sábado, 16 de outubro de 1999

1999, "O SÉCULO DO CORPO", CULTURGEST

 Os corpos do século 

16-10-99


O SÉCULO DO CORPO

Culturgest/CGD (Até 29 de Dezembro)

SEM catálogo, a exposição da Culturgest é um corpo amputado. Não se exigia um álbum luxuoso, que só os direitos de autor tornariam de preço proibitivo, uma vez que esta é uma mostra inédita e não uma co-produção com circulação internacional assegurada. Também não é só uma questão de princípio: são tão poucas as imagens que se viram, é tão grande a carência de traduções das obras de referência e mesmo tão escassa a circulação de catálogos estrangeiros, que inevitavelmente faltam as referências indispensáveis para saber situar, associar e atribuir sentido às obras que se mostram.

O «jornal» editado para a ocasião não chega a servir de guia aos núcleos da montagem (também não há textos de parede), não identifica como autores, quando não se trata de imagens anónimas, os fotógrafos expostos (as tabelas ficam-se pelos dados mínimos) e nem mesmo se deixa um registo das peças mostradas que nos venha a garantir que, antes do século ter terminado, se expôs em Lisboa o Adão e Eva de Frank Eugene, de 1905, publicado na «Camera Work» nº 30, em 1910, ou o auto-retrato de Lee Friedlander Canyon of Chelly, Arizona, 1983. O propósito foi meritório mas teria sido preferível que se adequasse a dimensão do projecto aos meios disponíveis e, se estes não chegavam para um século, mostrassem-se só duas ou três décadas nas adequadas condições, sem cortar em informação e ensaios. (Em tempo: durante dois anos a Culturgest tentou, de facto, produzir o catálogo em questão.)




Lee Friedlander, «Nu, Phoenix, Arizona, 1978»

 

Feito o aviso, deve dizer-se que o espectáculo das imagens – o espectáculo dos corpos exibidos, esplendorosos ou mortificados, e também o das fotografias expostas – é aliciante.

Um século de fotografias, sintetizado em 540 obras, podia apresentar-se num alinhamento monótono de cronologias ou disciplinas. Em vez disso, a arquitectura difícil da Culturgest foi transformada num percurso animado por sucessivos espaços e núcleos diferenciados. O tema geral fragmenta-se em capítulos que vão renovando sempre as pistas de abordagem e confrontando datas, linguagens e géneros (temáticos e sexuais), com uma desordem aparente que estimulará a perspicácia do espectador. A fotografia – se existe uma entidade única que agregue a infinidade dos processos técnicos e dos usos das imagens fotográficas – expõe-se em toda a sua imensa diferença de técnicas, suportes, formatos, intenções e destinos sociais.

Mostram-se fotogravuras, uma ou outra albumina, alguns postais, platinas, cópias de transparências para lanternas de projecção, as habituais provas de halogenetos de prata, cibachromes, impressões de polaroides gigantes, um tapete de revistas de moda, um poster de Olivero Toscani para a Benetton. E também reproduções fotográficas de imagens científicas obtidas em ecrãs electrónicos por novos meios de diagnóstico ou investigação, como os ultra-sons e as ressonâncias magnéticas. Mostram-se imagens de circulação clandestina, fotografias que desde o início foram candidatas à condição da arte (destinadas à exposição) e outras reconhecidas como tal depois de terem cumprido a sua função primeira, a publicação na imprensa periódica, nos casos da moda, do desporto ou da reportagem – as imagens terríveis dos campos de concentração, de Lee Miller, Prisioneiros com restos humanos, Buchenwald, 1945, e John Phillips, Danzig, Polónia: o fim da guerra pára a transformação de corpos em sabão, 1945).

Na concepção e na montagem, «O Século do Corpo» recorda «À Prova de Água», que a Expo'98 e Jorge Calado mostraram no CCB, e valerá a pena, porque houve catálogo (embora tardio), revisitar alguns dos núcleos onde o corpo era o fio condutor: «Na Praia», «Natação», «Lavagens» e «Águas Humanas». Tal como então sucedia, o itinerário é balizado por instalações fotográficas: «Microcosmos (O Corpo Torna-se Corpo)» – começa-se com a formação da vida e a evidência neutra do corpo físico (Chuck Close), as novas possibilidades e escalas do olhar, a arte e a ciência; adiante Mar de Sol, do escultor (?) inglês Andrew Sabin, é uma construção labiríntica que representa a «Mente (O Labirinto da Memória)»; depois, a passagem nocturna e a paisagem «abstracta» do interior do corpo, «Investigação (Os Olhos da Ciência)»; por fim, «Macrocosmos (Corpos Celestes»), de Pierre Radisic, fazendo do erotismo da pele a promessa dos céus. A marcar emblematicamente o acesso à mostra há ainda o voyeurismo genial de Helmut Newton (o díptico Elas Avançam, Nuas e Vestidas, Paris, 1981), a sublinhar outro dos pares essenciais, nu e vestido, num trajecto que se fará sempre entre dualidades e cruzamentos: homem e mulher, vida e morte, juventude e velhice, público e privado, prazer e dor, exterior e interior, matéria e espírito, apolíneo e dionisíaco, etc.




Clarence H. White e Alfred Stieglitz, «Torso», 1909 (fotogravura publicada na revista «Camera Work»),

 

Entretanto, sucedem-se os capítulos decisivos da mostra, estruturados por tópicos que se abrem sempre a leituras plurais. Primeiro, «O Olhar (O Espelho da Alma») e «Carne (A Condição Universal»: o retrato e a identidade pessoal, o rosto e o corpo inteiro, reais ou manipulados; depois, a materialidade física, até ao informe (Leon Levinstein, Conney Island, c. 1950). Mas as pistas baralham-se e ambas as secções dedicam especial atenção à passagem e efeitos do tempo (Nicholas Nixon e Giacomelli, Avedon e os retratos do pai, em «O Olhar»), ou às idades do corpo sentidas na intimidade dos laços pessoais com os modelos (Emmet Gowin e Sally Mann).

Adiante, «Ícone (Ídolos e Ideais)» percorre uma galeria de paradigmas da beleza, do nu simbolista aos corpos míticos do cinema e da moda, passando pelos cultos da forma física (o método Desbonnet e o naturismo). Faltam aqui os corpos maquínicos e urbanizados dos anos 20 (Rodchenko e Moholy-Nagy, dois ausentes) e a sua conversão em heróis do povo ou da raça. «Gesto (A Linguagem do Corpo)» vai das tatuagens e das máscaras, SM ou étnicas, com trânsito pelo desporto e a dança, até à área da «body art» (o pioneiro Schwarzkogler, accionista vienense), destacando os rituais fotográficos de Dietter Appelt e a experiência da natureza do finlandês Arno Rafael Minkkinen.

«Desejo (Eros e Vénus)» concentra-se nas convenções e descobertas do erotismo (Christer Stromholm, Sem Título, c. 1955), enquanto «Dor (O Corpo Atormentado)» e «Poder (O Corpo como Campo de Batalha») fazem a chamada à realidade do corpo vulnerável à doença e ao mal, mostrando que este foi o século das mais extremas formas de aniquilamento, desde as trincheiras de 14-18 até aos campos de extermínio. Entretanto, se esses núcleos acentuam a condição social do corpo, «Forma (Objectos de Beleza)» faz o inventário das suas modalidades mais formalmente fotográficas, por uma longa sequência de sub-capítulos: «Fragmentos», «Figuras Humanas», «Geometrias», «Metamorfoses» e «Prazeres». Por fim, «Ficção (O Sonho do Corpo)» propõe-nos os espelhos do imaginário. Mas as secções nunca são estanques e muitas das imagens poderiam trocar de lugar.




Imogen Cunningham, «Nu, 1932»

 

As fotografias, provas de época e peças de colecção (não as habituais reproduções que uniformizam as dimensões e as qualidades materiais das imagens) vieram de museus, galerias e acervos particulares de todo o mundo e também dos artistas. Por exemplo, do Musée de L'Elysée de Lausanne – de que William Ewing (1), o comissário da mostra, é director (sucedendo a Charles-Henri Favrot) – , da Maison Européenne de Paris, do Museu Nicéphore Niépce de Chalons-sur-Saône, do Met de Nova Iorque, da National Gallery de Ottava, do Museu Ludwig de Colónia, do Fotomuseum/Stadtmuseum de Munique, etc. De Portugal, apenas uma fotografia, de José Manuel Rodrigues (Odivelas, 1997), a recordar com toda a justiça a sua recente retrospectiva na Culturgest (mas teria sido positivo se W. Ewing, que trouxe tantos fotógrafos suíços, aproveitasse a missão para lançar um olhar exterior sobre os nossos corpos e «corpus» fotográficos).

A propósito, convém assinalar a opção centralista e eurocêntrica que marca esta exposição – algo distanciada da lógica multiculturalista da programação da própria Culturgest («Uma Casa do Mundo») e também contrária, aliás, à acertada atenção às diferenças dos olhares sobre o corpo que guiou o projecto, nomeadamente quanto às que terão por origem ou por projecto assumido a diversidade dos sexos e das opções sexuais.

No século XIX, a fotografia é quase sempre uma actividade profissional ou artística masculina (Lady Hawarden e Julia Margaret Cameron foram casos raríssimos) e por maioria de razão o foi a fotografia do nu, que como «modelos para artistas» ou com intenção manifestamente «licenciosa» punha em cena os códigos do erotismo masculino com recurso a modelos profissionais e prostitutas. O corpo do homem foi mais raramente representado e o homoerotismo teve presença ambígua em algumas «academias» ou «nus estéticos», tornando-se mais explícito, nos anos 80, em Wilhelm von Gloeden (vejam-se ainda os adolescentes pseudo-clássicos de Sem título, c. 1910).




Arno Rafael Minkkinen, «Krupio, Finlândia, 1987»

 

A desigualdade sexual começou a mudar com o modernismo picturialista – com Gertrud Käsebier, Alice Boughton (Areia e Rosas Selvagens, 1909, da «Camera Work») e Anne Brigman (Alma do Pinheiro Destruído, 1907) – e muda mais radicalmente com o modernismo realista de Imogen Cunningham (que principiou por ser também picturialista e de que a exposição exibe cinco provas, reconhecendo-lhe o lugar magistral) ou, por exemplo, das não representadas Margarethe Mather e Tina Modoti (fotógrafas, modelos e amantes de Edward Weston). O reconhecimento do pleno estatuto artístico da fotografia e a admissão frequente do nu nas exposições foram coincidentes no tempo, e, ainda que começassem por seguir-se as regras de composição e os padrões simbólicos legitimados pela pintura, há uma evolução essencial da representação dos corpos que tem a ver com a possibilidade de se substituir os modelos profissionais, com as suas poses estereotipadas, por modelos ocasionais e «amadores», de quem é legítimo supor a cumplicidade e mesmo a co-autoria dos resultados fotográficos.

O Torso de 1907 («Camera Work», 1909) de Clarence H. White e Alfred Stieglitz é uma obra marcante; uma década depois, Stieglitz abandona a caução simbolista pela abordagem realista e «puramente» fotográfica, mas também já cruamente sexuada, da longa série de retratos de Georgia O'Keeffe, que viria a ser sua mulher e pintora de consagrada carreira (a sua ausência na exposição, como, mais tarde, de Kiki de Montparnasse, se não erro, é a vários títulos lamentável). Essas fotografias estão na origem dos nus de Weston (mostram-se três ou quatro das suas fotografias de 1936, feitas com Charis Wilson em Oceano e Santa Mónica), numa direcção que será ainda aprofundada genialmente por Lee Friedlander (Nu, Phoenix, Arizona, 1978). Já com outra lógica, o sentido da intimidade com os modelos, como se de fotografias de família se tratasse, continuará com Harry Callaham (Eleanor, Aix-en-Provence, c.1958) e Emmet Gowin (Edith e Elijah, Newtown, Pensilvânia, 1974) e também com Nicholas Nixon e Sally Mann. Por outro lado, os enquadramentos muito fechados praticados por Stieglitz são paradigmáticos da estratégia do fragmento explorada pelo modernismo vanguardista (o capítulo dedicado ao fragmento começa com fotografias médicas de 1925).

Parte substancial da exposição é dedicada à fotografia feita por mulheres (outros nomes: Claude Cahun, Laure Albin-Guillot, Helen Levitt, Dianne Arbus, Francesca Woodman, Nam Goldin, Ann Mandelbaum). Passam por elas a desconstrução das imagens idealizadas ou dominadoras e diferentes relações entre sujeito e objecto, mesmo se não será viável isolar um modo de olhar feminino. Uma outra linha de afirmação de diferenças é a que se estabelece através da larga presença da visão erótica homossexual masculina, desde Wilhelm Plüschow e Vicenzo Galdi, com a produção da Western Photo Gilde, depois através de grandes nomes da fotografia de moda como George Hoyningen-Huené, Horst P. Horst, George Platt Lynes, Herbert List, até Mapplethorp (faltando Bruce Weber).


É todo um outro campo de necessárias diferenciações, o dos olhares exteriores ao centralismo ocidental, que a exposição deixa por explorar, com a excepção breve de alguns japoneses (Eikoh Hosoe, Araki e poucos mais), Alvarez Bravo, evidentemente, e as participações isoladas do cubano Julio Mitchel ou da colombiana Lucana. A fotografia etnográfica e/ou exótica foi muito abundante no séc. XIX, mas, para além de George Rodger e Leni Riefenstahl, as fronteiras do mundo continuaram ainda a abrir-se com Pierre Verger, em África e no Brasil, a descoberta do paraíso amazónico fez-se com José Medeiros, Maureen Bisilliat ou Claudia Andújar, surgiram fotógrafos africanos como Malick Sibidé, Samuel Fosso ou Rotimi Fani-Kayode. Na América Latina, o trabalho escultural feito com o corpo é diferente nas fotografias de Mário Cravo Neto, Gerardo Suter, Luis González Palma ou Marta Maria Paráez Bravo.

Por último, há ainda que questionar a legitimidade do título. Este não foi, de facto, «O Século do Corpo», o qual já tinha sido exaustivamente explorado e consumido no séc. XIX, logo a partir de 1840 com os primeiros daguerreotipistas. Na pintura e na escultura, o rosto e o corpo fazem uma travessia do século em grande parte subterrânea, ocultados pela iconoclastia da abstracção e recalcados pelas idealizações das vanguardas, como mostrou a decisiva exposição de Jean Clair, em 1995, na Bienal de Veneza. Os muitos corpos fotográficos do século são os da proliferação da imagem impressa, durante muitas décadas essencialmente empenhada no inventário e denúncia das desordens do mundo e da opressão dos povos; só a partir de meados dos anos de 70, o trabalho sobre e com o corpo voltou a ocupar um largo lugar (predominantemente narcísico) na criação fotográfica. O título proposto é mais mediático que justo.


(1) Autor do livro The Body (Photoworks of the Human Form), ed. Thames and Hudson, 1994. 


Organizada em doze secções - Microcosmos, O Olhar, Carne, Mente, Ícone, Gesto, Desejo, Forma, Dor, Poder, Investigação e Ficção – a mostra percorre as diversas áreas em que a fotografia se relaciona com o corpo, como a dança e o desporto, a medicina, a antropologia, a publicidade, a reportagem, a arte, num panorama que inclui muitos dos melhores fotógrafos do século. 

sábado, 10 de julho de 1999

1999, NOTAS fotografia

 Carlos Guarita 

Arquivo Fotográfico 

17-07-99

Foto-repórter de carreira inglesa (nasceu em Londres de pais emigrantes, em 1946), Carlos Guarita publicou trabalhos nos grandes magazines internacionais e ganhou em 1995 um primeiro prémio World Photo Press com a série «Teatro de Guerra», sobre os mercados de equipamentos bélicos. Em «Teatro das Estações» apresenta um projecto inédito desenvolvido desde há vários anos em torno das manifestações rituais que assinalam as mudanças das estações e, em especial, a chegada da primavera. Enquadrada por duas fotografias do pôr do sol visto do interior da sala do trono do palácio de Cnossos, em Creta, nos solstícios de Verão e de Inverno (observação de um alinhamento arquitectónico que terá passado despercebido aos arqueólogos), a exp. reúne 40 imagens a preto e branco realizadas principalmente em Inglaterra e Portugal, mas também em diversos outros países europeus, em meios rurais e urbanos, testemunhando cerimónias colectivas e práticas festivas ou ritualizadas, que em geral têm em comum o culto da árvore e a celebração da natureza (cruzes de Maio, ramos bentos, etc). Identificado pelo autor como um «documentário subjectivo» e um projecto de «trabalho sem fim: fotografar a dança da vida», este é também um projecto com interesse antropológico, que foi acompanhado pela edição de um catálogo. (Até 14 Ago.)  



Claude Fauville , Mitra  20-11-99 

«Através da perfeição e da poesia das imagens, confronta-nos, de forma serena e espontânea, com a evidência das imagens», assegura o prefaciador João Soares, que acumula a função com as de presidente da Câmara e conselheiro de Estado. Expõem-se quase duas centenas de provas a preto e branco de pequeno formato, sob o nome «Choréographie du Trouble», todas elas fotografias de nu, feminino, garantidamente artísticas por efeitos de panejamentos e lamas, desfocagens, projectores de estúdio e trucagens de laboratório, poses de escultura antiga ou contorções esforçadas dos modelos (com um volumoso catálogo, ed. CML). O autor é belga e não se destacou por qualquer contribuição original feita a um género particularmente frequente (e, por isso mesmo, exigente), pelo que não se entendem as prioridades da Divisão de Equipamentos Culturais, para além da conveniência de «animar» uma galeria bissexta. Mas a promoção camarária diz que «C.F. oferece matéria visual para uma reflexão sociológica sobre o panorama da arte actual, propondo várias leituras sobre a nudez e a consciência do corpo». Falta referir uma série de fotografias um pouco mais «ousadas», feitas em planos aproximados talvez de inspiração médica, editada em livro numa colecção especializada: são as «Pisseuses», revisitação de um tema que já motivara Rembrandt e Picasso, e que Emmet Gowin e Sally Mann tinham tratado de um modo não voyeurista. (Até 2 Jan.)  


Eva Besnyo 

Cadeia da Relação, Porto 

16-10.99

Húngara como tantos outros grandes fotógrafos, instalada em Amsterdão desde 1932, não é um nome conhecido, mas descobre-se com imenso prazer e proveito, graças a José Manuel Rodrigues, vindo da Holanda e que algo lhe ficou a dever (como Ed Van der Elsken, exposto há tempos). O empenhamento do seu olhar não cabe nas classificações estilísticas (modernismo, construtivismo, humanismo...) e alimenta-se sempre de uma emocionante intimidade com os modelos, como se tudo passasse pelo seu quotidiano pessoal. Os retratos são admiráveis (foi amiga da grande pintora Charley Toorop) e as fotografias de crianças estão no topo do «género»; o catálogo é uma excelente edição. (Até dom.)


Gérard Castello-Lopes 

Casa Fernando Pessoa 

04-12-1999

 Em 1991, para a Europália, Castello-Lopes retratou Vasco Graça Moura procurando aproximar-se fotograficamente da sua poesia - a transcrição dos versos «o mundo não aguenta a narração de mais nada» e a exibição do livro Mimesis de Erich Auerbach foram dois momentos centrais do trabalho então publicado em A Imagem das Palavras (ed. Contexto), um projecto de Eduardo Prado Coelho prefaciado por João Pinharanda. Anos depois foi o poeta que escreveu «onze poemas de circunstância e um labirinto sobre imagens de Gérard Castello-Lopes», escolhidas por ele e em vários casos de muito recente realização. As duas exposições apresentam-se em dois pisos da Casa, «Em demanda de Moura» (referindo o poeta e não a vila alentejana) e «Giraldomachias» (invocando Gérard), a segunda instalando fotografias e poemas no mesmo espaço, e ambas reunidas, em textos e imagens, com posfácios inéditos dos dois autores, deram origem a um livro único de título e autoria duplos, que teve péssima realização editorial da Quetzal, esperando-se que uma noção mínima de dignidade profissional determine uma imediata segunda tiragem. Às exposições se terá de voltar.  



Gil Bensmana 

ImagoLucis, Porto 

27-05.99

Um fotógrafo francês de origem argelina apresenta um conjunto de trabalhos em que a presença da luz com que a película é impressionada surge apenas assegurada pelo uso de uma gambiarra eléctrica que envolve os corpos, sendo por vezes igualmente incorporada na prova impressa em exposição. Noutra série (os dípticos Iconografia da Alma), à iluminação do corpo pelo mesmo sistema, do qual resulta um desenho de manchas quase reduzidas aos contornos, sucede-se a manifestação do seu rasto luminoso, como o registo de uma aura, uma presença ausente. Mais do que um exercício tecnicista e uma «reflexão» sobre o processo fotográfico, é a intensidade erótica das imagens que assim se afirma, no primeiro caso citando explicitamente a sensorialidade barroca dos efeitos de luz do Êxtase de Santa Teresa de Bernini. Note-se ainda a coerência material das relações entre os suportes fotográficos e as caixas-objectos que os incluem. (Até 8 Jun.)


Keil do Amaral 

Museu da Cidade 

14-04-99

Em 1954 e 55, as 8ª e 9ª Exposições Gerais de Artes Plásticas incluíram secções de fotografia, em que K.A. participou ao lado de Victor Palla, Bento d'Almeida, Augusto Cabrita e outros. O facto, que não consta da cronologia publicada no volume que a Câmara Municipal de Lisboa dedicou ao arquitecto mas é referido na recente história de António Sena, desmente um texto anónimo de parede que abre a presente mostra, onde se faz suceder à participação no Inquérito à Arquitectura Regional a «vontade de se dedicar à fotografia, entendida, acima de tudo, como passatempo». Keil do Amaral não poderá ser visto como um grande fotógrafo desconhecido, mas «passatempo» (algo menos que «hobby») é uma palavra inadequada para caracterizar uma prática que integrou o processo subterrâneo e disperso de renovação da fotografia nos anos 50, interessado em conhecer o país e em contrariar a imagem oficial da propaganda e dos salões. Apresentam-se 56 fotografias do arquivo da família - por uma vez, mostram-se provas originais, e não reimpressões, que escolhem e reinterpretam mais ou menos arbitrariamente acervos de negativos -, embora tenham faltado a investigação e o catálogo. A um núcleo de imagens do Porto, centradas na Ribeira e na Sé, mas também com estudos de árvores da Boavista, segue-se um outro conjunto situado nas Beiras, associado ao Inquérito e à origem beirã de K.A., e um terceiro conjunto, do Algarve, Lisboa e praias de Sintra. Três retratos do filho, de 1950-51 (dois com sobreposições de paredes de pedra ou de canas por dupla exposição e outro de costas em frente ao mar), são impressionantes testemunhos da inquietação de um tempo politicamente aprisionado. (Até 24)



Maria Bleda/José Maria Rosa 

Gal. Pedro Oliveira  

06-11-99

Dois jovens artistas- fotógrafos espanhóis apresentam sob o título comum «Espacios Silentes» duas séries de trabalhos que desenvolvem em conjunto: «Campos de futebol» são as imagens desertas e silenciosas de espaços desportivos suburbanos, fotografados com a austera disciplina escolar dos inventários de Bernd e Hilla Becher; «Campos de batalha» é a revisitação de antigos lugares de guerras famosas, através do encontro com as respectivas paisagens actuais (regiões de montanha, terrenos agrícolas ou margem de estradas), sempre despovoadas. Cada uma delas é mostrada em dípticos de imagens sequenciais, a cores, que são acompanhadas por uma legenda impressa com a identificação do episódio histórico. Este é um roteiro de curioso interesse documental sustentado num jogo «conceptual» em que o espaço e o tempo remetem sempre para uma outra realidade ausente. (Até 12)


Mariano Piçarra 

Arquivo Fotográfico 

18-09-99 

A galeria é ocupada por 18 dípticos (quase dípticos, aliás), cada um deles constituído por uma folha original manuscrita e muito rasurada dos aforismos de José Marinho (Aforismos Sobre o que Mais Importa, Imprensa Nacional, 1994), e uma fotografia oculta sob uma portada de madeira que o observador deverá abrir e que se voltará a fechar sozinha pela força de um peso pendente. Assim exposta a escrita quase ilegível, é para a fotografia escondida que se convoca uma «leitura» demorada, atenta à delicadeza da impressão dos jogos de luz e sombra, à decifração das aparências e dos seus sentidos, à interpretação da possível conformidade com o texto junto - o qual se transcreve no catálogo e em folhas facultadas ao visitante. Datadas de 1987 a 96, localizadas de Mértola a Freixo-de-Espada-à-Cinta, estas imagens dão sequência a uma já conhecida «reflexão» sobre como se confundem no registo fotográfico as coisas e as suas sombras, prolongada pela observação da matéria em movimento, na configuração magmática de um relevo pedregoso, na ondulação de um solo vegetal ou na textura viva de uma parede, onde se inscrevem os sinais de um tempo vivido como morte e ressurreição, enquanto outras fotografias surpreendem a manifestação directa da luz, como poder de revelação (a janela fechada, o caminho entre o arvoredo) ou possibilidade da ilusão. Apreciado o trabalho anterior de M.P. («Carneiro» e «Cenotáfio», em 1993; «Obraçon», no Museu do Chiado, em 1996, ou as fotografias da Guiné, nos Encontros de Coimbra também de 96, ambos numa outra direcção documental), poderá observar-se que o presente projecto - intitulado «Grave» - faz coincidir uma insistente atracção formalista com os limites previsíveis da ambição especulativa, num processo que corre o risco de ficar ensimesmado sobre a sua retórica. O interesse do filósofo ou pensador tomado por referência será matéria controversa, mas a concepção artificiosa e rebuscada da instalação, e também do catálogo que a acompanha, carrega sobre a relação texto-imagem (e em especial sobre as fotografias) um constante efeito de sobre-design, distante da eficácia imaginativa de outras montagens do mesmo autor. (Até 16 Out.)  


Marc Riboud 

Culturgest 

 9-01-99

 Ao longo de mais de 40 anos, Riboud percorreu a China. Foi um dos primeiros fotógrafos ocidentais autorizado a visitá-la, logo em 1956, e foi construindo o mais vasto registo da sua constante transformação. Associando imagens com décadas de distância, dos rigores da construção do socialismo à recente atracção pelo mercado e os modelos ocidentais, a exp. é uma longa marcha onde a atenção inteligente aos pequenos indícios escreve a história através do quotidiano e do individual, guiada pelas legendas com os comentários do autor. Documento e interpretação, os «momentos decisivos» de M.R. não acompanham a cronologia da revolução chinesa ou a história das convulsões do regime, mas são um testemunho magnífico, um olhar interessado e crítico sobre o gigante do outro lado do mundo. É uma grande exp. que foi inaugurada em Paris em 1996, mostrada em Pequim e entrou a seguir em digressão internacional, onde está presente a melhor tradição do fotojornalismo elevado ao plano do ensaio fotográfico. (Até 21 Mar.)


Rita Barros 

111, Lisboa 

04-12-1999

 Lugar mítico e mediático, o actual Chelsea Hotel de Nova Iorque é um sobrevivente dos tempos em que o «underground» não coincidia com a superfície mais ou menos mundana do presente. Fundado em 1905, por lá passaram Mark Twain, O'Henry, Bette Davies, Pollock, Nabokov, Tenessee Williams. Rita Barros, que mora no quarto onde Arthur C. Clarke escreveu 2001, fotografa-o há 15 anos e reuniu os retratos dos vizinhos e as memórias pessoais em exposição e livro (que a CML editou, congregando apoios vários). Já publicadas algumas, as imagens mostram-se em formatos variados e repetidos, com a necessária identificação das personagens. O livro, 15 Anos no Chelsea Hotel, alarga a colecção e surge brevemente pré e pós-faciado por João Soares, Gerard Schneider, a autora, José Gil, Arnold Weinstein («poeta de teatro», biógrafo do pintor Larry Rivers), Gerard Malanga (actor de Andy Warhol, fotógrafo) e Taylord Mead («Sperstar. Arts drifter»). O inventário inclui Bon Jovi, Courtney Love e Arthur Miller, ainda a preto e branco, depois Henry Geldzahler, Barry Flanagan, Gregory Corso, James Brown, Jean Baudrillard, Don Cherrye muitos outros. É um documento. (Até 31) 


Rodchenko 

Centro Cultural de Belém 

4.9.99

Rodchenko pintou as «últimas pinturas» em 1921 e declarou extinta a pintura de cavalete (mas regressaria em 1935, com quadros de uma estranha temática circense). No contexto revolucionário da URSS, foi um dos promotores do produtivismo, que visou implicar a prática artística com a construção da nova sociedade, e passou a dedicar-se à comunicação publicitária, ao mobiliário e à cenografia. A sua actividade foi decisiva para a renovação radical que então conheceu o grafismo e a fotografia, incorporando contribuições das pesquisas sobre o espaço que tinham caracterizado o construtivismo.A exp. «A Nova Moscovo», antes inaugurada na Cadeia da Relação, no Porto, apresenta uma colecção de cerca de 90 fotografias que fizeram parte do projecto de um livro encomendado em 1933 por um instituto estatal, com paginação da sua sua mulher, Varvara Stepanova. Aí comparecem algumas das imagens mais emblemáticas das pesquisas fotográficas de Rodchenko, com as suas perspectivas vertiginosas, pontos de vista oblíquos, contrastes de luz e sombra, a composição inesperada assimétrica, e em especial algumas montagens surpreendentes, mas também outras fotos de reportagem muito mais convencionais, que parecem já satisfazer os objectivos da propaganda tal como os defensores da «fotografia proletária» a entendiam, em oposição aos desvios esquerdistas do «formalismo». Os primeiros anos da década de 30 são marcados por uma viva querela ideológica e 1933 é a data da proibição dos grupos independentes de artistas; Rodchenko estava no centro das polémicas estéticas e este projecto de livro é um evidente reflexo de tensões que assumiam então uma extrema violência.

 25.9.99

Quinze dias depois da inauguração, continuava a ler-se à entrada da exp.: «As fotografias da secção de chapas foram reproduzidas a partir de provas fotográficas originais», deficiente tradução da versão inglesa igualmente afixada: «The photos in the plate section were reproduced...» A frase foi retirada do catálogo (onde, aliás, consta «secção de ilustrações» e não de «chapas»), no qual se publicam reproduções, enquanto a exp. mostra de facto provas originais. É uma espantosa demonstração da ignorância e despreocupação dos responsáveis pelas galerias do CCB. Acresce que esta é uma deficiente representação da fotografia de Rodchenko, cujo trabalho já era então vítima (e cúmplice) da repressão estalinista, e é uma manobra promocional de uma colecção posta à venda depois da derrocada do regime soviético. O projecto de livro a publicar em 1933 sucede à expulsão do grupo Outubro, ao esmagamento da esquerda formalista e à proibição das associações de artistas. Nesse ano, R. fotografou a construção do Canal do Mar Branco, onde morreram mais de cem mil prisioneiros (os que as imagens escondem), para uma edição da «URSS em Construção». «A Nova Moscovo» é um produto híbrido e de compromisso, onde as pesquisas construtivas (os pontos de vistas elevados, etc.) se vão tornando um mero sistema de composição, onde o distanciamento (ou estranhamento, «ostranenie») teorizado por Shkovski, rompendo com a percepção habitual (o reconhecimento), dá lugar à ficção da transparência documental, onde o culto da máquina e do progresso técnico vai cedendo terreno à apologia dos «heróis do trabalho». (Até 24 Out.)  


Wim Wenders 

Instituto Alemão e FNAC 

27-02-99

Duas exp. de um grande viajante, a primeira («Foto-Jarra», em itinerância pelos Goethe Institut desde 1995) concentrada na Austrália e usando apenas o formato panorâmico; a segunda, diversa nos meios, a cor ou preto- -e-branco, e nos caminhos, com passagem por Portugal, é um «diário de bordo» («Too Shot Pictures») que faz o circuito das FNAC desde 94. A atracção pela extensão dos espaços naturais, que já se conhecera em «Written in the West» (Coimbra, 1987), prolonga-se nestas imagens do deserto australiano, semeado de escombros da civilização que a natureza irá reabsorver, por entre estranhas paisagens vindas do fundo do mar e a massa imponente do Ayers Rock, a montanha sagrada dos aborígenes. Os negativos de 6 x 17 cm devolvem-nos a magnificência da linha de horizonte e o sentido da marcha, enquanto o calor do deserto domina a cor das provas. A notar ainda o «design» original do catálogo. (Até 15 e 10 Mar.)



Lisboa Anos 90 

Arquivo Fotográfico

18-12-99 

O Arquivo Municipal retoma as encomendas a fotógrafos contemporâneos, como fizera em décadas recuadas, de modo a actualizar o seu espólio e os seus serviços com documentos actuais e novos olhares qualificados. O projecto ver-se-á em três exposições, mostrando a primeira trabalhos de António Pedro Ferreira, Michel Waldmann e Paula Ferreira, num conjunto diversificado e de grande qualidade. (Até 8 Jan.) Hoje às 18h inaugura a participação de Eurico Lino do Vale (retratos) no Convento do Salvador - Centro Magalhães Lima, ao Miradouro de Santa Luzia (Alfama).


Livro de Viagem 

Cadeia da Relação, Porto 

20-03-99

Organizada para Frankfurt 97 por Tereza Siza e já mostrada também no CCB, é uma antologia da fotografia portuguesa conduzida pelo tema da diáspora ultramarina e em geral pela ideia de viagem, tomando embora largas liberdades com tal programa de modo a incluir itinerários históricos cumpridos no interior do país (de Frederick Flower aos «pioneiros» dos anos 50/60 - mas sem Benoliel e Castello Lopes) e também autores contemporâneos alheados da observação do mundo e dos outros. A nova montagem, revista na sua sequência e algo ampliada, atribui toda uma enxovia da Cadeia à edição de Lisboa Cidade Triste e Alegre, trocando a ordem dos autores para Costa Martins/Victor Palla, sem razão compreensível, e reúne algumas páginas da maqueta original a provas oriundas de diversas colecções, mostradas sem as suas datas de reimpressão - o mesmo se passa com Fernando Lemos, embora já nos casos de Paz dos Reis e de Orlando Ribeiro se proceda à correcta datação e atribuição das novas tiragens. Entretanto, assinale-se a identificação de Agostiniano de Oliveira como autor da colecção do Museu do Dundo, antes anónima. Outra sala é atribuída a Carlos Calvet e a Paulo Nozolino, este com uma vasta selecção de 20 anos de trabalho, entrada na colecção do Centro Nacional de Fotografia sob o título «Los Angeles-Tokyo», e mais uma a Fernando Lemos e Jorge Molder, sob a epígrafe «Percursos em torno do objecto fotográfico». O gosto pelas classificações sem sentido prossegue no capítulo «Inventar um signo, revisitar uma ideia», que inclui José M. Rodrigues (portfolio «Viagem», 1997) ao lado de Helena Almeida e Valente Alves, enquanto outro espaço é intitulado «Viagens» e apresenta Aurélio Paz dos Reis, Domingos Alvão (com o trabalho no Douro para o Instituto do Vinho do Porto), Orlando Ribeiro e Albano Silva Pereira - estabelecendo também neste caso a amálgama entre projectos totalmente distintos. Do mesmo modo, «O Labirinto da Saudade» será uma designação improcedente para apresentar António Leitão Marques, António Júlio Duarte e Mariano Piçarra, com que se completa aqui a selecção contemporânea. Importa, aliás, notar o carácter sempre vago e arbitrário dos textos que acompanham os autores ou os tópicos em que se incluem, trocando a informação necessária por comentários supostamente literários (exemplo: «Inquieto e inquietante, Paulo Nozolino carrega, como aquele Fernão de Magalhães que não chegou a dar a volta ao mundo, o inconformismo com o país, a história, a claridade»). O levantamento das imagens coloniais, iniciada nos Encontros de Coimbra, é uma linha de trabalho que mereceria ser continuada. (Até 3 Abr.)  


VI Bienal de Fotografia 

Celeiro da Patriarcal, Vila Franca de Xira 

30.10.99

A difícil conjuntura política local terá favorecido uma edição defensiva, voltada para a manutenção das aquisições anteriores, sem se projectar o concurso para um nível superior de ambição, o que teria de passar pela afirmação prévia de um júri claramente prestigiado, mobilizador de participações já credenciadas ou de candidatos credenciáveis (a participação de Teresa Siza, em representação do Centro Português de Fotografia, vai no sentido da concentração e dependência face ao poder, mesmo que possa ser positiva a sua acção). Entretanto, notar-se-á um maior rigor selectivo nas admissões (42 em 102 concorrentes), que não poderia atenuar o carácter mediano e conformista da generalidade das entregas – destacando-se, além do premiado Valter Vinagre, representante da SNBA, com fotografias de uma operação cirúrgica (num p/b velado que lhes confere uma estranha densidade matérica), o brasileiro Marcelo Buainain, com um notável conjunto de imagens da Índia, e ainda João Mariano, vencedor na edição anterior. O programa prossegue com mostras locais (João Mariano e José A. Chambel, na Quinta da Piedade, a abrir hoje às 16h) e extensões a outras entidades. (Até 28 Nov.)


 

sábado, 26 de junho de 1999

1999, Madrid, PHotoEspaña 99, «Sangre Caliente»

 Sangue quente em Madrid 

26-06-1999



Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)


 

 LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até 18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz: www.photoes.com.


 «Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação»«pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.


 Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.


 


Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944


 

 Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.


 A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.


 


André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926


 

 Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.


 Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.


 Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.


 Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.


 Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.


 Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.


 Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.


 A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)