sábado, 27 de agosto de 2005

2005, Shogi Ueda em Madrid, La Caixa

 Japão por perto

Shogi Ueda em Madrid

«Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», Madrid, La Caixa, 2005

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O fotógrafo Shoji Ueda numa retrospectiva em digressão por Espanha 


EXPRESSO Actual de 27-08-2005

   

 

 

«Quatro Raparigas em Pose», 1939

 


Há muito tempo que é uma banalidade chamar ao Japão o «país da fotografia», e não só por de lá virem quase todas as câmaras, mas continuamos a conhecer muito pouco as suas imagens. Embora o mundo seja hoje global, os canais de circulação são quase exclusivamente ocidentais e a dificuldade da língua também não ajuda a reter os nomes dos fotógrafos, das exposições e livros ou dos inúmeros grupos e revistas regionais. Araki e Sujimoto já foram expostos em tempos mais favoráveis, e na colectiva «À Prova d’Água», a pretexto da Expo’98, Jorge Calado incluiu 21 japoneses. Depois, têm-se perdido outras oportunidades, como a de trazer à Europa a grande retrospectiva norte-americana de Shomei Tomatsu, considerado o fundador da fotografia japonesa moderna, ou mesmo só de fazer passar a fronteira a antologia de Shoji Ueda que a Fundação la Caixa apresentou em Junho-Julho em Madrid e pôs em circulação, em colaboração com o Museu de l’Élysée, de Lausanne. Está até Outubro em Palma de Maiorca e em Janeiro-Fevereiro transfere-se para Málaga (onde se poderá aproveitar para visitar o simpático Museu Picasso) - encontra-se ainda por confirmar uma anterior passagem por Córdova. Seguirá depois para a Suíça e por Roterdão e Paris numa digressão de dois anos. O desinteresse das instituições é tanto mais estranho quanto os comissários Gabriel Bauret e William Ewing, o director daquele museu, tiveram já diversas colaborações com os Encontros de Coimbra e com a Culturgest.


Shoji Ueda (1913-2000) é talvez o mais singular dos fotógrafos japoneses e aquele cuja carreira, sempre discreta, atravessou um horizonte temporal mais longo e diversificado, desde a «fotografia artística» de inspiração pictorialista, que no Japão se prolongou pelos anos 30, até ao fim da década de 90. A 2ª Guerra Mundial, ou Guerra do Pacífico (1941-45), foi só um intervalo na sua obra, quando escasseava o material fotográfico e era recrutado por duas vezes para o Exército, só por brevíssimos períodos devido a debilidade física. Logo que o conflito termina, Ueda regressa aos seus cenários de areia e às composições encenadas com figuras, imobilizadas como objectos, desenvolvendo o seu «Teatro das Dunas» com um humor e uma serenidade totalmente à margem do fotojornalismo documental que orientava então a fotografia japonesa. Hiroshi Hamaya (1915-1999) era um exacto contemporâneo dedicado ao documentário humanista e membro da Magnum, enquanto a ocupação norte-americana e as marcas deixadas por Hiroxima e Nagazaki iam servindo de desafio para a renovação radical que a agência Vivo e a revista «Provoke» protagonizaram, com Tomatsu, Eikoh Hosoe e Daido Moryama. Mas é também no pós-guerra, isolado na sua região de Tottori, que começa a trajectória profissional heterodoxa de Ueda, como que indiferente às mudanças de tempos e centrada na intimidade de um universo imóvel.


Edward Steichen, que o descobriu por altura da digressão de «The Family of Man», incluiu-o numa mostra do MoMA, em 1960. Quando as suas exposições e publicações se sucediam no Japão, redescobrindo-se o seu percurso solitário, Arles mostrou-o pela primeira vez em 1978 (voltou em 87) e o Photo Fest de Houston homenageou-o em 88. Em 1995 inaugurou-se o Museu da Fotografia Shoji Ueda em Houki-cho, nas imediações das dunas de Tottori e do Monte Daisen, com as 12 mil imagens que doou e um notável projecto premiado do arquitecto Shin Takamatsu - um dos seus quatro corpos é ocupado por uma câmara escura gigante que projecta a imagem invertida do monte sagrado. Daí procedem todas as fotografias desta primeira grande retrospectiva fora do Japão, e quase todas são provas de época com uma fabulosa qualidade de impressão a preto e branco.


 

FOTOS SHOJI UEDA OFFICE, TOKIO

 

«Lago», 1959

 

A mostra intitulada «Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», reúne 151 fotografias de 70 anos de trabalho (1929-1999), o que corresponde a uma carreira paralela à de Álvarez Bravo, tão idiossincrática e localmente universal como a do mexicano (embora um dos textos do catálogo, de Iizawa Kôtarô, lhe aponte como característica a «falta de nacionalidade»). Se é usual atribuir-lhe um «estilo único», é mais a forma muito pessoal como se relacionou com as grandes tendências da fotografia, apropriando-se delas com a segurança e independência de um projecto íntimo, que marca o seu percurso.


As primeiras fotografias expostas, feitas a partir dos 16 anos, alternam os pigmentos a óleo pictorialistas com as experiências do fotograma, da solarização, do contraluz forte e das perspectivas picadas ou dos pontos de vista rasantes ao chão, circulando entre o gosto dominante nos concursos e a informação internacional de vanguarda (a exposição «Film und Foto» chegou em 1931 ao Japão). Aos 19 anos (1932), depois de uma breve formação em Tóquio, logo que acabou os estudos secundários, abriu o seu primeiro estúdio (e loja) de fotografia, permanecendo quase sempre na sua região de Tottori, em ligação com círculos de amadores. Aliás, Ueda continuou depois a definir-se como «um fotógrafo rural amador», lembrando o universo dos clubes e salões da «fotografia artística» em que se integrou muito cedo. Numa entrevista confessou a admiração por Jacques-Henri Lartigue, o mestre a quem elogiou a ilimitada curiosidade.


A informação surrealista, que teve largo curso no Japão, está presente numa natureza morta de 1937 que junta um manequim e um guarda-chuva a chapéus voadores; mais tarde é óbvia a relação com as paisagens de objectos de Tanguy (Pequenos Náufragos, 1950) e também com Magritte, através dos retratos com acessórios imprevistos e dos jogos espaciais de escalas e perspectivas irrealistas, servindo-se do cenário abstracto e sem profundidade das dunas, de uma luminosidade pura e transparente. Otto Steinert incluiu-o na versão japonesa da «Fotografia Subjectiva», em 1956, e as paisagens de neve e as superfícies de águas, ou as posteriores «Visões da Paisagem», de 1970-80, possuem o sentido apurado da pesquisa formal da abstracção norte-americana (Siskind, Callaham), mas o seu grafismo tem a nudez poética e a subtileza interior da sensibilidade japonesa mais antibarroca. O provinciano da remota região de Izumo, na costa interior do Mar do Japão, nascido em Saikaminato, é um fotógrafo bem informado, que deixou os processos pré-modernistas sem nunca se prender a correntes vanguardistas, tão inclassificável como os seus temas, colhidos no quotidiano e nas imediações da sua casa.


Seis núcleos traçam a continuidade da sua obra em sequência cronológica: as primeiras fotografias (1929-1940), onde já surgem as encenações de figuras nos espaços desérticos da praia; o mais famoso «Teatro das Dunas» (1945-51), com retratos e auto-retratos com adereços; «Da natureza morta à paisagem», anos 50; o «Calendário das Crianças» através da variação das estações do ano, de 1955-1970; «Paisagens e Memórias», 1970-85, com as séries «Visões da Paisagem», 1970-80; «Pequena Biografia», 1974-85; «Recordações sem Som», com imagens de uma viagem pela Europa, de 1972-73. Por fim, o humor do «Regresso às Dunas», 1980-99, com o trabalho de encomenda «Moda nas Dunas», e as últimas imagens, as «Ondas Negras» em homenagem ao monge budista chinês Ganjin, descendo a noite sobre o mar.

shoji ueda office


sábado, 4 de junho de 2005

2005, Joshua Benoliel - LisboaPhoto

LisboaPhoto

Benoliel - Génio ou mito?

Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico

Cordoaria (até 21 de Agosto)

Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido

Expresso Actual de 04-06-2005   

É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e «ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do correspondente internacional, com originais cheios de anotações, retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o desprezo nacional pelo património fotográfico.

Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são sempre um manancial para reimpressões.

Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a «Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica em Portugal, de António Sena).

Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» (1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso de Coimbra, já dentro do comboio.

As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. «O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor vulto.

Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, acompanhada por um catálogo truncado.

De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um personagem singular.

Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em «Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a «Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em Leipzig.

Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 2002).

A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira «ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.

O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da mostra). Daí a concentração sobre temas da história política enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.

Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é um exercício de esteticismo anacrónico.

As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança continua a ser delapidada.


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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta

JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005

É sempre gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma política de conservação e preservação desse mesmo património.

Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.

Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.

Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria, isto é, uma nova cultura visual.

A «concentração sobre temas da história política» apenas é demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que extravasa o significado original das mesmas.

A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto que são apresentadas 19 edições originais.

Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as «mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o faz Pomar.

Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo autor.

A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por investigadores competentes.

A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»

N.R.

Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as provas modernas.
A.P.

sábado, 14 de maio de 2005

2005, LisboaPhoto, Helmar Lerski, duas notas (Sérgio Mah)

 LisboaPhoto 2005

Helmar Lerski

"As verdades do retrato"

 Expresso/Actual de 11 Junho 2005


Helmar Lerski, do cinema expressionista para a fotografia

Ao longo das seis salas de exposição renovadas na segunda área de galerias da Culturgest (na zona principal continua a mostra de Xana), multiplicam-se os retratos de Helmar Lerski, apresentados pelo Museu Folkwang de Essen, no âmbito do LisboaPhoto. Num primeiro olhar não se reconhece que todos eles, em mais de 120 magníficas provas «vintage», mostram um mesmo rosto (o do engenheiro-desenhador Leo Uschatz).

Vão mudando alguns escassos adereços, um capuz, os óculos; assiste-se a algum teatro fisionómico, a testa enrugada, a pressão dos maxilares, mas é a constante variação dos enquadramentos, em «close-ups» muito fechados e num tamanho maior que o natural, conjugados com os efeitos da luz, que asseguram a diferença entre os retratos do mesmo homem, onde já se julgaram reconhecer as figuras de um herói, um profeta, um monge, um soldado agonizante, uma velha mulher.... Lerski (1871-1956) usou uma arcaica câmara de muito grande formato (30x24cm) e imprimiu por contacto, transformando a face numa imensa paisagem compacta, esculpida pela textura, o brilho e os relevos da pele. Fotografou ao sol, num terraço, usando diferentes filtros e 16 pequenos espelhos para fazer variar interminavelmente a luz e o recorte das formas.

Em vez do retrato objectivo, neutro ou científico, e à distância, também, do retrato subjectivo, que visaria interpretar a psicologia, o carácter, a individualidade mais profunda de alguém, Lerski constrói com a face única de um mesmo homem, que não é um actor, toda uma galeria de expressões e (pseudo)identidades. É uma das mais radicais experiências fotográficas sobre o retrato, realizada em 1935/6, na Palestina, por um artista e profissional dedicado a essa área especializada da fotografia, que já tinha sido director de câmara e de efeitos especiais do cinema mudo expressionista alemão (Metropolis, de Fritz Lang, 1927).

Em 1931 publicara um livro que se inclui sempre nas escolhas dos melhores «photobooks». Köpfe des Alltags: Unbekannte Menschen (Cabeças de todos os dias: gente desconhecida) reúne 80 retratos de estúdio onde os rostos, sempre em grande plano, surgem dramaticamente estilizados por luzes expressionistas. Recrutou modelos em agências de emprego e refere-os através de identidades sociais (varredor de ruas, mendigo, pintor, guarda-livros, etc.), o que concede ao volume o carácter de um documentário sócio-psicológico.

Depois, «Metamorfoses pela Luz» demonstraria que a presença física e objectiva de um rosto ou que o carácter de um retratado são por inteiro, ou podem ser, uma construção do fotógrafo, ou que a imagem exterior da identidade social ou a presença psicológica supostamente mais íntima (que um bom retrato subjectivo devia ser capaz de captar com «verdade»), podem ser elaboradas e infinitamente manipuladas a partir do exterior pelos meios próprios da fotografia. Para além deste exercício conceptual e prático levado à exaustão, o projecto de Lerski entronca num contexto muito particular da história da República de Weimar e da história da fotografia.

Nascido em Zurique de ascendência polaca, Helmar Lerski (aliás, Israel Schmuklerski) foi actor nos Estados Unidos antes de se dedicar à fotografia e passou a interessar-se pelo cinema documental depois de trocar Berlim pela Palestina, em 1931, antecipando-se às perseguições nazis; aí realizou um dos emblemas do cinema sionista, Avodah (Trabalho), em 1935, sobre os colonos judeus.

Para além das «Metamorfoses», onde aparentemente se dilui sob os efeitos da encenação a crença numa objectividade fotográfica, Lerski dedicou-se, na Palestina, a projectos de natureza documental marcados pela apologética sionista, «Cabeças Judias» e «Soldados Judeus», fez retratos de árabes e fotografias de paisagem e arquitectura; por outro lado, radicalizou as suas experiências numa série de «Paisagens do Rosto», com a ampliação de fragmentos de retratos, realizou estudos de «Mãos Humanas» e fotografou cabeças de marionetas, num último projecto que passou também ao cinema. Essa dupla orientação do trabalho de Lerski também deve ser considerada para que não se valorizem as «Metamorfoses» como uma definitiva demonstração - a prova e a teoria têm, aliás, diferentes eficácias em ciência e em arte.

As questões da identidade racial judaica agudizadas pelas perseguições nazis, bem como as da representação figurativa dos agentes da luta de classes, atravessam de modo dramático as décadas de 20/30. Na fotografia, esses anos são também marcados pelas grandes transformações sumariadas pela exposição «Film und Foto», organizada em Stuttgart em 1929 pelo Deutcher Werkbund (onde Lerski esteve representado com 15 imagens).

Com Karl Blossfeldt e Albert Renger-Patzsch (livros de 1928), a exploração sistemática do «close-up» tornara-se uma das marcas da «Nova Visão». Umbo (Otto Umbehr) terá sido o primeiro a aplicá-la ao retrato, inaugurando um novo estilo adaptado do grande plano do cinema e da redução às formas plásticas elementares cultivada pela Bauhaus, de que foi aluno. August Sander, identificado com a lógica mais ampla da «Nova Objectividade», publica em 1929 Antlitz der Zeit (Rosto do Tempo), no quadro do seu imenso projecto de traçar o retrato colectivo da Alemanha ao tempo da República de Weimar, fotografando em imagens de corpo inteiro tipos sociais referenciados por profissões e posições sociais. Lerski é um dos protagonistas dessa fase decisiva da fotografia alemã.

Helmar Lerski
«Metamorfoses pela Luz»   
Culturgest, até 3 de Julho

I e II

O que importa <em 2007> é a próxima edição do PhotoEspaña, porque o LisboaPhoto já foi (há dois anos). O mês de Madrid não terá a importância das três edições dirigidas por Horacio Fernández, mas vai celebrar os dez anos - a programação segue dentro de dias...

O que segue vem a propósito da 2ª, e para já última, edição do LisboaPhoto. Mudou a vereação, mudaram os compromissos (apesar de se tratar do mesmo partido), mas a concepção do programa de 2005 agravara mais ainda as insuficiências da edição anterior. O confronto com o PhotoEspaña mostra que ficamos sempre a perder - nos horizontes abertos ou fechados pela programação, na persistência ou na inconstância dos projectos.


DUAS NOTAS SOBRE O LISBOAPHOTO DE SÉRGIO MAH, 2005 

I - «A Imagem Cesura» - in Expresso/Actual 14-05-2005
II - "Imagens ou índices" - in Expresso/Actual de 21-05-2005

I - «A Imagem Cesura»

Nas vésperas do LisboaPhoto 2005

O título-tema é aberrante: «A Imagem Cesura». O 2º LisboaPhoto «constrói-se em torno do efeito de cesura da fotografia, mais especificamente sobre as conotações que esse efeito suscita relativamente à ontologia da fotografia. A cesura refere-se ao acto de golpear, à incisura». A ingénua prosa escolar da «Apresentação» encerra em estafadas questões essencialistas sobre «a natureza específica do dispositivo fotográfico», a partir do conceito de índice (de Charles Pierce), o que deveria ser o desafio de uma relação produtiva e mobilizadora entre as práticas da fotografia, a cidade e os seus públicos (os cidadãos).

Com um roteiro de 15 exposições oficiais que ignora todos os nomes de primeiro plano da fotografia portuguesa de hoje (mas Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte aparecem em Madrid numa parceria com o PhotoEspaña) e com um cartaz que faz da idiotia o emblema do LisboaPhoto, o acontecimento fotográfico bienal organizado pela Câmara sob a direcção de Sérgio Mah faz tudo para não despertar grandes expectativas.

E, no entanto, o programa inaugura-se no dia 18, na Cordoaria Nacional, com a mais aguardada das exposições: a primeira retrospectiva de Joshua Benoliel (1878-1932). Apesar da fama que gozou em vida, apesar de respeitado como patrono do fotojornalismo, Benoliel nunca teve a mostra ou o livro que o afirmassem como um autor de excepção no seu tempo internacional - o que foi possível entrever numa breve antologia mostrada na Europália’91, em Charleroi. Emília Tavares, a comissária, pesquisou os arquivos, encontrou originais e provas de imprensa, reuniu imagens impressas, investigou o contexto histórico e o uso social e institucional da fotografia. Espera-se que a obra não seja mostrada apenas como documentação histórica da sociedade portuguesa, e que se saiba valorizar o intimismo inovador e por vezes irreverente que distingue o olhar do fotógrafo.

Aaron Siskind, um dos grandes da fotografia norte-americana (Museu de Arte Antiga, dia 18), e o expressionista Helmar Lerski (Culturgest, dia 31) são outros pontos altos, tal como o serão com certeza as fotografias desconhecidas do Instituto de Medicina Legal (Arquivo Municipal, dia 8 de Junho), enquanto a arte contemporânea estará presente com as esculturas efémeras fotografadas por Erwin Wurm (Museu do Chiado, dia 2) e a mostra colectiva «Estados da Imagem. Instantes e Intervalos» (CCB, dia 25) - «entre a imagem-suspensa e a imagem-movimento, esta exposição reúne um conjunto diverso de modelos de produção e exibição de imagens de natureza técnica, procurando sugerir sinais de convergência, de inovação e de retroacção, a partir de graus de paragem e de concentração do e no movimento pela acção da fotografia, do cinema e do vídeo». Ao vazio das palavras pretensiosas corresponderá o deserto maneirista das imagens?

LisboaPhoto prolonga-se até Agosto e conta com um programa paralelo de exposições da iniciativa de galerias e escolas.


II - "Imagens ou índices"

A teoria e as exposições do LisboaPhoto

Expresso/Actual de 21-05-2005

«Há 20 anos dava-se prioridade a um debate ontológico em torno da natureza do fotográfico e da sua intersecção com as distintas versões da criação artística. (...) A fotografia é certamente um depósito químico produzido num certo momento daí a categoria de índice, ou indício, que se atribui à imagem fotográfica, mas não é isso o que realmente nos interessa. O que queremos saber é como essa combinação de luz, espaço e tempo adquire um sentido para nós, que contexto ideológico a envolve, que efeitos políticos desencadeia.» Joan Fontcuberta, Estética Fotográfica (Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2003, págs. 7-9).

«A teoria do índice é demasiado abstracta, demasiado indiferente às imagens, demasiado essencialista, demasiado redutora para ser operatória, em especial nestes tempos de profundas transformações e de redefinições das relações entre as imagens. A vulgata do índice encerra-se nos limites imutáveis da essência no momento em que é preciso compreender as evoluções.» André Rouillé, La Photographie (Folio Essais, 2005, pág. 257).

Na introdução deste livro (estimulante mesmo quando é injusto ou inaceitável), Rouillé escreve:

«Para lá da sua fecundidade teórica, as noções de rasto, de marca ou índice tiveram o imenso inconveniente de alimentar um pensamento global, abstracto, essencialista; de propor uma abordagem totalmente idealista, ontológica, da fotografia; de reportar as imagens à existência prévia de coisas de que elas seriam só o registo passivo. Segundo essa teoria, ‘a’ fotografia é, antes de tudo, uma categoria de que se devem fazer decorrer as leis gerais; não é nem um conjunto de práticas variáveis segundo as suas determinações particulares nem um corpus de obras singulares. Esta recusa das singularidades e dos contextos, esta atenção exclusiva à essência, leva a reduzir ‘a’ fotografia ao funcionamento elementar do seu dispositivo, à sua mais simples expressão de marca luminosa, de índice, de mecanismo de registo. O paradigma ‘da’ fotografia é, assim, construído a partir do seu grau zero, do seu princípio técnico, muitas vezes assimilado a um simples automatismo.»

O envelope teórico do programa «A Imagem Cesura» não é «arriscado» - como já se pretendeu -, mas sim conceptualmente limitado e desactualizado.

- Ver também "Imagens Privadas", colectiva na Plataforma Revólver - 28 de Maio de 2005

sábado, 12 de março de 2005

2005, Stieglitz em Madrid

 Diálogos americanos 

Expresso  12-03-2005


Stieglitz em Madrid. O fotógrafo e o agente artístico 


«Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)»


Às duas grandes exposições da agenda de Madrid, uma centrada na figura do fotógrafo, editor e galerista nova-iorquino Alfred Stieglitz (no Museu Rainha Sofia até 16 de Maio) e outra dedicada ao centenário do grupo expressionista alemão Die Brücke (Museu Thyssen, 15 de Maio), veio juntar-se esta semana uma grande mostra de desenhos de Dürer vindos do Museu Albertina de Viena (Museu do Prado, 29 de Maio). É uma conjunção rara em qualquer capital, a reafirmar o poder de um centro cultural que ultrapassou a sua área peninsular de influência.


Stieglitz (1864-1946), além de fotógrafo com uma obra longa e muito influente, percorrendo diferentes e até contraditórias orientações, foi um decisivo activista da afirmação da fotografia como arte e um agente determinante na abertura dos Estados Unidos à arte moderna, mas é certamente o pólo menos conhecido desse triângulo de exposições madrilenas. Vinda do Museu de Orsay, numa co-produção que foi o grande acontecimento do Mês da Fotografia de Paris em 2004, é uma exposição que pela primeira vez apresenta largamente a sua obra fotográfica na Europa e um precioso panorama sobre os artistas e os acontecimentos que marcaram a modernização artística norte-americana, a que em geral não se tem acesso directo fora dos Estados Unidos.


«Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)» toma como ponto de partida a inauguração da galeria - The Little Galleries of the Photo-Secession - que fundou num pequeno prédio com o nº 291 na 5ª Avenida, com o também fotógrafo Edward Steichen (1879-1973), que viria muito mais tarde a dirigir o departamento fotográfico do MoMA e a organizar a muito discutida exposição «The Family of Man» (1955). Essa opção cronológica deixa em parte na sombra a carreira anterior de Stieglitz, que se integrara, desde os anos 1880, nos círculos da fotografia picturialista europeia, em crescente sintonia com as correntes simbolistas. Ainda que a sua obra pessoal, pelo predomínio do olhar fotográfico face às manipulações picturais e pelo interesse nas abordagens naturalistas da paisagem e das figuras, não exprimisse a ambição visionária do simbolismo mais extremo, é esta a orientação dominante tanto dos fotógrafos da Photo-Secession, que Stieglitz reúne em Nova Iorque em 1902, como dos primeiros anos da revista «Camera Work», que dirige de 1903 até 1917, e também da galeria, que ficou conhecida pelo número 291 e encerrou no mesmo ano devido às dificuldades da I Guerra Mundial.


Em 1908, Stieglitz faz escândalo ao expor os desenhos eróticos de Rodin e desenhos e esculturas de Matisse, a que se seguem as primeiras apresentações na América de Cézanne, Picasso e Brancusi, antecipando o grande choque cultural que foi a exposição do Armory Show (1913). Ao mesmo tempo, começava a apresentar artistas americanos dos meios vanguardistas de Paris, como John Marin, Max Weber, Marsden Hartley e Arthur Dove, a que se junta, já em 1917, a jovem pintora Georgia O’Keeffe, com quem viria a casar. Toda essa abertura de Nova Iorque às revoluções da arte moderna é em geral documentada na exposição através das próprias obras expostas e coleccionadas por Stieglitz.


Ainda que a «Camera Work» e a galeria 291 continuassem, cada vez mais esporadicamente, a mostrar os grandes nomes do picturialismo, como Steichen, o barão Adolf de Meyer, Clarence White e Gertrude Käsebier, Stieglitz vai-se desligando dos meios fotográficos e volta-se para os artistas mais inovadores, sob a influência de Max Weber e do caricaturista e escritor mexicano Marius de Zayas. Embora muito influente, essa sua aproximação às novas tendências é, em geral, ainda moldada por um modelo esteticista de inspiração simbolista que o leva a entender o cubismo como caminho para a abstracção, aceitando esta por analogia com a música e vendo a arte como expressão do «élan vital» bergsoniano e do eu profundo de cada criador.


Entretanto, Stieglitz começara a modificar a sua obra pessoal numa direcção mais ancorada no real, ainda que continuasse a rejeitar as orientações do realismo social de um Lewis Hine (bem como a pintura reformadora e antiacadémica de Robert Henri e John Sloan). Fotografa a transformação arquitectónica de Nova Iorque e defende através da «pureza» dos processos da fotografia «straight» uma nova concepção formalista da autonomia do médium. No último número da «Camera Work» publica a obra de Paul Strand como expoente desse novo modernismo fotográfico, ao mesmo tempo que inicia a série admirável de retratos de Georgia O’Keeffe. Num percurso sempre surpreendente, a sua última fase reencontrar-se-ia com uma perspectiva simbólica da abstracção, em séries de fotografias de nuvens de analogia musical, «equivalentes» a uma identificação espiritualista com a natureza. Como galerista (The Intimate Gallery e An American Place), ao longo das décadas de 20 a 40, Stieglitz passou a apresentar apenas artistas norte-americanos, numa busca da «americanidade», antieuropeia e distante das mutações trazidas pela Grande Depressão, que viria a ser uma das raízes da abstracção expressionista dos anos 50.


Entre estes dois períodos, diferentes mas unidos por uma subterrânea coerência idealista, Stieglitz foi uma das figuras da agitação protodadaísta em Nova Iorque, em cumplicidade principal com Picabia e Duchamp (para quem fotografou a famosa Fonte assinada por R. Mutt). Esses anos de efervescência cosmopolita que se seguiram ao Armory Show e ao início da I Guerra Mundial, num tempo de radical mudança do mundo, são outro dos grandes capítulos desta extensa e sempre surpreendente exposição.