Como a falta de memória é uma marca essencial da fotografia em
Portugal, importa referir objectivamente os acontecimentos incluídos no
programa Europália. Começando por precisar que a representação enviada à
Bélgica, embora constituísse uma exposição única, acompanhada por um só
catálogo bilingue (francês e holandês), se apresentou dividida entre os
dois museus da fotografia do país, um
em Charleroi, na região
francófona, e outro em Antuérpia, região flamenga.
No primeiro caso, o museu ocupa uma antiga abadia, tendo a nave
central, de pequenas dimensões, sido dividida em três espaços atribuídos
a mostras individuais de Joshua Benoliel, Sena da Silva e Helena
Almeida. Uma outra sala reuniu fotografias de António José Martins,
Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, Gérard Castelio Lopes e Jorge Guerra,
num itinerário que se desenvolvia entre os anos 30 e os anos 60 através
de uma nítida sequência de autores.
Paralelamente, em mais duas salas e um corredor, num percurso
labiríntico em torno de um claustro e entrosado com espaços de exposição
permanente, apresentaram-se cerca de 70 fotografias feitas em Portugal
por fotógrafos estrangeiros, numa selecção de Jorge Calado que incluía
exemplares pertencentes à colecção que ele próprio reuniu para a SEC
(mostrados parcialmente em Janeiro na Galeria Almada Negreiros), mais
alguns da Fundação de Serralves e outros expressamente adquiridos já
este ano e para esta exposição graças a uma dotação da Caixa Geral de
Depósitos.
Quanto a
Antuérpia, o Museu apresentou em duas galerias de mostras
temporárias uma selecção de fotógrafos portugueses actuais, incluindo,
na primeira, de novo Gerard Castello Lopes e também Paulo Nozolino, José Rodrigues,
Rui Fonseca, José Francisco Azevedo e Daniel Blaufuks; e na segunda
galeria sequências e «instalações» fotográficas de Mariano Piçarra,
Augusto Alves da Silva, António Júlio Duarte, João António Motta,
Francisco Rúbio e António Carvalho. Num outro piso, na zona de exposição
permanente, apresentou-se Victor Palia e Costa Martins com 10 painéis
referentes ao livro de 1959 "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" (originais de
paginação, colagens com anotações, folhas de contacto, etc.) e mais
nove fotografias de recente reimpressão (Lisboa e Tejo e Tudo), ainda
como extensão autónoma do panorama relativo aos anos 50.
O CATALOGO, agregando as obras separadas pelos dois lugares de
exposição num único discurso, constitui de certo modo um objecto
autónomo e no qual é mais compreensível a concepção global do projecto.
Embora se trate de um volume de boa qualidade de impressão, ficou ainda
longe de corresponder às ambições do comissário, uma vez que o número
das reproduções (de página inteira) foi reduzido a menos de metade das
provas expostas, algumas reproduções atraiçoaram o carácter de sequência
ou instalação dos trabalhos, as legendas ficaram incompletas e os dados
técnicos foram drasticamente abreviados por dificuldades editoriais
belgas. Neste caso, o confronto com outras edições de A.S. é uma curiosa
prova de como, às vezes, se sabe fazer muito melhor em Portugal do que
no «estrangeiro».
Seguindo a sequência dos capítulos do catálogo, encontramos primeiro
Joshua Benoliel, foto-repórter particularmente activo entre 1903 e
1918, e que pela primeira vez foi objecto de um trabalho sério de
selecção e reavaliação; depois o panorama relativo a
«Os anos de
transição» (1927-1967), onde se incluiu naturalmente Vitor Palia/Costa
Martins; o conjunto dos
«Estrangeiros olhares» (1930-1989); e, por fim,
os
«Olhares inquietos» (1980-1991), abrangendo estes tanto o trabalho de
Helena Almeida como a mostra colectiva de Antuérpia. Todas as secções
são precedidas por textos de António Sena, com excepção da fotografia
estrangeira que é prefaciada pelo respectivo coordenador; no final,
todos os autores expostos são objecto de exaustivas notas biográficas e
bibliográficas. Parte significativa dos textos de A.S. constituem
extractos do livro
"Uma História de Fotografia" (da colecção «Sínteses da
Cultura Portuguesa», editada também por iniciativa da Europália na
lN-CM).
As duas exposições e essas duas publicações representam, assim, um
todo que provisoriamente constitui o mais ambicioso e completo trabalho
de revisão histórica. Na sua totalidade estabelecem-se como uma data
decisiva no entendimento da fotografia portuguesa, como primeiro esforço
de sedimentação de um «corpus» estabelecido e estudado, ao qual terão
de se referir todas as contribuições futuras. Importa agora saber se,
depois do momento Europália, surgirão outros estímulos para prosseguir
na mesma direcção, ou se, como é usual, a falta de iniciativa
institucional (indispensável nesta matéria) abrirá um novo intervalo de
esquecimento até uma próxima data. Porque pensar num museu da fotografia
em Portugal é ainda ambição irrealista.
É NECESSÁRIO, entretanto, referir algumas condicionantes conhecidas
que enquadraram e limitaram o programa expositivo. Em especial, deve
saber-se que foram muito reduzidos os meios financeiros disponíveis para
esta iniciativa (3710 contos para a produção de Benoliel e 1280 contos
para o sector contemporâneo), para além de só muito tardiamente os
mesmos terem sido confirmados. De facto, o projecto foi inicialmente
pensado como levantamento dos «Grandes momentos da fotografia em
Portugal», e devia iniciar-se com a apresentação de dois mestres do
documento fotográfico oitocentista, J. A. da Cunha Moraes e Francisco
Rocchini. Razões financeiras e o atraso no estabelecimento do contrato
de produção fizeram desaparecer essa abordagem ao século XIX (tal como
ameaçaram o panorama dos anos de «transição»).
Graças à própria colecção
do Museu de Charleroi, no entanto, foi exposta fora do programa oficial
e sem referência no catálogo, uma série de 11 «vistas» do álbum de
Rocchini sobre o Mosteiro da Batalha, em tiragens sobre papel albuminado
de 1870-75. (Assinale-se, a propósito, que Cunha Moraes é actualmente
mostrado em Coimbra, em especial através de espécimes cedidos por um
coleccionador italiano.)
Quanto a
Benoliel, as 34 fotografias expostas resultam de um trabalho
de investigação desenvolvido por António Sena na Fototeca da Direcção
Geral da Comunicação Social/Palácio Foz, não se tendo trabalhado com os
negativos pertencentes aos arquivos da Câmara de Lisboa e outros. Da
colecção daquela Fototeca foram inventariados e fichados
informaticamente dez mil negativos, sendo realizados 500 diapositivos e
60 provas arquivais, numa colaboração que irá ter continuidade e será
publicamente exposta.
Quanto ao sector dos «anos 30/60», ele não pôde ser incluído no
protocolo referente à produção da exposição e só foi apresentado graças
ao interesse manifestado pelos dois museus e à colaboração dos próprios
autores e da galeria Ether, em geral retomando exposições que já
apresentara. A não inclusão de Fernando Lemos é uma lacuna
particularmente gravosa, mas a recuperação do seu trabalho fotográfico
dos anos 50, por iniciativa da Gulbenkian, continua a aguardar-se.
Passando ao sector contemporâneo, importa ressalvar que a ausência de
Jorge Molder (referido por A.S., no catálogo, a par de G. Castello
Lopes, Helena Almeida, Nozolino e José Rodrigues, como um dos autores
que «conheceram, desde 1980, os percursos mais densos e mais regulares»)
se deve à recusa do próprio fotógrafo - sabe-se que as dificuldades de
relacionamento e colaboração entre fotógrafos e entre os agentes da
divulgação da fotografia são, infelizmente, uma outra constante decisiva
no panorama actual. Entretanto, a inclusão de Helena Almeida partiu de
uma proposta de George Vercheval, director do Museu de Charleroi, e foi
apoiada pela galeria Valentim de Carvalho.
A mostra intitulada
«Olhares inquietos», para a qual o comissário
contactou três dezenas de fotógrafos com vista à selecção das obras a
incluir, constituiu em parte a actualização de uma colectiva itinerante
realizada por António Sena para a SEC em 1989, sob o título
«Nível de
Olho». Registou-se agora a integração dos «consagrados», que aquela
mostra intencionalmente deixara de fora, e repetiu-se, com novas peças, a
participação de metade dos fotógrafos então expostos (M. Piçarra, D.
Blaufuks, António Carvalho, F. Rúbio e J. António Motta).
Quanto aos
«Estrangeiros Olhares», verifica-se a incorporação de 11
autores não incluídos no catálogo "1839-1989 - Um Ano Depois" (ed. SEC.
1990), onde figuravam já 18 fotógrafos com passagem por Portugal, ou por
comunidades emigrantes: os novos fotógrafos são Thurston Hopkins
(1950), Cartier Bresson (três fotografias de 1955), Peter Fink (duas,
anos 50 e 60), Alma Lavenson (1962), Esther Bubley (1965), Godfrey
Frankel (1978), Harry Callahan (três, 1982, cor), Larry Clark (1987),
Tod Papageorge (duas, 1989, cor), Lynn Bianchi (1989), Dick Arentz
(três, 1990). Não referida no catálogo, apesar de exposta em Charleroi,
há ainda a apontar uma fantástica fotografia do Terreiro do Paço de
1942, de Cecil Beaton, reeditada a partir da colecção do Imperial War
Museum, de Londres. Por outro lado, também cresceram as representações
de Neal Slavin (graças à colecção de Serralves), Edouard Boubat (mais 3
fotos dos anos 50), Brett Weston (1960) e Koudelka (1976).
Particularmente significativo é o alargamento do horizonte temporal
da colecção até ao presente, com o acolhimento de trabalhos como os de
D. Arentz (provas impressas por contacto directo do negativo, com um
aparelho de grande formato, sobre desertas paisagens urbanas) e L.
Bianchi (recomposição de pormenores arquitectónicos, em estúdio, com
modelos geométricos e nus, num trabalho que recorda o de F. Drtikol nos
anos 20), e ainda como as fotos a cores de H. Callahan, sobre fachadas
de casas tradicionais, ultrapassando-se assim os pólos dominantes dos
olhares estrangeiros sobre o exotismo da Nazaré e de uma Lisboa arcaica e
misteriosa, nos anos 50-60, ou mais tarde sobre a «revolução dos
cravos».
Paralelamente, o Museu de Charleroi acolheu extra-programa um
fotógrafo belga, Michel Waldmann, que visitou repetidas vezes Portugal e
apresentou algumas calorosas visões jornalísticas, entre outras de
efeito mais anedótico.
A recepção interessada das exposições na imprensa de lingua francesa,
pelo menos, pode ser registada através de dois títulos significativos:
«Photo: un certain regard sinon une forte présence», no «Le Soir», e
«
Cent ans d'images et de déclics - pour la toute première fois de son
histoire, la photographie portugais s'exporte», no «L'Express/Le Vif». A
fotografia portuguesa era desconhecida, mas existe - é essa a principal
ideia transmitida.
NUMA ordem inversa da da cronologia, acrescentem-se ainda à descrição
da iniciativa algumas rápidas anotações criticas sobre os materiais
expostos. Na secção contemporânea destacam-se naturalmente os trabalhos
de Nozolino e Castello Lopes, e também os de José Rodrigues, fotógrafo
com actividade profissional na Holanda que importaria conhecer melhor,
sendo todos eles mostrados em breves selecções retrospectivas. Se
poderia ser oportuna a sua mais larga representação, não deixa de
estabelecer-se uma distinção nítida entre consagrados e novos, uma vez
que dos primeiros se expõe uma selecção de trabalhos diferenciados e
isoladamente de grande interesse enquanto os restantes mostram um só
projecto tematicamente estruturado. Entre estes, confirmam-se
abertamente os itinerários recentes de Augusto Alves da Silva e António
Júlio Duarte.
A. Alves da Silva apresenta uma sequência de seis imagens alternadas
de denúncia de situações de degradação da paisagem algarvia, utilizando
uma abordagem friamente distanciada e «neutral» em fotografias de
enquadramento frontal sob uma luz constante que privilegia uma gama
uniforme de cinzentos; A. Júlio Duarte mostra uma reportagem feita em
Macau, com 10 fotos de pequeno formato (P&B), onde a criação de
espaços fragmentados e ilusionísticos se prolonga em jogos subtis de
máscaras, cartazes e palavras.
Noutro pólo de menor eficácia, no qual a procurada dimensão
experimental não parece ultrapassar uma certa inconsequência, o
amadorismo ou o exercício privado, encontram-se as contribuições de
António Carvalho (Folhas Mortas), trabalho literal e certamente ingénuo
de impressão fotográfica, colagem, montagem, coloração de folhas de
árvores; de Francisco José Azevedo, «homenagem aos polípticos flamengos e
à fotografia de cabeceira» (A.S.); de Daniel Blaufuks, «polaroids»
anódinos em caixas com iluminação interior, numa possível referência à
publicidade e ao vídeo que constitui mais uma deriva num trabalho que
parece multiplicar-se em direcções pouco conciliáveis; e António Motta,
com uma instalação dedicada aos «arquétipos técnicos e sensoriais da
imagem fotográfica» (A.S.), transportando uma pouca partilhável ambição
«poética».
Para lá destas propostas que apenas parecem testemunhar a relação
aberta do comissário com a ortodoxia fotográfica, resultam mais
interessantes embora carentes de melhor confirmação o trabalho de
Mariano Piçarra, as videografias de Francisco Rúbio e a presença do
estreante Rui Fonseca com uma série de fotografias da orla marítima de
uma discreta dimensão onírica.
É óbvio que se trata aqui de um panorama incompleto (talvez o domínio
da foto-reportagem, onde se conhecem alguns trabalhos de segura
qualidade, dificilmente pudesse ser apresentado sem um outro contexto
integrador), ou de uma selecção afirmativa de interesses próprios do
comissário. Mas no terreno das exposições colectivas é perigoso
ambicionar consensos e equilíbrios: o que importa é multiplicar as
iniciativas, assegurar a independência de comissários competentes e
avaliar os efeitos da concorrência entre as suas sucessivas propostas.
A qualidade própria dos trabalhos que representam os anos 30/60 é já
conhecida de exposições anteriores. Não se esperará de carreiras
ensaiadas à margem de condições mínimas de profissionalização, e quase
sempre rapidamente interrompidas, uma produção globalmente competitiva
com a dos autores que constituem a história geral da fotografia. Mas
todos os fotógrafos incluídos (e também o ausente Fernando Lemos)
desenvolveram um trabalho de resistência frente aos valores dominantes
no seu tempo e uma incorporação experimental da informação externa,
expressos no seu visível interesse simultâneo pela descoberta do país e
da fotografia, que se transmite nessas imagens só recentemente
recuperadas. Uma outra revisão a fazer deveria agora permitir o
confronto directo dessas fotografias, independentemente de uma nítida
afirmação de autorias, com uma outra selecção mais ampla feita sobre o
foto jornalismo e a fotografia documental do tempo (a arquitectónica e
etnográfica, em especial), bem como com o trabalho dos amadores e
salonistas seus contemporâneos.
Mas de todo o projecto retrospectivo, é a obra de Benoliel que emerge
com definítiva clareza, finalmente liberta das muitas utilizações
oportunistas e amadoras de que tem sido presa fácil - e que num primeiro
momento justificaram até a rejeição do fotógrafo pelo museu belga. A
importância de alguns momentos historicamente decisivos que fixou para
«O Século», veio somar-se o encontro com uma efectiva originalidade na
prática do fotojornalismo, muitas vezes atenta a um lado mais intimo e
inconvencional do testemunho informativo. Veio acrescentar-se a
abordagem de um quotidiano da cidade feito de situações
«insignificantes», despidas de qualquer retórica ou estratégia
anedótica, bem como o interesse por géneros fotográficos menos
associados à sua fama mais corrente, como os interiores e as «naturezas
mortas». Por outro lado, a exposição ensaiou a indispensável revisão do
trabalho de Benoliel em articulação com as condições práticas da
divulgação das suas fotografias em «O Século» e na «ilustração
Portuguesa», nomeadamente com atenção ao grafismo envolvente, paginação,
legendas e textos anexos.
Efectiva redescoberta de Benoliel, como grande fotógrafo e como
pioneiro da reportagem moderna dos anos 20, esta exposição mostrou mais
uma vez que a autêntica recuperação patrimonial é indissociável do rigor
metodológico e técnico, como o trabalho de A.S. tem demonstrado em
exposições e catálogos. A retrospectiva nacional e uma edição condigna
impoõem-se agora.
Charleroi: espaços individuais dedicados a
Joshua Benoliel / Sena da Silva / Helena Almeida
+ uma sala com
António José Martins, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, Gérard Castello Lopes e Jorge Guerra
+
Olhares Estrangeiros (I)
Antuépia:
Victor Palla e Costa Martins
+
Gérard Castello Lopes / Paulo Nozolino / José M. Rodrigues
Augusto Alves da Silva / António Júlio Duarte /Rui Fonseca / José Francisco Azevedo / Daniel Blaufuks / Mariano Piçarra / José António Motta / Francisco Rúbio / António Carvalho
Catálogo (bilingue, francês/flamengo)
Introdução, António Sena
Les années de transition (1927-1967), A.S.
Regards étrangers (1930-1989), Jorge Calado
Regards inquiets (1980-1991), A.S.
Bio-biliografias