Europália, os custos do sucesso
Expresso Cartaz, Actual, 26 Setembro 1992, pág. 4
HÁ um ano anunciou-se a reedição das exposições da Europália no Convento de Mafra, logo para Janeíro de 92; estava-se em tempo de capitalizar o êxito do festival belga e em vésperas de eleições. «Janeiropália 92» era o título do «Independente», a traduzir a leviandade com que a SEC anuncia iniciativas que não prevê cumprir e a ignorância geral sobre o estado daquele monumento e sobre as condições de climatização, segurança e cenografia necessárias às exposições.
Depois, para dar o conveniente verniz cultural ao semestre da presidência portuguesa da Comunidade, repetiram-se algumas das iniciativas da Europália, mas ficaram por concretizar as promessas feitas de mostrar «Os Mecanismos do Génio» no Palácio de Queluz, «O Triunfo do Barroco» no Centro Cultural de Belém, «Manufacturas» na Cadeia da Relação, no Porto, ou «Tríptico» na Central Tejo. Nestes três últimos casos, tais anúncios eram tão irrealistas como a ideia anterior do Convento de Mafra.
Note-se, a propósito, que a remontagem das exposições só foi possível graças à promoção de Simoneta Luz Afonso ao lugar de directora do novo Instituto Português dos Museus, uma vez que nenhum mecanismo fora previamente activado para prever a circulação das iniciativas da Europália após o termo do mandato do seu Comissariado. Várias solicitações estrangeiras não tiveram resposta, e só a exposição sobre a arte medieval se deslocou a Madrid.
Mais recentemente, após a entrega do relatório final do Comissariado da Europália, a SEC esteve na origem de outras notícias sobre o festival, de cariz menos triunfalista. O «Independente» voltou a usar um título imaginativo: «Europálida». O «Público» falou de «Um triste fim de festival», assegurando que Santana Lopes não quer pagar as dívidas da Europália. Em causa estará o esgotamento das verbas do Fundo de Fomento Cultural (que são, entretanto, o tema do mais recente folhetim editado pela SEC) e também uma reacção à transparência e ao estilo frontal usados no relatório do Comissariado.
Nesse documento, a que o Expresso teve acesso, Rui Vilar e a sua equipa esclarecem, pela primeira vez, o difícil contexto administrativo em que a operação Europália foi montada, e não se coíbem de referir, «para além dos constrangimentos financeiros, (...) inúmeras dificuldades e incompreensões» que respeitam, em grande parte, à própria SEC.
Os ditos constrangimentos iniciaram-se logo em 1989, quando o primeiro orçamento proposto se reduziu de 50.070 contos para 25 mil contos, provenientes do FFC. Em 1990, o projecto de Orçamento Geral do Estado deveria ter incluído a verba de 400 mil contos, mas a saída do Governo de Miguel Cadilhe e Teresa Gouveia acabou por gorar essa previsão; foi então atribuído apenas um subsídio de 150 mil contos, pago, parcelarmente, através do FFC. Entretanto, a emissão de uma moeda comemorativa também não se concretizou.
Foi só em 1991, o ano do próprio festival, que a Europália ficou incluída no OGE, com uma verba de 520.280 contos, acrescida de uma dotação provisional de cem mil contos. Quanto a 1992, a proposta de orçamento do Comissariado era de 330 mil contos, dos quais foram, num primeiro momento, assegurados apenas 240 mil, acabando por serem autorizados apenas 200 mil contos, com a garantia de transferência do saldo final para o FFC.
No relatório final, assinala-se a gravidade do desajustamento temporal e quantitativo entre as sucessivas fontes de receita e os programas aprovados pelo Governo e negociados com a Fundação Europália Internacional. «Para além dos cortes sucessivos», aponta-se a falta de disponibilidade orçamental durante quase metade do ano de 1990, o excessivo parcelamento na entrega dos subsídios por parte do FFC e, em especial, «o incumprimento de obrigações assumidas por parte de algumas instituições». Referindo a importância do apoio mecenático, em dinheiro (267 mil contos) e em espécies (atingindo um valor total de 402 mil contos, cerca de 30 por cento dos custos totais da realização do festival), o Comíssariado precisa que «nem sempre encontrou a compreensão e suficiente disponibilidade financeira junto da Administração Pública».
O Instituto Português do Património Cultural (IPPC) é particularmente visado pela falta de cumprimento de um acordo que garantia o restauro das peças pertencentes às colecções do Estado, daí resultando custos superiores a 66 mil contos. Mas o relatório, neste ponto, é um testemunho essencial sobre a situação do então IPPC e sobre o Instituto José de Figueiredo, e vale a pena citá-lo largamente: «Quase mais importante do que a despesa foi o facto de o Comissariado ter tido de assumir as tarefas relativas à compra de todos os materiais (desde a cera, o álcool e os pincéis até aos produtos mais sofisticados e especializados), às ajudas de custo, às deslocações, à segurança das instalações, às horas extraordinárias do pessoal, às tarefas suplementares, ao registo fotográfico dos vários estádios do restauro das peças, e até à compra de equipamento (ar condicionado, balanças, unidades de desacidificação, jactos abrasivos, humidificadores, prensas, etc.) e às reparações de base nas instalações (esgotos, eanalízações).» A Europália pagou ainda a deslocação, a estadia e os honorários a restauradores estrangeiros que vieram efectuar trabalhos na Biblioteca Nacional, no Instituto José de Figueiredo e no Museu Nacional de Arte Antiga. Q custo totaI elevou-se a 66 mil contos, referente a obras das colecções do Estado, num montante global para restauros de mais de 91 mil contos.
Outra problema do Comissariado correspondeu à falta de material fotográfico de qualidade, no caso das colecções públicas e nomeadamente das peças apresentadas na XVII Exposição do Conselho da Europa (Lisboa 1983). Os encargos com o trabalho do pessoal do Arquivo Nacional de Fotografia (deslocações, honorários, horas extraordinárias, compra de película e trabalho laboratorial) foram assumidos pela Europália, e os custos globais da operação ultrapassaram os 54 mil contos, ficando cópia de todas as fotografias nas instituições emprestadoras e no referido Arquivo.
Em embalagens adequadas ao transporte de obras de arte, também inexistentes nas instituições oficiais, a Europália despendeu 67.443 contos, revertendo os materiais adquiridos para as entidades emprestadoras. Só em serviços de escolta e guardaria pagos à PSP e à GNR foram orçamentados 23.660 contos, sem se terem obtido quaisquer reduções de tarifas, que seriam naturais para uma iniciativa oficial. 54.500 contos foi, ainda, o montante somado do IVA e do imposto de selo devidos pelo Comissariado.
Os responsáveis pela Europália admitem no seu relatório que as previsões globais de custos, feitas em 1990, foram ultrapassadas em cerca de 210 mil contos, mas consideram-nos justificados pelas razões já apontadas. E acrescentam, aliás, que o défice é largamente compensado pelos benefícios directos (91.732 contos em restauros, 53.904 contos em fotografias, 60.994 em equipamentos, 67.443 em embalagens, etc.) e pelas mais-valias que resultaram para as instituições, os artistas e os agentes culturais.
Mesmo tratando-se de um relatório oficial, várias passagens deixam bem transparecer o «clima» em que a Europália foi organizada - e não se deverá esquecer que o seu Comissariado foi uma das raras equipas sobreviventes da gestão de Teresa Gouveia. Quando se escreve «poderia aproveitar-se a receptividade que o festival criou para facilitar a inserção de instituições portuguesas nos circuitos internacionais, tanto como receptoras como fornecedoras de manifestações culturais», está-se certamente a usar, com a segurança dada pelo êxito alcançado, uma forma diplomática para comentar a gestão da herança da Europália e mesmo a situação geral da política cultural.
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