sábado, 14 de janeiro de 2023

Fátima Mendonça, 2023, Galeria 111

Fátima Mendonça, "Diário - Dias Incertos", na Galeria 111 desde dia 14 janeiro

Pode ver-se como um vocabulário, construído a partir de temas e figuras que foram surgindo ao longo da obra da Fátima, mas também apontando novas ideias, comentando factos que estavam entretanto a acontecer. Um vocabulário que seria acessível a todas as mãos, como que espontâneo, se não fosse ele pessoalíssimo, mas que assim mesmo é exemplo de uma possibilidade oferecida a todos, pelo menos a quem for capaz de abertamente falar de si, de desenhar-se, de expor-se e de observar à sua volta. Um vocabulário íntimo.
Essa abertura ao que é intimo, directamente íntimo (sem censura?) é aqui essencial e é rara: a produção de arte recobre-se em geral com citações, discursos à margem, estilos comuns, informações aprendidas e evidenciadas, “teorias”. Aqui a arte e a vida reúnem-se sem véus e dispensam doutrinas, mas não é impossível procurá-las.
De um diário se trata, como diz logo o título, surgido em tempo de pandemia e reclusão, "dias incertos" pois, divulgado à medida que os dias passavam, usando o Facebook como pista livre de comunicação e exposição, sem que desenho a desenho houvesse à partida um projecto de apresentação pública, que é habitualmente, no caso da Fátima, construído à volta de um programa, ou tema central, de uma ideia ou configuração visual a explorar. Os desenhos (pinturas sobre papel em pastel seco e pastel de óleo) foram uma necessidade, foram uma oferta livre (libertária) de comunicação interpessoal, e encontraram uma procura que os faz apresentar agora reunidos, com sucesso.
É um diário aleatório, nos assuntos referidos, ora retomados ora inéditos, e também na sua expressão gráfica, umas vezes em desenho linear e figura recortada, outras vezes com a folha preenchida, carregada, insistentemente percorrida, com fúria, com zanga?, quando o assunto é mais dramático, como tensão pessoal ou cena de guerra.
Um puzzle, ideia que a montagem irregularmente bem distribuída contempla. Os desenhos não constroem uma figura unificável nem se arrumam numa história a descobrir. São um retrato, feito de retratos e auto-retratos múltiplos que se reconhecerão ou não, em lágrimas, no corpo exposto, menina e mulher, como casa, irmãs, espelho, pesadelo ou ficção, etc (em pistas a descobrir). Aliás todos estes desenhos, de animais, árvores, flores, cenas várias, são auto-retratos ou assim podem ser vistos.



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Por vezes a arte não é um exercício só formal, uma prática escolar, uma habilidade ou amabilidade ociosa, uma diversão ou uma facilidade, uma intenção ou a ocupação de uma parede, como quase tudo que vamos vendo à nossa volta, e às vezes acontece que uma obra exposta reage (comenta, acusa, intervém), age no presente, por exemplo sobre o que é a guerra actual a que assistimos com a confortável distância do lá fora, lá longe, como aliás sempre nos aconteceu, irremediavelmente periféricos.
Será uma imagem decorativa ou será incómoda? Será só uma peça de colecção, ou de museu? Como podemos conviver com ela, se nos interpela, incomoda e desafia? E é agora o contexto, as outras imagens expostas, as obras que as acompanham, de facto como um diário nascido no tempo da pandemia, antes de ser um projecto de exposição, que lhe asseguram a urgente necessidade de comunicar.
Ainda é possível representar a História? Pintura de história? Pintura de Guerra? Acontece que esta é uma representação sentida, pessoal, e é íntima também, verdadeira, e não apenas a oportuna apropriação de uma imagem mediática, então mais vista que criada. Há afinal quem desenhe, ou pinte, aqui a pastel de óleo e pastel seco, com uma qualidade material que se sente, mais do que só se observa, e com uma intensidade emocional que se faz partilhar; e a íntima verdade que aqui assim se reconhece importa-nos.

Os aviões, com pás giratórias de helicópteros, investem sobre a paisagem, sobrevoam-na e incendeiam-se, são ameaça e ameaçados, cenário de batalha, há explosões, fogo e fumo por toda a parte, um céu opaco, os foguetes descem a tracejado e uma casa arde. É a casa que vemos noutros desenhos, protecção ou prisão. Há outros desenhos que trazem imagens de terror e morte,  rostos escondidos entre as mãos e caveiras. Mas logo aparecem flores, animais domésticos, paisagens amenas. A vida é diversa.

 

 

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“Diário - dias incertos”, até 25 Fev.


2017

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