sábado, 9 de abril de 1994

1994, 1995, 1996, Culturgest, Colecção CGD

 1994

25 jan – «A Máscara, a Mulher e a Morte: Resistências Poéticas» (arte belga) "Visões / ficções"

28 ? —Júlio Pomar, «Paraísos e Outras Histórias» (Lx 94)

1994 / 96 - ARTISTAS BELGAS 

GONZALEZ 

COBRA, 

WESSELMANN

NAM JUNE PAIK

sexta-feira, 25 de março de 1994

1994, Lina Bo Bardi, Estufa Fria, "A razão tropical"

 A razão tropical


O Brasil reinventado por uma arquitecta italiana numa exposição e num livro que atravessam continentes


LINA BO BARDI 

Estufa Fria

Expresso 25 03 94


NÃO É só uma exposição de arquitectura a que se apresenta na Estufa Fria, e não só por Lina Bo se ter ocupado também do design de móveis ou da cenografia para teatro. É da descoberta de uma personagem fascinante que se trata, de uma vida multiplicada por campos de intervenção muito vastos e de uma rara capacidade de fazer identificar uma obra com a revelação de parte da história de um país. E também, naturalmente, da apresentação de um grande arquitecto, como insistia em intitular-se a autora da Casa de Vidro e do polémico Museu de Arte de São Paulo (MASP).


À primeira vista, a exposição é pobre, organizada numa longa parede circular de painéis de desenhos originais, projectos e fotografias, em torno de maquetas e móveis apresentados sobre os respectivos contentores. O chão está recoberto de um tapete de folhas, tal como Lina Bo Bardi gostava de fazer em algumas das fabulosas exposições que também estão documentadas («A mão do povo brasileiro», “Design no Brasil: história e realidade», “O belo e o direito ao feio»), e, à entrada, deparamos com a insólita presença de uma escultura de cena, um porco de duas cabecas desenhado para uma peça de Alfred Jarry, e uma “cadeira de beira da estrada”.


São sinais de um gosto pela intervenção lúdica que não é incompatível com a militância empenhada e, por outro lado, da atenção às técnicas populares do Brasil, que procurou conjugar com os princípios racionalistas da sua formação teórica («Cada país tem uma maneira propria de encarar não somente o desenho industrial mas também a arquitectura... Eu acredito numa solidariedade internacional, num concerto de todas as vozes particulares. Agora é um contra-senso se pensar numa linguagem comum aos povos se cada um não aprofunda suas raízes que são diferentes.


Um filme e um livro-catálogo de grande formato, com 336 páginas de projectos, desenhos, fotografias de arquitectura, textos e documentos biográficos, editado pelo Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi (S. Paulo, 1939) completam e alergam a exposição -- concebida por Marcelo Carvalho Ferraz para ser itinerante (será em seguida apresentada em Barcelona e Milão).





Lina Bo nasceu em Roma em 1914, formou-se numa escola marcada pela  «nostalgia estilístico-áulica» e mudou-se para Milão; foi em plena guerra, entre uma carreira meteórica e a entrada na Resistência, que chegou a directora da revista «Domus». Mas em 1946 «os velhos fantasmas voltaram, os velhos nomes retornam, a Democracia Cristã toma o poder». Nesse ano casa com Pietro Maria Bardi (jornalista, crítico de arte, coleccionador, antiquário e «marchand», director de museus, etc., que é também um fabuloso personagem a marcar as últimas décadas da cultura brasileira). O casal partiu para o Rio de Janeiro e, no ano seguinte, Assis Chateaubriand encarregava Bardi de criar uma sede para a sua colecção.


É o princípio de uma aventura extremamente fecunda, que se prolongou até à morte em 1992, sempre politicamente interveniente e desdobrada por direcções tão díspares como o teatro e o cinema (logo no início dos anos 60, com o «cinema novo» e o Teatro Castro Alves; ou nos anos 80, com o Teatro Oficina, José Celso e Cacá Rosset), o ensino e o jornalismo, a museologia e a pesquisa antropológica, a arquitectura e a recuperação patrimonial (plano para o centro histórico da Bahia). Em 1988 chegou a esboçar um projecto para o Centro Cultural de Belém, segundo os seus «rigorosos princípios (poéticos) do Racionalismo ‘nao branco’... onde todo e qualquer cantinho sobrando das 'ruas' serão jardins».

Mas, de entre os cem projectos que desenhou, as obras essenciais de Lina Bo Bardi são a sua própria Casa de Vidro, de 1951, construida sobre «pilotis» finíssimos, de modo a não interferir na paisagem, e o MASP (1957-67) na Avenida Paulista, erguido sobre um imenso vão livre com oito metros de altura, por imposição urbanística. Essencial é também o projecto de 1977 para o SESC Pompeia, um complexo recreativo e cultural instalado numa antiga fábrica de São Paulo, a que acrescentou dois blocos de betão para um conjunto desportivo concebido em altura, a «Cidadela». É, uma vez mais, a aplicação da sua ideia de «'Arquitectura Pobre', não no sentido de indigência mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máxima através dos menores e humildes meios.»





Partindo de uma formação europeia e de uma fidelidade militante aos princípios do Movimento Moderno (contra a «Retromania»), Lina Bo Bardi colheu no seu país de adopção a experiência prática de uma inventividade popular que renovou o seu horizonte de utopia. É de imenso trânsito entre continentes que se trata. E passa agora por Lisboa.





sábado, 15 de janeiro de 1994

2000, Brasil

 ARQUITECTURA RURAL NA SERRA DA MANTIQUEIRA

15 01 94, expresso

Sociedade Nacional de Belas Artes


Uma exposição e um livro excelentes vindos do Brasil, onde o que pode ser a fotografia se encontra com a procura do que pode significar a arquitectura, no sentido lato de «arte de criar espaços organizados e animados, arte de edificar». O autor, Marcelo Carvalho Ferraz, não tem inteira razão quando pretende que «este não é um livro de fotografias ou um ensaio fotográfico sobre um certo tema». De facto, ele é precisamente ambas as coisas, sem por isso contrariar a definição que o próprio M.C.F. imediatamente propõe: «É um trabalho onde, como arquitecto, me utilizei de fotografia para captar e revelar um mundo em que as relações do homem com a natureza que o circunda se dão num estágio genuíno de interação; onde cada casa, cada pequena construção espelha, através dos materiais e das cores, esta natureza; um mundo em que cada detalhe, cada solução criada pelo homem revela a presença constante da poesia.» 


Na exposição, as 40 fotografias de médio formato são enquadradas por dois curtos textos de Lina Bo Bardi («esta é uma anotação sobre a aristocracia rural-popular brasileira enxotada pelas monoculturas») e de Agostinho da Silva, que numa prosa ao mesmo tempo visionária e lúcida refere a relação entre o Minho e a paisagem da região a sul de Minas, enquanto ao livro estão ainda associados os nomes de Pietro Maria Bardi, Darcy Ribeiro e António Cândido, em sucessivas apresentações. 


É efectivamente de um levantamento fotográfico sobre arquitecturas anónimas, espontâneas ou vernaculares que se trata, no qual a dignidade das imagens, belíssimas na sua explícita ausência de «vontade de arte», se encontra com a inteireza sábia de uma cultura pobre, onde a velocidade da vida é ainda regida pela natureza e todas as construções têm a economia o engenho das coisas necessárias. Ocupando-se sucessivamente de «a terra», «o homem» e «a arquitectura», as imagens dão a ver toda a dimensão da paisagem das roças mineiras, os retratos de grupo, os exteriores e interiores das casas, o fornos, o paiol para os cereais, as capelinhas, as vendas à beira da estrada e ainda os circos que oferecem a única modalidade acessível de espectáculo. 

Nem apologia, nem lamento de um mundo que se está transformando («e assim deve ser», acrescenta o autor), este trabalho de alcance antropógico impõem-se também como reflexão sobre a prática da arquitectura e é exemplo de uma prática essencial de documentação fotográfica.

( Edição Quadrante/Empresa das Artes, São Paulo, 1992; 96 págs., 4000$00)

sábado, 11 de setembro de 1993

1993, Paula Oudman, "ROTEIRO DA PRECÁRIA LUZ"

Livros


ROTEIRO DA PRECÁRIA LUZ

fotografias de Paula Oudman


 Expresso/Cartaz de 11 Set. 1993


Se existisse um panorama editorial da fotografia em Portugal, este livro seria um caso insólito. Como não existe (e não há condições de mercado para existir), é uma raridade e certamente um curioso absurdo: um album cartonado, com 184 fotos a preto e branco em página inteira, da autoria de uma jovem fotógrafa, discretamente publicado e logo abandonado à sua sorte, ao abrigo de um qualquer programa da Fundação da Juventude (?!). 

Não é um roteiro do Porto nem as fotografias prometem uma rotina documental ou turística, e também os brevíssimos textos de Mário Cláudio não são prosa poética que baste para assegurar o alibi da ilustração literária. Mas é de uma visita ao Porto e ao Douro que se trata, com deambulações pela Ribeira e ida até às vindimas: uma visita guiada por uma memória e que se constrói como  uma ficção. 

Lá estão a ponte D. Luis, o rio, a margem olhada desde Gaia, a Foz, a Bolsa, o Bolhão, S. Bento e o combóio até ao Tua, os trabalhos do vinho, alguns interiores antigos e anónimos. Sucede que entre o real e a fotografia se inscreve uma vontade narrativa: o itinerário elabora-se sobre a figura de um personagem em trânsito, como sequências de fotogramas de um filme. Alguém que se refugia num quarto de pensão barata, escreve à máquina e faz sucessivas surtidas à procura de algo que não viremos a saber o que é (nem mesmo quando, escrita a palavra «fim», ele se dirige à Lello, a editora do album). O fotógrafo persegue o seu passeante solitário (um possível personagem de Wenders) e surpreende-o nas suas buscas incertas, a ele e aos cenários que vê, campo-contracampo, dia e noite, com uma câmara ágil, obrigada a seguir a sua passagem inquieta. 

Talvez seja possível ficcionar também sobre este exercício de ficção fotográfica, com a ajuda de uma curta nota biográfica sobre a autora: Paula Oudman nasceu no Porto em 1957 e viveu na Holanda entre 1976 e 1989 (aí estudou fotografia, trabalhando actualmente em Lisboa como «free-lancer», em especial como fotógrafa de moda). Por interposto personagem será então de um regresso, de um ajuste de contas e de uma despedida que se trata; se a fotografia transporta aqui a vontade de dar a imagem de um mundo, traduzindo a experiência do contacto entre um sujeito individual e o que o rodeia, este é um livro de memórias, e por isso um exercício sobre o tempo, rodado com figurinos de hoje nos cenários portuenses que resistem à identificação de uma cronologia.

É claramente a prática da fotografia de moda que aqui se aplica, com a inscrição de um modelo em trânsito por sucessivos cenários reais e fazendo das suas sucessivas poses a oportunidade de um périplo comum do actor e do fotógrafo. A paginação é sequêncial, acentuando o efeito de montagem pelo uso de dimensões variáveis das provas reproduzidas até às margens — a impressão, que opta em geral por fortes contrastes tonais, é às vezes irregular, desiquilibrada nas variações do grão ou forçando a legibilidade com o uso de máscaras excessivas. 

Esta visita à cidade é um trânsito entre géneros e tempos: entre o cinema (documentário e ficção) e as regras fotográficas das produções de moda, entre a actualidade de um olhar exercitado para o trabalho nas revistas e os cenários de outras memórias. Feita com urgência, a fotografia abandona a vertigem e a concentração do instante, desprende-se do valor expositivo para procurar outros modos de existência — neste caso, a de um livro raro. 

(Co-edição Fundação da Juventude e Lello & Irmão, Porto; sem nº de pág., 9000$00)

sábado, 28 de agosto de 1993

1993 João Cutileiro D. Sebastião 1973-93, 20 anos depiois

"Vinte anos depois"

Para comemorar os 20 anos do monumento a D. Sebastião, que derrubou as regras da estatuária do Estado Novo poucos meses antes do 25 de Abril, o Centro Cultural de Lagos reuniu em exposição as maquetas feitas por João Cutileiro para esculturas a instalar em espaços públicos. O escândalo já foi esquecido, mas a idade não lhe pesa

«D. Sebastião, 1973-1993”, João Cutileiro
Centro Cultural de Lagos


EXPRESSO/Revista 28 Agosto 1993, pp. 26-27


LAGOS celebra o aniversário do D. Sebastião de João Cutileiro que se ergue na Praça Gil Eanes com uma exposição de «maquetas de esculturas para espaços públicos», em companhia de fotografias das obras executadas, quando o foram. Apresenta-se no Centro Cultural da cidade, que, por coincidência, acolhe também uma segunda mostra comemorativa de outros 20 anos, os do Expresso.

Para Cutileiro, a simultaneidade das exposições faz algum sentido. «Não é por acaso que nelas se celebram os 20 anos do D. Sebastião e do Expresso - nós somos ambos precursores do 25 de Abril. Eu costumo dizer por graça que o MFA, em 73, veio ter comigo e pediu-me: 'fazes uma estátua controversa, pões na praça de Lagos e, ao fim de seis meses, se ainda lá estiver, é porque isto já está podre e nós podemos entrar'. Embora seja uma graça, também é a realidade: tenho a impressão de que, cinco anos antes, aparecia uma grua e aquilo vinha abaixo.»

Vinte anos depois, o D. Sebastião não é só uma estátua duplamente histórica, é também um exemplo de como a «Situação» e a «Oposição» se enfrentavam em todos os domínios da sociedade. E era sob o primado da política que se opunham, em torno desse preciso monumento, o modelo institucional da estatuária e a possibilidade da inovação na escultura portuguesa.

Estava-se em 1973, em Setembro de 1973, e era a presença de Américo Thomaz que devia assinalar, entre a multidão saída à rua, o centenário de Lagos. Instalada por iniciativa da Câmara, graças à relativa autonomia de decisões que o marcelismo permitia, a obra de Cutileiro era «um dos melhores monumentos portugueses, por razões plásticas e intelectuais também» e uma «ruptura escandalosa» com as regras vigentes, como escrevia José-Augusto França, aparecido em sua defesa no «Diário de Lisboa» e na «Colóquio-Artes», antes de que se avolumassem as pressões apostadas no derrube da estátua irreverente.

Tratava-se, de facto, de uma peça realizada à margem dos cânones com que a estatuária do Estado Novo trocara as pobres tradições naturalistas vindas de Oitocentos pela procura de uma pretensa austeridade neoclássica, bem representados por um Infante D. Henrique hieraticamente sentado em bronze logo a cerca de 500 metros, com a assinatura de Leopoldo de Almeida e data de 1960.

A inovação (e não estilização decorativa de volumes, essa tolerada) era imediatamente visível na construção articulada com mármores de cores diferentes, em vez do talhe de um bloco único, no corte mecânico deixando à vista as marcas dos instrumentos, em lugar do «bom acabamento» obrigatório, e na ausência do pedestal que respeitosamente elevasse a figura acima dos comuns mortais. Mais grave ainda era a figura ambígua de menino com que o rei se retratava miticamente, imberbe e inseguro, entre o sonho e o susto, anti-herói desengonçado, com as mão perdidas nos guantes e o elmo desmesurado caído aos pés.

Era a representação de um rei, mesmo se de um rei vencido, e a sua presença devia ser autoritária e institucional. Não é. E tocava-se então em coisas sérias ao revisitar o seu mito.

«O D. Sebastião era o símbolo da derrota de África. Essa era uma das razões por que eu mais gostei da ideia de fazer o D. Sebastião. Se fosse outro rei qualquer, tinha de me informar historicamente, de fazer pesquisas... O D. Sebastião era já um mito, era um misto de derrota e de esperança.»


JOÃO Cutileiro vivia então em Lagos, desde 1970 em permanência (e estivera desde 1959 «em 'navette'» entre Londres e Portugal, onde descobrira «um pequeno paraíso na terra»). Já vinha de longe a ideia de fazer uma escultura para aquele local, e três maquetas para um Pescador, de 1969, estão na exposição a prová-lo: «Pensei que seria uma bonita maneira de ocupar aquele espaço, que estava mesmo a pedir estátua, sem ser um Leopoldo de Almeida, ou um monumento ao Tenreiro, ou qualquer coisa do género. Aquela praçazinha tinha-a debaixo de olho, e ofendia-me que fossem lá meter o trabalho de outro escultor.»

Foi então que surgiu a oportunidade da comemoração dos 400 anos da cidade e o convite do presidente da Câmara, José Figueiredo Luís, marcelista e amigo pessoal, para fazer uma medalha. Desta se passou à estátua, por insistência de Cutileiro, que praticamente a ofereceu, pagando-se apenas do material e horas de trabalho.

Os anos que se seguiram não envolvem ainda o D. Sebastião na imobilidade de algo já visto, integrado pela aceitação reverente do peso da história. A surpresa pública mantém-se perante aquele corpo insólito em figura de boneca articulada, talvez «parecido», talvez impróprio de um rei ou de uma estátua, que ao mesmo tempo marca fisicamente um espaço e cumpre-desafia a antiga função segurizante e sacralizadora associada à ideia de monumento - no qual a grandeza da escala faz parte de um mesmo sistema simbólico, ligando a imagem e o discurso numa ostensiva relação conceptual com o sítio (Rosalind Krauss).

Adivinha-se, por outro lado, que para a crítica do tempo, que assistia com uma distância incomodada à consagração pelos coleccionadores de uma carreira realizada à margem das «correntes», o enfrentamento político terá permitido ultrapassar os conflitos teóricos que se situavam no seu próprio terreno, a respeito da invenção em escultura ou na arte em geral. Embora J.-A. França tivesse admitido a possibilidade de «uma nova monumentalidade figurativa», a impressão que hoje se tem é de que, em geral, se despejava a criança com a água do banho. Ou seja, com aquele monumento único, tratar-se-ia apenas de pôr termo ao academismo da estatuária do Estado Novo, sem que se entendesse o renovar da tradição moderna da escultura ou a singularidade de toda uma obra. Cutileiro viria a declarar, por provocação, o seu abandono da criação artística, passando a identificar-se como «produtor de objectos decorativos para a burguesia intelectual».

Pesava sobre o entendimento crítico de então, quando se não falava ainda de pós-modernismos, uma longa sequência de interditos que constituíam a suposta evolução modernista na escultura: a figuração, o corpo, a semelhança, a verticalidade, a marca do fabrico, a prática artesanal, a expressão, o objecto construído, ou simplesmente «o escultural», cujo apagamento pode passar por ser o destino decisivo da escultura, numa história de impossibilidades crescentes.

«Eram interditos para uma crítica talvez muito intelectual a que eu nunca liguei. Nunca achei que fossem interditos, não os sentia na pele. Para mim, havia coisas interditas, por exemplo, em relação à estatuária do Estado Novo, pelo lado ideológico e formal, aquelas formas que se usavam na estatuária. Havia umas pessoas mais benévolas que diziam que o [Francisco] Franco era bom e os outros é que eram maus, e que faziam umas hierarquias dentro daquela porcaria toda; mas, para mim, eram todos muito maus, não havia nada de aproveitar. Nem o Martins Correia, nem o António Duarte... Quando jovens, certamente que uns eram mais talentosos do que outros, mas como tinham todos optado por fazer aquele frete...»

Se a obra de Cutileiro retomava a tradição da estatuária, centrada na representação do corpo, a seu modo prolongando investigações de Brancusi e de Moore, mas já sem nostalgias de um qualquer passado arcaico de formas ideais ou aspirações a um classicismo intemporal de «serena espiritualidade» (Margit Rowell), uma observação mais ideológica que atenta aos objectos não permitiria reconhecer o que de inovador surgira com os meios mecânicos de corte da pedra. De facto, ao inventar um outro processo de talhe directo, com recurso às serras eléctricas, e de construção por montagem de fragmentos, Cutileiro reencontrava-se com toda a problemática da colagem e da «assemblage», transferindo-a para a pedra e para a figuração, ao mesmo tempo que inaugurava um modo de produzir escultura que substituía técnicas condenadas pelos seus excessivos custos (a passagem do gesso a bronze, o talhe do bloco único). Assim se viabilizava uma nova prática da escultura e, desde logo, a sua própria sobrevivência como escultor - facto inédito, na sua independência do ensino e da encomenda oficial. E também um escândalo perante certas fatalidades portuguesas.

«A própria encomenda estava vedada aos artistas. A palavra encomenda já trazia uma conotação chata: era o emprego. As pessoas em Portugal não podem gostar do trabalho de que se ganha dinheiro, faz muito parte da cultura e da mentalidade portuguesa. Ganhar dinheiro era uma chatice, nós devíamos ser todos artistas e livres... Mas nunca me fez confusão ganhar dinheiro e gostar dos trabalhos que fazia.»


ENTRETANTO, a celebração do aniversário, promovida por outro escultor, Xana, de novo com o apoio da Câmara, é também a oportunidade para observar que o D. Sebastião teve escassíssima descendência. Foram muito poucos os monumentos erguidos entretanto por João Cutileiro, como se, em questões de gosto oficial e de encomenda de escultura pública, decorativa e/ou comemorativa, rapidamente se tivesse voltado à mesma vontade de celebrar o passado com a reverência do conservadorismo estético, se impusesse a mesma marcação autoritária de espaços (e o formalismo abstraccionista pode fazê-lo diligentemente), ou, pura e simplesmente, como se nada mudasse no que era mais simplesmente a incultura artística. Como se comprova em Lagos, mesmo que a exposição não seja exaustiva, as encomendas foram raras entre 73 e 93, embora Cutileiro multiplicasse as suas peças monumentais em espaços privados e públicos.

«Ofereci aquela, mas não poderia oferecer muitas mais. Eu não me mexo para as encomendas, mas o certo é que as estátuas, os monumentos públicos, aparecem feitos. Se calhar, em todas as sociedades é assim; se lermos a autobiografia do Cellini, vemos que na Renascença aqueles meninos se envenenavam uns aos outros para sacar a encomenda. A mim, talvez por uma herança de passado antifascista, como se diz, repugna-me andar a esfregar os ombros com o poder para sacar as estátuas. Há pessoas responsáveis com quem tenho o maior dos prazeres em lidar, há outras que não, e eu transmito, um pouco como os cães, um cheiro que diz às pessoas que não gosto delas, e eles não me encomendam. De facto, as grandes coisas nunca vêm para mim.»

Em Lagos, são em número de 19 as maquetas apresentadas, ou 14 se se descontarem as variantes de um mesmo projecto, mas em apenas oito casos se verifica a passagem à execução, documentada em fotografias. E isto apesar da cronologia da exposição começar muito antes do D. Sebastião, logo em 1962, apontando com as peças iniciais duas direcções constantes da obra de Cutileiro.

A primeira maqueta, ainda em bronze, é de uma estátua equestre pensada para o alto do Parque Eduardo VII. Trata-se do exemplo inicial de uma longa série de cavaleiros, que, como se viu na retrospectiva de 1990, continuaram em cimento fundido e em «polyester», primeiro, em mármore, depois, a partir de 67, e mais insistentemente em 89-90, como foi a seguir mostrado em Almancil, sob o título «Homenagem a Paolo Uccello». Na presente antologia, o tema só regressa num Monumento a D. Afonso Henriques, já de 92, mas o certo é que a designação «maqueta para estátua equestre» foi insistentemente usada em pequenas obras com destinos privados, expressando assim a vontade de enfrentrar um dos desafios superiores da estatuária clássica.

Com a segunda das obras expostas, uma mulher reclinada, em maqueta de 68 para o Hotel do Alvor, onde o modelo clássico é violentamente sujeito às fragmentações da «assemblage», abre-se a via para uma outra longa série de esculturas desenvolvidas sem necessidade de projecto prévio. O mesmo, aliás, sucederá com os «Guerreiros», peças monumentais também insistentemente exercitadas, de que não se mostram maquetas em Lagos.


DE FACTO, esta exposição confirma que a maqueta, imposta pela encomenda, não faz parte dos processos de trabalho preferidos pelo escultor. As suas peças, na generalidade dos casos, surgem directamente em dimensão monumental sem estudos feitos em miniatura.

«A manufactura da maqueta é uma limitação horrenda. Quando um tipo tem a maqueta aprovada dá muito gozo, mas depois sinto-me um mero lacaio de mim próprio.» É possível sempre alterar o projecto em andamento, mas Cutileiro entende a solução como «uma quebra de compromisso»: «Se aqueles senhores exigiram uma maqueta, eu tenho a obrigação moral - não digo artística, mas moral - de apresentar uma coisa minimamente conforme a maqueta. Já me aconteceu, durante a execução, pensar que talvez outra solução seja melhor, e então páro a execução, faço uma nova maqueta e vou apresentá-la. Mas repete-se o problema. Uma vez aprovada, estou tão limitado como antes.»

Outra constatação: a figura histórica só existe na obra de Cutileiro associada à encomenda, e por isso é rara. Descontando um ou outro retrato, contam-se apenas o D. Sebastião e um Camões de 1980, encomendado para Cascais no tempo de Vasco Pulido Valente, mais um Monumento a D. Sancho, já de 1990, em Torres Novas, e o Monumento a José Fontana, do mesmo ano, no jardim do mesmo nome, em Lisboa, onde um retrato gravado marca um feixe de colunas de sugestão vegetal. Em maqueta ficou o referido D. Afonso Henriques, de 92, e a exposição termina com uma Inês de Castro já de 93, que é outra magnífica interpretação de um mito nacional. E também um curiosíssimo exemplo da transformação que ocorre entre a maqueta e a obra terminada, quando nenhum compromisso prende o escultor: o volume inteiro do corpo ou manto real, onde, na falta de rosto, a coroa vem a assentar directamente na larga gola, acaba por dar lugar a uma «assemblage» de volumes articulados na peça construída.

Pelo caminho estão os projectos para duas fontes monumentais, de 87 e 88, a segunda instalada na sede da Bonança, em Lisboa, obras decorativas e «abstractas», tal como o são três pórticos para Macau, de 89, não executados (título: Macau), e também o Monumento a Mértola, de 91, instalado. Peça original e única é um Dragão, de 90, previsto para o Jardim do Canal dos Patos, em Macau, uma divertida figura de animal construída em grosseiros blocos encaixados, sobre duas bases desiguais que surgem integradas no movimento da peça.

Por mostrar, por agora, ficou uma obra pensada para a nova sede da CGD sob a forma de um friso decorativo, que viria a ser cancelada em fase de corte orçamental no edifício; em alternativa surgiu a hipótese de uma peça monumental para o exterior do edifício, mas o desenho prévio não foi aprovado. Cutileiro insistiu em executar o projecto, por sua conta e risco; com os seus 5,5 metros, ficou a ser a sua maior peça de sempre.

«Um escultor gosta de fazer coisas grandes. Como eu ganho muito dinheiro e tenho boas condições de trabalho, posso-me permitir fazer coisas grandes sem ter de estar à espera da encomenda. Faço-as e depois vendo-as. Estão prontas, são grandes, são aptas para um lugar público, são monumentais, e quando me vêm encomendar uma peça eu digo: 'Encomendar para quê? Está aqui esta, que serve perfeitamente'.»

Vinte anos depois, o novo regime não tornou Cutileiro um escultor institucional.