriação, análise e transformação das aquisições anteriores, que se resolve sempre por uma ampliação de possibilidades expressivas e pela integração de novos questionamentos e novas imagens. Passando da inicial simulação – só simulação - de um discurso narrativo à afirmação plena da necessidade e possibilidade da ficcionação pictural.


2. O período da pintura de René Bertholo habitualmente identificada com a figuração narrativa durou apenas cerca de quatro anos, de 62/3 a 66, e encerra-se em ruptura com a respectiva caracterização enquanto tendência (veja-se o significativo diálogo com Pierre Restany publicado no catálogo da exposição de 1965 na Galerie Mathias Fels). O período seguinte dos «modelos reduzidos» é mais longo, de 66 a 73, mas é também numericamente menos produtivo, dadas as próprias características técnicas desses trabalhos, para além de constituir uma linha de trabalho mais solitária, menos directamente integrável nas movimentações colectivas então dominantes. O seu «regresso à pintura», a partir de 1974, é acompanhado por um investimento principal, até por ser intensamente absorvente enquanto trabalho efectivo, em intervenções no espaço urbano, ou obras de arte pública, que ocupam o artista entre 1972 e 1983, com uma pronunciada dimensão utópica que René Bertholo quis tornar acessível a todos os públicos e depois identificar com uma tradição da escultura popular. A primeira numa rua de Paris, a pintura de uma empena da Rue Doussoubs, no âmbito de um programa estatal de encomendas de intervenção urbana que se iniciara no ano anterior com Morellet (3); depois em vários edifícios escolares franceses, com sucessivas experiências de diferentes materiais (mosaico, cerâmica ou complexas construções esculturais, como o pórtico do Collège du Luzard, em Noisiel, 1978); a última já em Portugal, com seis esculturas em betão armado colorido, no Hospital do Barreiro.
Irregularmente, a partir de 1974, com os acrílicos sobre papel que no ano seguinte expõe na Galerie Lucien Durand («Mirages»), e mais regularmente a partir da sua instalação definitiva em Portugal, esse «regresso à pintura» constitui a mais longa das fases da obra de René Bertholo, a que corresponde a produção, sempre lenta, do seu mais extenso corpo de trabalho. A continuidade com as pinturas da primeira metade dos anos 60 é evidente, até pela retoma mais ou menos sistemática de elementos sígnicos aí presentes, mas é muito mais decisiva a evolução constante que se vai operando no seu trabalho.
Nele se assiste à transformação da estratégia de acumulação e espalhamento de pequenos sinais isolados (objectos reconhecíveis ou não reconhecíveis), em quadros que recusam a sua leitura como «estória», mesmo quando parecem sugeri-la pela utilização de processos idênticos aos da banda desenhada, numa investigação sobre as possibilidades da ampliação, localização e adensamento desses sinais, que passam a ser cada vez mais dotados de volume, «peso» e sombra (sem deixarem de ser em muitos casos «abstractos»), ao mesmo tempo que passam a organizar-se segundo diferentes modelos de representação explicitamente narrativa de um universo ficcional próprio, onde o imaginário é mais claramente afirmado como uma dimensão intrínseca do real. Nesses modelos investe-se por vezes um sentido reconhecidamente autobiográfico (as «mulheres imaginárias», os «quartos», a casa e a paisagem do Algarve, etc), ou são-no também através da revisitação da obra anterior; outros casos, como o das suas pinturas em «episódios», mostram-se claramente como dispositivos ficcionais abertos a uma pluralidade de leituras, porque também não partem de uma história preconcebida («num quadro há milhões de histórias», dizia o pintor numa entrevista de 1984); enquanto ainda noutros casos Bertholo faz uma referência explícita a personagens de ficções tradicionais – nos seus quadros de 1995 aparece o coelho de Alice, que também é uma referência privada a um desenho de António Dacosta (O Coelho do António, etc), a Carochinha, o Capuchinho Vermelho e certamente o feijoeiro mágico (Coluna Sem Fim, A Árvore da Vida).
René Bertholo recusara em 1965 a identificação dos seus quadros como figuração narrativa, no momento em que a fórmula se institui. Ao responder a um Restany que o interroga sobre o «risco» de as suas «imagens subjectivas» se organizarem numa narrativa (récit), R.B. diz: «Primeiro sabes muito bem que não sou um narrativo. Eu não conto nada. Depois, o meu tratamento da imagem (nas suas modificações como nas suas repetições) é inteiramente instintivo e espontâneo.» O tópico da narração, assim negado, associava-se então quer à defesa de um certo automatismo de tradição surrealista quer à recusa da «crítica política do género Arroyo», bem como ao respeito pelo interdito modernista do «literário», que praticamente extinguira a pintura de história e de género. Restany fala de «uma arte de evasão», Bertholo propõe-se «divertir os outros» no texto que escreve para o mesmo catálogo; notar-se-á, no entanto, que ele próprio retoma aí a ideia de narrativa, distinguindo-a da constatação e da denúncia ou crítica políticas, para a inscrever no domínio da ficção: «Encontrar para uso dos adultos qualquer coisa que corresponda  ao mundo dos livros da escola, ao mundo dos álbuns de colorir. Contar-lhes histórias de fadas, regá-los com vapores coloridos, faze-los sorrir. Deixar-lhes, no entanto, qualquer coisa para fazer: dou-lhe um cosido já pronto, mas que cada um deve temperar a seu gosto».
É na obra que cresce a partir de meados de 70 que René Bertholo vai descobrir como é que as suas telas se podem organizar como construções ficcionais, sem que a pintura se torne ilustração de um texto prévio, sem dependências  ou conotações «literárias», e onde ao seu tratamento «instintivo e espontâneo» da imagem corresponda também uma não determinação das respectivas leituras pelos espectadores (4). A questão do movimento-tempo é decisiva nessa evolução, e ela tinha passado por diversas experiências anteriores de inscrição ou utilização da «durée», tanto na sua pintura como nos «modelos reduzidos», antes de se afirmar com decisiva clareza nas sequências, compartimentações e episódios do seu período dos «quartos».
Entretanto, é particularmente relevante na produção mais recente a lenta mutação do trabalho da pintura, que radicalizou uma investigação sobre os seus procedimentos através do que René Bertholo designou como «Quadricomias», na exposição de 1995, na Galeria Fernando Santos, no Porto (também mostrada em Lisboa no ano seguinte), e, logo depois, com o início da utilização experimental das possibilidades do computador na concepção e estudo prévio dos seus quadros. Antes de voltar a considerar a obra de Bertholo no seu devir cronológico, é oportuno referir estas duas inovações processuais, pelo que elas revelam, em versão recentíssima, de uma atracção continuada pelo emprego de meios mecânicos (que já vem de uma exploração precoce das técnicas de impressão, nos anos 50, continua com a construção dos modelos reduzidos e, depois, nas máquinas musicais), mesmo se logo nos anos 60, à revelia da pressão do tempo, a sua pintura não se deixou seduzir pela apropriação fotomecânica das imagens nem pelo império da comunicação de massas.
Nas «Quadricomias», Bertholo adopta na aplicação da cor o processo usado na reprodução impressa da fotografia, a selecção de cores, restringindo a paleta a quatro tubos de óleo – azul cobalto, vermelhão, amarelo cadmium e um cinzento quase preto –, e utiliza a cor em camadas sucessivas no «preenchimento» de um desenho prévio, ou suspende aquela sequência para manter vastas áreas monocromáticas ou explorar um colorido não «naturalista», de aspecto artificial, com a luminosidade do neon ou do ecrã. O processo que então designava como «quadricomia» tinha largos antecedentes: por exemplo, em Jeux sans Issue, de 1977, um dos seus mais antigos «quartos», o pintor restringira-se à cor azul. E o início das suas pinturas dos anos 60 já tivera lugar com a decisão de colorir as formas desenhadas.
Depois, graças à exploração dos meios informáticos (scanner, computador e impressora), René Bertholo liberta-se do que havia de fastidioso no seu processo de trabalho, quando retoma elementos miniaturais dos seus quadros anteriores e os sujeita a operações de ampliação, fragmentação, repetição e sequenciação. Não se trata de o incluir em qualquer «revolução digital» de que resultem objectos de diferente natureza – e nada indica, entretanto, que os meios informáticos tenham trazido alterações substanciais ao que também já era criação de imagens virtuais pela pintura ou, noutros artistas, pela manipulação de fotografias através da fotomontagem e das alterações laboratoriais, para lá do que resulta ser mais fácil e mais «perfeito». No entanto, é certamente possível detectar na última exposição de Bertholo (1998, Cascais e Porto) uma maior variedade de processos de construção do quadro que parece resultar da maior agilidade consentida pelo computador aos seus estudos preparatórios: aí encontramos a imagem unificada sobre uma tela de grande formato, A Heroína; a utilização de dois, quatro ou seis espaços repetidos; a retoma do processo de espalhamento e acumulação de figuras, mas numa sobreposição total de elementos de onde fica ausente qualquer «fundo» plano ou abstracto, em Indiana Jones; e ainda a composição inédita de Oh Céu de Agosto ou a aparente simulação da colagem em O Diabo, a Paraquedista, etc. O novo instrumento de trabalho assegura-lhe maior liberdade inventiva.


3. Uma retrospectiva que venha a reconstituir todo o trajecto de René Bertholo, iniciado na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1953, terá de explorar o seu primeiro período de trabalho, precocemente assinalado pela participação no 1º Salão de Arte Abstracta, organizado em 1954 por José-Augusto França na Galeria de Março, e prolongado até à presença na 2ª Exposição Gulbenkian, em Dezembro de 1961, com uma tela de vigorosa gestualidade informalista. Alguns desenhos serviriam talvez para localizar em germe tópicos e processos que serão diferentemente retomados pelas obras dos anos 60, a par de uma prática da ilustração ou, melhor, de actividade gráfica figurativa (em especial, na revista de cinema «Imagem», em 1955-58), ao mesmo tempo que se averiguaria o que significa a atribuição de títulos explicitamente narrativos à produção «abstracta» apresentada em 1960 na exposição do Grupo KWI, na SNBA, onde também mostrou «relevos» que se desconhecem. Esse é um período de intensa participação de Bertholo nas iniciativas de uma nova geração de artistas e de agitação do panorama artístico português, desde a fundação da revista escolar «Ver», em 1954, e da galeria Pórtico no ano seguinte, à co-organização do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, nas vésperas de deixar o país em direcção a Munique. A revista «KWY», que começa em 1958 com Lourdes Castro, e toma depois o carácter de órgão de grupo ou de confluência de trajectos pessoais, até 1963, insere-se nessa mesma capacidade de criação e condução de projectos colectivos.
Decisiva é a mutação que o trabalho de René Bertholo conhece a partir de 1961, com os primeiros desenhos-acumulações que conduzem directamente às pinturas expostas em 63 na Galerie du Dragon, numa situação parisiense então marcada por grande dinamismo vanguardista, em que os encontros e cruzamentos de experiências são mais decisivos que as demarcações programáticas. O tempo e a actuação propagandística de Pierre Restany parecem isolar os «Nouveaux Réalistes», na viragem da década de 50 para a de 60, como movimento coerentemente programático e fechado sobre os seus nomes de referência, mas a realidade era então mais fluida e aberta. São ténues as fronteiras entre movimentações e direcções, e os artistas que Restany agregou com os seus manifestos incluem a linha dos «affichistes» que antes se associava aos «informais», convive com o experimentalismo cinético e com o grupo Zero, estará presente também na afirmação da figuração narrativa, com Raysse e Niki de Saint-Phalle. A participação na revista «KWY» de Christo e do pintor alemão Jan Voss, desde 1960, é indicativa desses cruzamentos. O nº 11, da Primavera de 63, é organizado por Christo e em grande parte dedicado a Yves Klein.
A «nova figuração» que se procurava recobria genericamente uma distanciação crítica face à estabilizada abstracção lírica e informal parisiense, reafirmando a validade de figurações expressionistas anteriores. Em 1961, a Galerie Mathias Fels festeja os 10 anos dos Cobra e no ano seguinte apresenta a colectiva «Une nouvelle figuration», com a participação de Appel, Bacon, Corneille, Dubuffet, Giacometti, Jorn, Matta, Saura e De Stael, entre outros. Essa movimentação é exactamente contemporânea da afirmação do «Nouveau Réalisme» que Restany promove em «À 40º au-dessus de dada» (Galerie J, 1961) e ao primeiro confronto entre «neo-dadas» franceses e norte-americanos (Galerie Rive Droite, 1961), que só no ano seguinte, na sua edição americana da Sidney Jannis Gallery, incluirá, ao lado de Rauschenberg e Johns, os futuros artistas Pop (5).
Bertholo participa em 1962 numa influente exposição colectiva comissariada por jovens críticos, «Donner à Voir 2», seleccionado por José Pierre, de filiação surrealizante. No ano seguinte, em que entra na representação portuguesa da Bienal de Paris (da qual é comissário César Moreira Baptista), está presente noutro ponto da situação promovido anualmente pela Galerie Charpentier sob o nome de «École de Paris», designação que continuava a traduzir a afluência de estrangeiros a Paris e tinha uma marca cosmopolita. É então Corneille quem o selecciona, ao lado de Baj, Chaissac, Jorn, Saura, Hundertwasser e outros; aí participam também Télémaque, Fahlström, Arikha, etc. No mesmo ano de 1963, é o mesmo José Pierre que o apresenta em «Image à Cinq Branches» na Galerie Mathias Fels, ao lado de Télémaque, Rancillac, Klasen, Voss e Reuterswäld. Logo depois, Bertholo intervém activamente, com Télémaque e Rancillac, na organização de «Mythologies Quotidiennes», 1964, que tem lugar no Museu de Arte Moderna de Paris, e a propósito da qual Gassiot-Talabot forja a designação «figuração narrativa» num contexto em que a Pop britânica e americana já é conhecida. Vimos que René Bertholo não acompanhou o sentido que viria a ter essa fórmula.
É numa orientação que assume alguma proximidade com um surrealismo liberto da sua iconografia estereotipada e com a linhagem Cobra que vencera a polaridade abstracção-figuração que René Bertholo iria passar das suas primeiras acumulações desenhadas para os quadros de acumulação de imagens. «Essa coisa de ir amontoando, amontoando, não sei de onde viria, tem provavelmente várias origens» - refere o artista na entrevista de 1984 já citada (6). Interrogando-se, recorda o seu primeiro choque perante as reproduções de Pollock e Tobey vistas em Lisboa na Biblioteca Americana, ainda antes do seu grande interesse por Klee; aponta depois, já em Paris, o encontro com os «cachets» e «allures d’objects» de Arman e a impressão causada pelos esquissos de Leonardo da Vinci em «páginas inteiras cobertas de bonequinhos». Essencial, entretanto, é a cumplicidade estabelecida com Jan Voss, numa constante troca de experiências ao longo de quase uma década, que seria curioso observar em pormenor. «De nós dois acho que foi ele que começou (não quero ser pretensioso) essa evolução. Ele fazia uns novelos, uma riscalhada que tinha muito a ver com a pintura de Twombly, que já usava uma espécie de grafitis... Era uma coisa que andava no ar.» Depois é Bertholo que começa «a misturar coisas figurativas e outras abstractas dentro de um mesmo espaço», seguido por Voss.
São objectos miniaturais em queda ou em voo sobre um espaço «abstracto» que pode ser, com ironia, atmosférico e ambíguo, mas é essencialmente gráfico e objectual, entendido o quadro como página e usado como suporte ou depósito de signos e representações, às vezes limitado por frisos ou dividido por configurações geométricas repetidas que têm algo a ver com os quadrados da banda desenhada, mesmo se os sinais desobedecem à compartimentação e brincam com a sequenciação narrativa. Heraldique, Formations Blanches, Table Verte, Babel Encore, La Voie Lactée, títulos de 1963, indicam que é o jogo da associação livre e paradoxal de elementos identificáveis ou não reconhecíveis que preside a essas obras, num momento prévio ao projecto de algum modo ficcional que existirá, logo no mesmo ano, em Le Désarroi de M. Thomas, e se reconhece em Mme Julia entre la Nuit et le Jour.
Em 1965, com Une Vie de Secrétaire e Casa de Paris (título a confirmar) a tela segmenta-se em áreas bem demarcadas, que funcionam por vezes como quadro dentro do quadro ou que se podem ver como «trompe l’oeil» de uma colagem de fragmentos com diferentes regras de composição, ou melhor, de preenchimento. As zonas de acumulação esvoaçante de objectos coexistem com alinhamentos de sinais repetidos (ou de representações, por exemplo, de uma fotografia que é uma natureza morta) e ainda com sequências de imagens que sugerem o movimento ou são aparentes inventários. A palavra escrita surge como objecto também, como comentário e legenda, como pista de leitura ou  acréscimo de irrisão. Em 1966, L’Idéal já inclui um projecto de «modelo reduzido».
Entretanto, pode situar-se nestas telas o aparecimento de motivos e personagens que voltarão a surgir em pinturas muito posteriores: em Une Vie de Sécretaire está a mulher que segura um vidro, com uma espécie de adesivo sobre os braços, a qual aparece de novo em Malabarismos, de 1998, e igualmente em O Diabo, a Paraquedista, Etc, de 1997, nesta última tela também ao lado da mulher paraquedista que está desenhada em A Casa de Paris.
Voltemos ao diálogo com Pierre Restany em 1965, intitulado «Le réel au delà du récit», um prefácio assinado em comum que está intimamente associado às tensões que ocorrem na cena artística parisiense – a radicalização política no seio do Salon de la Jeune Peinture e a afirmação da figuração narrativa por Gassiot-Talabot –, manifestando a demarcação nítida de René Bertholo face a ambas. O «pai espiritual do novo realismo, papa do pop parisiense e vulgarizador prosélito do animismo do ready-made», como o próprio Restany se identifica, distancia a «escrita das coisas» de Bertholo da neofiguração narrativa que então ambiciona a intervenção política, situando-o «fora da corrente». De facto, ele já não participará em «La Figuration Narrative dans l’Art Contemporain», de Gassiot-Talabot na Galerie Creuze, em Outubro de 1965, onde a indiferença de Duchamp seria militantemente «assassinada», nem em «Bande Dessinée et Figuration Narrative», organizada em 1967 pelo mesmo crítico (7), tal como não estará associado à escalada de activismo político em que se implicam diversos artistas parisienses. Bertholo dizia a Resteny: «Abstenho-me de qualquer pretensão à moralidade pública, de qualquer crítica político-social do género Arroyo. Como homem e como português acredito pouco, em 1965, na eficácia dessa crítica». No entanto, está presente em mostras italianas orientadas para a interrogação da situação contemporânea, como «Il Presente Contestato», em Bolonha, e «Alternative Attuali», Aquila, ambas em 65, tal como participa numa sequência ininterrupta de exposições significativas desse período: o Prémio «Marzotto» em 1966, com larga circulação internacional; o Salão de Maio de Paris, em 1967, reeditado em Havana; «Superlund», na Suécia, 67;  «L’Art Vivant», Fundação Maeght, 68; «Distances», MAM, Paris, 69, etc.
Àquela distância da politização dos discursos artísticos da época, soma-se a recusa dos processos mecânicos de apropriação das imagens (transposições fotográficas, impressões serigráficas, decalcomania industrial), que defende Restany. A atitude de Bertholo é tanto mais significativa quanto a sua pintura nunca foi nem pretendeu ser a exibição de qualquer virtuosismo do fazer e, por outro lado, o gosto pela exploração das técnicas de reprodução serigráfica fora evidenciado desde o tempo da sua formação em Lisboa e esteve na base da publicação do «KWY» e de outras edições. Porque não recorres aos processos fotomecânicos? a técnica da colagem nunca te tentou? – pergunta Restany. «O meu realismo consiste em reconstituir na minha memória a integralidade da forma. As imagens “ready made” bloqueiam-me a visão. Já estão  demasiado presentes. A decalcomania ou os processos mecânicos de reprodução da forma são tão académicos como a pintura» – responde Bertholo.
Entretanto, seria curioso avaliar a incompreensão com que em Portugal se acolhem então as informações sobre as mutações que ocorriam no exterior, através de abordagens associadas a uma retardada tradição formalista e aplicadas em defesas programáticas que se colavam com um ritmo sempre excessivamente atrasado a ortodoxias já em vias de esgotamento, como ocorrera em torno do surrealismo no final da década de 40 e aconteceu com os abstracionismos na segunda metade da década de 50. Depois do culto pela polaridade figuração-abstracção, o gosto pelas classificações redutoras dá lugar a uma amálgama que se designa como «neofigurativismo», onde a ideia absurda de «figura pura» se vem somar à «cor pura» e ao «espaço puro», numa defesa dos «factores puramente plásticos» contra as ameaças de persistência naturalista, da qual se era cúmplice, afinal, no que esta teve de pior, a fatalidade de um lirismo nacional...
Curiosamente, rejeitados os processos mecânicos de apropriação das imagens mediáticas, a restrição às imagens de imagens, são as máquinas que vão então surgir na obra de René Bertholo, através da construção dos autómatos designados como «modelos reduzidos», os quais, apesar do seu nome, assinalam uma primeira possibilidade de passagem das representações miniaturais e acumuladas a imagens unificadas de grande formato. «A ideia que me veio foi fazer paisagens com movimento» (1984). «Procuro sempre ilustrar um só tema (...) tenho vontade de me limitar, de sugerir de maneira muito legível este ou aquele fenómeno da natureza» (8). O que seria então impossível representar em pintura ganha uma dimensão lúdica e irónica quando a figura se reduz ao arquétipo e é dotada de movimento.
A via aberta, por mais sugestiva que se reconheça, era de desenvolvimento necessariamente limitado, para além de vir a confrontar-se com complexas condições materiais de produção. Adquirido o movimento que a sua pintura anterior tinha ensaiado, Bertholo perdia no mesmo passo o recurso à memória, como processo essencial de activação do seu imaginário. Ao regressar depois à pintura, o seu projecto será «passar através da memória para descrever a realidade» (1984).
«Mirages», 1975: «uma longa série de acrílicos sobre papel onde jogava com a ideia de que alguém, tendo visto uma paisagem, tenta lembrar-se de como ela era e faz tentativas desesperadas para a encontrar na sua memória». «Mirages suite et fin», 1977, óleos: «A série seguinte mostrava retratos de mulheres, praticamente sempre imaginários e, aliás, pintados sobre a tela sem a ajuda de qualquer documento. Imaginação e memória. Em seguida pintei quartos de dormir onde montes de objectos heteróclitos juncavam o chão, as paredes e por vezes a cama, tornando-a muitas vezes inutilizável». «O prazer de misturar tudo num espaço imaginário, sonhos acordados». «Légendes», 1981: «Imaginei que cada interior representava uma lenda», mas «estas lendas não têm um sentido definido à partida» (9). Todo esse trajecto não se acompanhou em Portugal (com excepção de uma mostra no Funchal, em 1980, que não poderia ter eco continental), até que em 1984, na Galeria Ana Isabel, se iniciasse a série de espaçadas individuais de galeria (Nasoni, Fernando Santos) prosseguida ao longo da década de 90. A antologia não permitirá ainda sumariar os passos de todo este itinerário, onde a obra de René Bertholo constantemente se recicla, reorienta e amplia, numa situação de plena maturidade que nunca perdeu a frescura do seu humor. Os seus «puzzles», inventários e histórias, sem abandonarem o vector do jogo e da irrisão mas juntando-lhe a perturbação perante «os mistérios da existência e das estrelas» (1984), cruzam a dimensão autobiográfica com a reinterpretação do mundo afirmando os poderes do sonho e da imaginação. Propõem-nos espaços lúdicos de fingimento partilhado (J-M.Schaeffer). Reconciliam a pintura com a ficção.

(1) Pierre Restany, «La réalité dépasse la fiction», prefácio para a exposição «Le Nouveau Réalisme à Paris et à New York», Galerie Rive Droite, Paris, Junho de 1961, in 1960, Les Nouveaux Réalistes, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1986, pág. 267.
(2) Simón Marchán Fiz, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, ed. Akal, Madrid, 1986, pág. 21.
(3) Ver Germain Viatte, «Au service de la création artistique», in Bernard Anthonioz ou la Liberté de L’Art, ed. Adam Biro, Paris, Paris, 1999, pág. 97.
(4) Para uma «compreensão positiva» da mimesis e mais especificamente da ficção, ver Jean-Marie Schaeffer, Pourquoi la Fiction?, Seuil, Paris, 1999.
(5) Ver Manifeste. Une Histoire Parallèle. 1960-1990, Centre Georges Pompidou, 1993, e Catherine Millet, L’Art Contemporain en France, Flammarion, Paris, 1987.
(6) Alexandre Pomar, «René Bertholo: Num quadro há milhões de histórias», «Expresso-Revista», 14 de Abril de 1984.
(7) No prefácio desta exposição, Gassiot-Talabot precisa a sua definição de figuração narrativa: «É narrativa toda a obra plástica que se refere a uma representação figurada “dans la durée”, pela sua escrita e a sua composição, sem que aí exista propriamente uma estória (récit)». Ver Gérald Gassiot-Talabot, «De la Figuration narrative à la Figuration critique», in Face à l’Histoire, Flammarion/Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 358.
(8) Conversa de René Bertholo com Jean-Luc Verley, catálogo da Galeria 111, 1972.
(9) René Bertholo, catálogos da Galerie Lucien Durand, 1981, e da Galeria Ana Isabel, 1984.

sábado, 26 de fevereiro de 2000

Brasil, 2000, «Mostra do Redescobrimento» , «Artes Indígenas»

 Repensar as artes indígenas 

26-02-2000 Expresso


José António Braga Fernandes Dias. Fazer entrar as artes indígenas brasileiras no mapa das artes universais


 

 UMA das grandes exposições que vão assinalar em São Paulo os 500 anos do Brasil, precisamente a mostra sobre as Artes Indígenas, foi concebida e projectada em Lisboa pelo antropólogo José António Braga Fernandes Dias, que partilha o respectivo comissariado com Lúcia Hussak van Velthem, do Museu de História Natural Emílio Goeldi, de Belém do Pará. O convite para dirigir um dos 12 núcleos da gigantesca «Mostra do Redescobrimento» levada a cabo na Fundação Bienal de São Paulo, a partir de 24 de Abril, decorreu do reconhecimento que alcançaram as exposições «Memória da Amazónia: Etnicidade e Territorialidade», que teve lugar na Alfândega do Porto em 1994, e «Memória da Amazónia. Expressões de Identidade e Afirmação Étnica», organizada em Manaus em 1997.


 Entretanto, Fernandes Dias, que é professor na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, será o próximo conferencista no ciclo sobre multiculturalismo e pós-colonialismo promovido pela Culturgest no âmbito do programa «Extremos do Mundo» (segunda-feira, às 18h30). A intervenção intitula-se «Diferença Cultural na Arte do Séc. XX» e abordará a descontinuidade das relações da arte ocidental com a alteridade não-europeia e também com as diferenças culturais que existem no interior das próprias metrópoles euro-americanas.


 Reunindo cerca de 900 objectos nos três pisos de um edifício semi-esférico desenhado por Niemayer (a Oca), enquanto a respectiva cave será destinada aos testemunhos arqueológicos pré-cabralinos, a exposição «Artes Indígenas» apresentará no Brasil, pela primeira vez, o essencial dos espólios antropológicos conservados em museus europeus (de Copenhaga, Berlim, Dresden, Viena, Roma e também Lisboa e Coimbra - neste caso, um núcleo do acervo trazido pela «Viagem Philosófica» de Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1783-92). Aos objectos históricos que vão do séc. XVI até ao início do séc. XIX, de que o Brasil não possui quaisquer testemunhos, juntam-se peças posteriores oriundas das grandes colecções brasileiras e também objectos de uso ou de produção indígena actual.


 As duas anteriores exposições sobre a Amazónia tiveram um enfoque etnográfico predominantemente académico, além de envolverem a consideração dos processos de esmagamento das populações autóctones e da actual reafirmação étnica das nações índias. Em Manaus, a mostra foi mesmo acompanhada por um segundo núcleo programado por organizações indígenas.


 O actual projecto para São Paulo é, pelo contrário, uma exposição destinada ao grande público - são milhões os visitantes esperados no conjunto das mostras, até 7 de Setembro - e foi delineada como uma exposição de arte, apresentando os testemunhos da cultura material índia não como objectos etnográficos mas como objectos artísticos.


 J. A. Fernandes Dias refere que a concepção da mostra se distancia dos pressupostos correntes na consideração das artes indígenas do Brasil, que continuam a ter por referência padrões estéticos e culturais herdados do séc. XIX e do modernismo. Aliás, as artes tradicionais ameríndias, e mais particularmente no caso do Brasil (com a excepção mais recente da plumária), não participaram do interesse modernista pela «arte primitiva», pelo que se trata ainda de as fazer «entrar no mapa das artes universais».


 Além dos objectos rituais que são habitualmente reconhecidos como artísticos devido ao preciosismo da sua execução ou ao investimento decorativo, associando o critério da beleza e a espiritualidade que a tradição ocidental atribui à obra de arte, a exposição reunirá objectos quotidianos de uso pessoal e doméstico, que não costumam integrar as exposições de arte, e ainda objectos ou instrumentos produzidos directamente para o comércio, habitualmente classificados como artesanato, ou obras de artistas indígenas contemporâneos (arte «naïve» e apropriações de linguagens visuais ocidentais). Também estarão presentes objectos efémeros ou «site-specific», comparáveis a «instalações», que são construídos por tribos índias com fins rituais ou de marcação de territórios funerários.


 Fernandes Dias pretende «fazer intervir critérios adoptados pela arte contemporânea», nomeadamente pela chamada arte conceptual, para pôr em questão os privilégios do olhar ocidental e «alargar o âmbito do que é reconhecido como artístico nas produções materiais das culturas indígenas».


 Em causa está a aplicação de um sistema ocidental de classificação dos objectos a culturas que não utilizam o conceito de arte para identificar a respectiva diferença ou autonomia. Pelo contrário, valoriza-se agora a categoria de «objectos autênticos», os quais «podem ser altamente elaborados ou de grande austeridade, mas são feitos com materiais e segundo modos específicos, desempenham funções tradicionais e são carregados de significados culturais, míticos ou cosmológicos, pelo que devem ser vistos como a materialização de ideias complexas sobre o mundo e a vida humana», segundo refere o comissário da exposição.


 Além dos núcleos de Arqueologia e Artes Indígenas, a «Mostra do Redescobrimento», que tem como comissário-geral Edemar Cid Ferreira, inclui outras grandes exposições dedicadas à Arte Afro-Brasileira, produzida ao longo dos séculos por artistas negros e testemunhando a continuidade de relações religiosas e culturais com África - ao qual se acrescentou mais recentemente uma mostra intitulada «Negro de Corpo e Alma», sobre a imagem dos negros na cultura brasileira -, à Arte Popular, incluindo as contaminações entre arte e artesanato e resultantes da miscigenação brasileira, e às «Imagens do Inconsciente», esta oriunda do museu com o mesmo nome criado pela psiquiatra Nise da Silveira.


 Outras mostras ainda acolhem separadamente a Arte Barroca, a Arte do Século XIX, a Arte Moderna e a Contemporânea (as duas últimas comissariadas por Nelson Aguilar, que é também «curador-geral» de todo o projecto), para além do núcleo «O Olhar Distante», sobre o Brasil visto por artistas estrangeiros, e «Carta de Pero Vaz de Caminha», onde o documento original do «achamento» do Brasil é acompanhado por 11 obras de artistas portugueses actuais, num projecto que envolve a Comissão dos Descobrimentos Portugueses. Serão publicados 12 catálogos autónomos e a inauguração ocorrerá com a presença dos Presidentes Jorge Sampaio e Fernando Henrique Cardoso.


 Em Novembro, a Fundação Gulbenkian acolherá a exposição de Arqueologia e uma remontagem dos núcleos respeitantes à arte do séc. XX, que ocuparão todo o CAM, enquanto a mostra «Negro de Corpo e Alma» será apresentada na Alfândega do Porto, em Janeiro.


 Quanto às «Artes Indígenas», cuja cenografia será da responsabilidade de Naum Alves de Souza, figura destacada do «teatro novo» brasileiro dos anos 60, serão apenas mostradas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, também como uma homenagem ao crítico e historiador Mário Pedrosa. Prevê-se, no entanto, que uma sua síntese venha a integrar a montagem panorâmica de toda a «Mostra do Redescobrimento» que se anuncia para os Museus Guggenheim de Nova Iorque e Bilbau.

sábado, 13 de novembro de 1999

1999, AURÉLIO DA PAZ DOS REIS, Palácio Foz

 À procura de um autor 

13-11-99


AURÉLIO DA PAZ DOS REIS

Palácio Foz

(Até 5 de Dezembro)


 PIONEIRO do cinema, em 1896, fotógrafo amador, até cerca de 1920, floricultor premiado e comerciante, político republicano, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931) é um curioso personagem portuense. A exposição que o Centro Português de Fotografia lhe dedicou há tempos, na Cadeia da Relação, chegou a Lisboa abreviada, numa apresentação que sublinha o interesse documental das imagens que deixou mas que não permite ainda conhecer, de facto, o que foi a respectiva obra e o lugar que ocupou na fotografia do seu tempo.


 Fazem parte do espólio que lhe sobreviveu 2464 positivos e 9260 negativos, em geral chapas de vidro estereoscópicas, que permitiam a visão binocular em relevo, embora ele também as usasse para obter panorâmicas ou captar duas imagens diferentes. É através das provas originais (que não se expõem), das vistas estereoscópicas que produziu e comercializou (mas que aqui não se dão a ver), dos postais que editou e das fotografias que expôs e com que ganhou prémios nos Salons ou que publicou na imprensa (duas das fotos expostas, sobre o Carnaval dos Fenianos, foram editadas na «Ilustração Portuguesa», em 1906) que a sua actividade poderia ser conhecida e localizada na sua época histórica – que já é a da plena maturidade da fotografia e não a era dos pioneiros.


 


Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931), um portuense ilustre


 

 A opção seguida, mostrando apenas tiragens de 1998 impressas a partir dos negativos originais (de muito boa qualidade mas com escassas referências técnicas), transforma radicalmente as condições de visibilidade e exposição da sua produção fotográfica, por via de uma prática que poderia ser designada por arqueologia criativa. Existem certamente dois Paz dos Reis: o que foi visto no seu tempo e o que é recriado a partir do seu espólio de negativos – proporcionar esse confronto seria de grande interesse.


 Sucede que a fotografia estereoscópica, divulgada a partir da Exposição Universal de Londres de 1851, se vulgarizou nas duas décadas seguintes como entretenimento social e instrumento de divulgação (antes da multiplicação das edições em formato «carte de visite»), mas perdeu depois quase todo o seu impacto perante a novidade do cinema, ficando no final do século restrita a alguns grupos de amadores especializados (ver, por exemplo, La Photographie Stéréoscopique sous le Second Empire, Biblioteque Nationale de France, 1995). Paz dos Reis ter-se-á mantido até ao final fiel a esse processo já anacrónico.


 As imagens estereoscópicas caracterizavam-se em geral por uma ambição de realismo (de início recreado em estúdio) que se acentuava pela presença da terceira dimensão, funcionando como «tranches de vie» de um mundo em rápida mudança. Aparentemente, o realismo das imagens recuperadas de Paz dos Reis tem essa mesma origem, já em alternativa ao documentarismo cinematográfico, que ele rapidamente abandonou, faltando demonstrar que as provas fotográficas que o próprio imprimiu e divulgou (e não só as que agora se retiram do seu espólio de negativos, com maior ou menor arbitrariedade) se afastavam deliberadamente do gosto salonista da época para tirar partido estilístico ou estético do instantâneo documental, quase cinematográfico, que mais tarde se viria a apreciar.


 As desfocagens parciais, os enquadramentos instáveis e desiquilibrados, a sugestão do movimento, que são atraentes nas imagens aqui expostas, antecipando o fotojornalismo posterior – como em Carnaval dos Girondinos, 1906; as Batalhas de Flores no Palácio de Cristal e em Espinho, 1907; a Visita de D. Manuel II ao Porto, 1908; os retratos de António José de Almeida, Bernardino Machado, etc –, tinham curso apenas no âmbito do espectáculo das vistas estereoscópicas ou eram aceites pelo autor nas suas provas impressas?


 Ficam por esclarecer algumas questões determinantes, enquanto o material original não for estudado e exposto, e permanece a dúvida, com a recuperação dos negativos que tem vindo a ser feita, quanto a estar-se perante uma recreação ou manipulação das imagens fotográficas e das suas condições de exposição. A exposição do Porto levava ao excesso essa intervenção criativa, com a apresentação de montagens sequenciais e caixas de luz, e o catálogo, entretanto, orienta-se para a narrativa biográfica e histórica, deixando por analisar a prática fotográfica.


 Entretanto, tem de sublinhar-se o contributo testemunhal das imagens expostas sobre a vida quotidiana no início do século, especialmente a da sua cidade do Porto: as ruas, as festividades e os acontecimentos políticos (os comícios, o 5 de Outubro em Lisboa), a actividade comercial, os transportes, a vida social e cultural (o Photo-Velo Club, de 1900, por exemplo), os desportos, etc, com extensão a Paris, na Exposição Universal de 1900. É um imenso património iconográfico que assim se põe em circulação, mesmo que se desconheça ainda se essas imagens têm, de facto, um ou vários autores.

sábado, 16 de outubro de 1999

1999, "O SÉCULO DO CORPO", CULTURGEST

 Os corpos do século 

16-10-99


O SÉCULO DO CORPO

Culturgest/CGD (Até 29 de Dezembro)

SEM catálogo, a exposição da Culturgest é um corpo amputado. Não se exigia um álbum luxuoso, que só os direitos de autor tornariam de preço proibitivo, uma vez que esta é uma mostra inédita e não uma co-produção com circulação internacional assegurada. Também não é só uma questão de princípio: são tão poucas as imagens que se viram, é tão grande a carência de traduções das obras de referência e mesmo tão escassa a circulação de catálogos estrangeiros, que inevitavelmente faltam as referências indispensáveis para saber situar, associar e atribuir sentido às obras que se mostram.

O «jornal» editado para a ocasião não chega a servir de guia aos núcleos da montagem (também não há textos de parede), não identifica como autores, quando não se trata de imagens anónimas, os fotógrafos expostos (as tabelas ficam-se pelos dados mínimos) e nem mesmo se deixa um registo das peças mostradas que nos venha a garantir que, antes do século ter terminado, se expôs em Lisboa o Adão e Eva de Frank Eugene, de 1905, publicado na «Camera Work» nº 30, em 1910, ou o auto-retrato de Lee Friedlander Canyon of Chelly, Arizona, 1983. O propósito foi meritório mas teria sido preferível que se adequasse a dimensão do projecto aos meios disponíveis e, se estes não chegavam para um século, mostrassem-se só duas ou três décadas nas adequadas condições, sem cortar em informação e ensaios. (Em tempo: durante dois anos a Culturgest tentou, de facto, produzir o catálogo em questão.)




Lee Friedlander, «Nu, Phoenix, Arizona, 1978»

 

Feito o aviso, deve dizer-se que o espectáculo das imagens – o espectáculo dos corpos exibidos, esplendorosos ou mortificados, e também o das fotografias expostas – é aliciante.

Um século de fotografias, sintetizado em 540 obras, podia apresentar-se num alinhamento monótono de cronologias ou disciplinas. Em vez disso, a arquitectura difícil da Culturgest foi transformada num percurso animado por sucessivos espaços e núcleos diferenciados. O tema geral fragmenta-se em capítulos que vão renovando sempre as pistas de abordagem e confrontando datas, linguagens e géneros (temáticos e sexuais), com uma desordem aparente que estimulará a perspicácia do espectador. A fotografia – se existe uma entidade única que agregue a infinidade dos processos técnicos e dos usos das imagens fotográficas – expõe-se em toda a sua imensa diferença de técnicas, suportes, formatos, intenções e destinos sociais.

Mostram-se fotogravuras, uma ou outra albumina, alguns postais, platinas, cópias de transparências para lanternas de projecção, as habituais provas de halogenetos de prata, cibachromes, impressões de polaroides gigantes, um tapete de revistas de moda, um poster de Olivero Toscani para a Benetton. E também reproduções fotográficas de imagens científicas obtidas em ecrãs electrónicos por novos meios de diagnóstico ou investigação, como os ultra-sons e as ressonâncias magnéticas. Mostram-se imagens de circulação clandestina, fotografias que desde o início foram candidatas à condição da arte (destinadas à exposição) e outras reconhecidas como tal depois de terem cumprido a sua função primeira, a publicação na imprensa periódica, nos casos da moda, do desporto ou da reportagem – as imagens terríveis dos campos de concentração, de Lee Miller, Prisioneiros com restos humanos, Buchenwald, 1945, e John Phillips, Danzig, Polónia: o fim da guerra pára a transformação de corpos em sabão, 1945).

Na concepção e na montagem, «O Século do Corpo» recorda «À Prova de Água», que a Expo'98 e Jorge Calado mostraram no CCB, e valerá a pena, porque houve catálogo (embora tardio), revisitar alguns dos núcleos onde o corpo era o fio condutor: «Na Praia», «Natação», «Lavagens» e «Águas Humanas». Tal como então sucedia, o itinerário é balizado por instalações fotográficas: «Microcosmos (O Corpo Torna-se Corpo)» – começa-se com a formação da vida e a evidência neutra do corpo físico (Chuck Close), as novas possibilidades e escalas do olhar, a arte e a ciência; adiante Mar de Sol, do escultor (?) inglês Andrew Sabin, é uma construção labiríntica que representa a «Mente (O Labirinto da Memória)»; depois, a passagem nocturna e a paisagem «abstracta» do interior do corpo, «Investigação (Os Olhos da Ciência)»; por fim, «Macrocosmos (Corpos Celestes»), de Pierre Radisic, fazendo do erotismo da pele a promessa dos céus. A marcar emblematicamente o acesso à mostra há ainda o voyeurismo genial de Helmut Newton (o díptico Elas Avançam, Nuas e Vestidas, Paris, 1981), a sublinhar outro dos pares essenciais, nu e vestido, num trajecto que se fará sempre entre dualidades e cruzamentos: homem e mulher, vida e morte, juventude e velhice, público e privado, prazer e dor, exterior e interior, matéria e espírito, apolíneo e dionisíaco, etc.




Clarence H. White e Alfred Stieglitz, «Torso», 1909 (fotogravura publicada na revista «Camera Work»),

 

Entretanto, sucedem-se os capítulos decisivos da mostra, estruturados por tópicos que se abrem sempre a leituras plurais. Primeiro, «O Olhar (O Espelho da Alma») e «Carne (A Condição Universal»: o retrato e a identidade pessoal, o rosto e o corpo inteiro, reais ou manipulados; depois, a materialidade física, até ao informe (Leon Levinstein, Conney Island, c. 1950). Mas as pistas baralham-se e ambas as secções dedicam especial atenção à passagem e efeitos do tempo (Nicholas Nixon e Giacomelli, Avedon e os retratos do pai, em «O Olhar»), ou às idades do corpo sentidas na intimidade dos laços pessoais com os modelos (Emmet Gowin e Sally Mann).

Adiante, «Ícone (Ídolos e Ideais)» percorre uma galeria de paradigmas da beleza, do nu simbolista aos corpos míticos do cinema e da moda, passando pelos cultos da forma física (o método Desbonnet e o naturismo). Faltam aqui os corpos maquínicos e urbanizados dos anos 20 (Rodchenko e Moholy-Nagy, dois ausentes) e a sua conversão em heróis do povo ou da raça. «Gesto (A Linguagem do Corpo)» vai das tatuagens e das máscaras, SM ou étnicas, com trânsito pelo desporto e a dança, até à área da «body art» (o pioneiro Schwarzkogler, accionista vienense), destacando os rituais fotográficos de Dietter Appelt e a experiência da natureza do finlandês Arno Rafael Minkkinen.

«Desejo (Eros e Vénus)» concentra-se nas convenções e descobertas do erotismo (Christer Stromholm, Sem Título, c. 1955), enquanto «Dor (O Corpo Atormentado)» e «Poder (O Corpo como Campo de Batalha») fazem a chamada à realidade do corpo vulnerável à doença e ao mal, mostrando que este foi o século das mais extremas formas de aniquilamento, desde as trincheiras de 14-18 até aos campos de extermínio. Entretanto, se esses núcleos acentuam a condição social do corpo, «Forma (Objectos de Beleza)» faz o inventário das suas modalidades mais formalmente fotográficas, por uma longa sequência de sub-capítulos: «Fragmentos», «Figuras Humanas», «Geometrias», «Metamorfoses» e «Prazeres». Por fim, «Ficção (O Sonho do Corpo)» propõe-nos os espelhos do imaginário. Mas as secções nunca são estanques e muitas das imagens poderiam trocar de lugar.




Imogen Cunningham, «Nu, 1932»

 

As fotografias, provas de época e peças de colecção (não as habituais reproduções que uniformizam as dimensões e as qualidades materiais das imagens) vieram de museus, galerias e acervos particulares de todo o mundo e também dos artistas. Por exemplo, do Musée de L'Elysée de Lausanne – de que William Ewing (1), o comissário da mostra, é director (sucedendo a Charles-Henri Favrot) – , da Maison Européenne de Paris, do Museu Nicéphore Niépce de Chalons-sur-Saône, do Met de Nova Iorque, da National Gallery de Ottava, do Museu Ludwig de Colónia, do Fotomuseum/Stadtmuseum de Munique, etc. De Portugal, apenas uma fotografia, de José Manuel Rodrigues (Odivelas, 1997), a recordar com toda a justiça a sua recente retrospectiva na Culturgest (mas teria sido positivo se W. Ewing, que trouxe tantos fotógrafos suíços, aproveitasse a missão para lançar um olhar exterior sobre os nossos corpos e «corpus» fotográficos).

A propósito, convém assinalar a opção centralista e eurocêntrica que marca esta exposição – algo distanciada da lógica multiculturalista da programação da própria Culturgest («Uma Casa do Mundo») e também contrária, aliás, à acertada atenção às diferenças dos olhares sobre o corpo que guiou o projecto, nomeadamente quanto às que terão por origem ou por projecto assumido a diversidade dos sexos e das opções sexuais.

No século XIX, a fotografia é quase sempre uma actividade profissional ou artística masculina (Lady Hawarden e Julia Margaret Cameron foram casos raríssimos) e por maioria de razão o foi a fotografia do nu, que como «modelos para artistas» ou com intenção manifestamente «licenciosa» punha em cena os códigos do erotismo masculino com recurso a modelos profissionais e prostitutas. O corpo do homem foi mais raramente representado e o homoerotismo teve presença ambígua em algumas «academias» ou «nus estéticos», tornando-se mais explícito, nos anos 80, em Wilhelm von Gloeden (vejam-se ainda os adolescentes pseudo-clássicos de Sem título, c. 1910).




Arno Rafael Minkkinen, «Krupio, Finlândia, 1987»

 

A desigualdade sexual começou a mudar com o modernismo picturialista – com Gertrud Käsebier, Alice Boughton (Areia e Rosas Selvagens, 1909, da «Camera Work») e Anne Brigman (Alma do Pinheiro Destruído, 1907) – e muda mais radicalmente com o modernismo realista de Imogen Cunningham (que principiou por ser também picturialista e de que a exposição exibe cinco provas, reconhecendo-lhe o lugar magistral) ou, por exemplo, das não representadas Margarethe Mather e Tina Modoti (fotógrafas, modelos e amantes de Edward Weston). O reconhecimento do pleno estatuto artístico da fotografia e a admissão frequente do nu nas exposições foram coincidentes no tempo, e, ainda que começassem por seguir-se as regras de composição e os padrões simbólicos legitimados pela pintura, há uma evolução essencial da representação dos corpos que tem a ver com a possibilidade de se substituir os modelos profissionais, com as suas poses estereotipadas, por modelos ocasionais e «amadores», de quem é legítimo supor a cumplicidade e mesmo a co-autoria dos resultados fotográficos.

O Torso de 1907 («Camera Work», 1909) de Clarence H. White e Alfred Stieglitz é uma obra marcante; uma década depois, Stieglitz abandona a caução simbolista pela abordagem realista e «puramente» fotográfica, mas também já cruamente sexuada, da longa série de retratos de Georgia O'Keeffe, que viria a ser sua mulher e pintora de consagrada carreira (a sua ausência na exposição, como, mais tarde, de Kiki de Montparnasse, se não erro, é a vários títulos lamentável). Essas fotografias estão na origem dos nus de Weston (mostram-se três ou quatro das suas fotografias de 1936, feitas com Charis Wilson em Oceano e Santa Mónica), numa direcção que será ainda aprofundada genialmente por Lee Friedlander (Nu, Phoenix, Arizona, 1978). Já com outra lógica, o sentido da intimidade com os modelos, como se de fotografias de família se tratasse, continuará com Harry Callaham (Eleanor, Aix-en-Provence, c.1958) e Emmet Gowin (Edith e Elijah, Newtown, Pensilvânia, 1974) e também com Nicholas Nixon e Sally Mann. Por outro lado, os enquadramentos muito fechados praticados por Stieglitz são paradigmáticos da estratégia do fragmento explorada pelo modernismo vanguardista (o capítulo dedicado ao fragmento começa com fotografias médicas de 1925).

Parte substancial da exposição é dedicada à fotografia feita por mulheres (outros nomes: Claude Cahun, Laure Albin-Guillot, Helen Levitt, Dianne Arbus, Francesca Woodman, Nam Goldin, Ann Mandelbaum). Passam por elas a desconstrução das imagens idealizadas ou dominadoras e diferentes relações entre sujeito e objecto, mesmo se não será viável isolar um modo de olhar feminino. Uma outra linha de afirmação de diferenças é a que se estabelece através da larga presença da visão erótica homossexual masculina, desde Wilhelm Plüschow e Vicenzo Galdi, com a produção da Western Photo Gilde, depois através de grandes nomes da fotografia de moda como George Hoyningen-Huené, Horst P. Horst, George Platt Lynes, Herbert List, até Mapplethorp (faltando Bruce Weber).


É todo um outro campo de necessárias diferenciações, o dos olhares exteriores ao centralismo ocidental, que a exposição deixa por explorar, com a excepção breve de alguns japoneses (Eikoh Hosoe, Araki e poucos mais), Alvarez Bravo, evidentemente, e as participações isoladas do cubano Julio Mitchel ou da colombiana Lucana. A fotografia etnográfica e/ou exótica foi muito abundante no séc. XIX, mas, para além de George Rodger e Leni Riefenstahl, as fronteiras do mundo continuaram ainda a abrir-se com Pierre Verger, em África e no Brasil, a descoberta do paraíso amazónico fez-se com José Medeiros, Maureen Bisilliat ou Claudia Andújar, surgiram fotógrafos africanos como Malick Sibidé, Samuel Fosso ou Rotimi Fani-Kayode. Na América Latina, o trabalho escultural feito com o corpo é diferente nas fotografias de Mário Cravo Neto, Gerardo Suter, Luis González Palma ou Marta Maria Paráez Bravo.

Por último, há ainda que questionar a legitimidade do título. Este não foi, de facto, «O Século do Corpo», o qual já tinha sido exaustivamente explorado e consumido no séc. XIX, logo a partir de 1840 com os primeiros daguerreotipistas. Na pintura e na escultura, o rosto e o corpo fazem uma travessia do século em grande parte subterrânea, ocultados pela iconoclastia da abstracção e recalcados pelas idealizações das vanguardas, como mostrou a decisiva exposição de Jean Clair, em 1995, na Bienal de Veneza. Os muitos corpos fotográficos do século são os da proliferação da imagem impressa, durante muitas décadas essencialmente empenhada no inventário e denúncia das desordens do mundo e da opressão dos povos; só a partir de meados dos anos de 70, o trabalho sobre e com o corpo voltou a ocupar um largo lugar (predominantemente narcísico) na criação fotográfica. O título proposto é mais mediático que justo.


(1) Autor do livro The Body (Photoworks of the Human Form), ed. Thames and Hudson, 1994. 


Organizada em doze secções - Microcosmos, O Olhar, Carne, Mente, Ícone, Gesto, Desejo, Forma, Dor, Poder, Investigação e Ficção – a mostra percorre as diversas áreas em que a fotografia se relaciona com o corpo, como a dança e o desporto, a medicina, a antropologia, a publicidade, a reportagem, a arte, num panorama que inclui muitos dos melhores fotógrafos do século.