domingo, 10 de maio de 2009
Mikael Levin, Cristina's History, 2009, CCB
sábado, 15 de junho de 2002
Fernando Calhau (1948-2002)
"Carreiras paralelas"
FC, artista plástico e ex-director do IAC
Expresso Actual de 15/6/2002
Artista plástico e primeiro director do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), Fernando Calhau faleceu na quarta-feira, após prolongada doença. Tinha 54 anos, e as suas últimas obras podem ver-se ainda até ao fim do mês no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, numa mostra conjunta com Rui Chafes onde a presença da morte se podia reconhecer logo no título escolhido, «Um Passo no Escuro».
Formado em pintura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1973, com estudos de pós-graduação na Slade School de Londres, com Bartolomeu dos Santos, Calhau começou por dedicar-se à gravura. Logo no início dos anos 70, a sua obra tomou a direcção das pesquisas minimalistas e conceptuais, que nunca mais abandonou, tendo participado activamente nas movimentações vanguardistas da década, juntamente com Ernesto de Sousa, Julião Sarmento e outros, nomeadamente na exposição «Alternativa Zero», em 1977. A utilização da fotografia, do filme Super 8 e depois do vídeo tiveram então um largo espaço no seu trabalho, a par da realização de séries de pinturas monocromáticas, onde dominam as superfícies negras.
A seguir, o envolvimento com responsabilidades administrativas na Secretaria de Estado da Cultura, pouco depois do 25 de Abril, tornou mais discreta a sua presença como artista plástico, espaçando-se a sequência das exposições individuais - registem-se, entre outras, as que realizou na Galeria Cómicos, em 1987, 89, 91 e 93, passando à utilização de suportes recortados, de chapas de ferro e do néon. Uma perspectiva global do seu trabalho foi apresentada numa antologia organizada pelo Centro de Arte Moderna em Outubro de 2001, a que se seguiu a atribuição do Prémio AICA-Ministério da Cultura desse ano.
Fernando Calhau deixara já a direcção do IAC, por doença. Sucedeu-se então um breve período de maior intensidade criativa, de que resultaram exposições de pintura, na Galeria Cristina Guerra, e de desenho, também no CAM («Passageiro Assediado»), onde as linguagens reducionistas de sempre se orientaram num sentido menos formalista, em que a emotividade e a inquietação estavam notoriamente presentes.
No âmbito da administração cultural, Calhau manteve uma intervenção
oficial continuada ao longo de 25 anos, através de variados contextos
políticos (interrompida no mandato de Santana Lopes), tendo chefiado a
divisão de Artes Plásticas e o serviço de Comunicação Visual da antiga
Direcção-Geral de Acção Cultural da SEC, onde trabalhou com João
Vieira, Julião Sarmento, Cerveira Pinto, Margarida Veiga e Delfim
Sardo <com os dois últimos criou a empresa Modus Operandi, de prestação de serviços>. Foi membro da comissão organizadora do Museu de Arte Moderna do
Porto e integrou as comissões de compras de obras de arte para a SEC e
para a Fundação de Serralves, passando a assegurar também a orientação
da colecção de arte contemporânea da Caixa Geral de Depósitos entre
1992 e 96. Essa experiência culminaria na actividade à frente do IAC,
criado em 1997, depois de já ter presidido à respectiva comissão
instaladora.
sábado, 7 de dezembro de 1996
Fernando Calhau, 1996, ENTREVISTA (na criação do Instituto de Arte Contemporânea)
Fernando Calhau: Não há lugar para desperdícios
7- 12 -96 ARQUIVO EXPRESSO:
FERNANDO Calhau é pintor e preside à Comissão Instaladora do Instituto de Arte Contemporâne. Tem uma longa embora discreta carreira nesta área, já que trabalha há vinte anos na administração pública do sector das artes plásticas, designadamente na antiga Direcção-Geral de Acção Cultural, extinta com a «reforma» de Santana Lopes. Aliás, essa dupla condição de artista e agente cultural, ou gestor cultural, iniciara-a já antes com a participação nas direcções da Cooperativa Gravura e da Sociedade Nacional de Belas Artes. Nasceu em Lisboa em 1948 e licenciou-se em 1973, tendo feito uma pós-graduação na Slade School de Londres, como bolseiro da Gulbenkian.
Observa-se
no caso de Fernando Calhau, como acontece com Margarida Veiga, que
também chefiou a Divisão de Artes Plásticas da antiga SEC e dirige agora
o Centro de Exposições do CCB, uma curiosa situação de continuidade de
percursos que atravessaram muitos governos diferentes, mas ele sublinha
que «pela primeira vez há um reconhecimento por parte do Governo da
importância desta área da arte contemporânea, que era tratada como
parente pobre».
Por outro lado,
Fernando Calhau tem também um extenso «curriculum» como coleccionador
institucional, tendo integrado as comissões de compras da SEC e da
Fundação de Serralves, e mantem-se ainda à frente da colecção da Caixa
Geral de Depósitos, considerando que apenas existirá uma
incompatibilidade de funções no caso de vir a ser convidado para a
presidência do IAC.
Na rede dos serviços do actual Ministério da Cultura, a intervenção no domínio da arte contemporânea, que antes fora incluida nas competências do Instituto Português de Museus, deu lugar a um novo Instituto, cuja lei orgânica se aguarda. Não será, diz F. Calhau, uma instituição burocrática devoradora dos seus proprios recursos financeiros, mas uma estrutura ligeira. Nem terá funções de coordenação ou tutela sobre outras entidades da mesma área da criação contemporânea, como os museus do Chiado, com o seu futuro pólo de Alcântara, e de Serralves, no Porto, ou o Centro Cultural de Belém, onde ficarão em depósito as peças da Colecção Berardo que não couberem no Sintra Museu de Arte Moderna e que será igualmente o destino do novo programa de aquisições agora anunciado.
EXPRESSO — Quais são os objectivos da intervenção pública no campo da arte contemporânea?
FERNANDO
CALHAU — Há duas linhas de actuação principais: uma tem a ver com o
apoio à criação e outra com a comunicação e o público. Quanto à criação,
temos linhas de apoio directamente aos criadores e de apoio à produção
de exposições, e temos também linhas de actuação no que respeita ao
mercado e à comercialização.
EXP. — Como entende o IAC a relação entre o Estado e o mercado privado?
F.C.
— O mercado de arte deve ser essencialmente privado. Mas sendo o campo
das artes plásticas particularmente sensível, porque não existe um
público muito alargado, é fundamental que o Estado dê uma ajuda e motive
o mercado nesta área. Isso será feito, em termos internos, através do
programa de aquisição de obras de arte, e em termos externos, nas feiras
de arte, com um duplo objectivo, não só de lançar artistas no meio
internacional, como de alargar os meios do mercado nacional.
F.C. — As atribuições da arte contemporânea estavam anteriomente cometidas ao IPM, que tem tarefas muito vastas e importantes no que diz respeito à rede de museus que tutela. Por outro lado, a criação deste Instituto vem dar ao sector uma maior capacidade de intervenção, de mobilização de meios e de áreas de presença. Quanto às ligações com o IPM ou os museus, são semelhantes ao que acontecerá entre o IAC e todos os organismos do MC, ou seja, articular-nos-emos com todos eles, com o IPM, o CCB, a Cinemateca, a Biblioteca Nacional...
EXP. — Em termos de coproduções?
F.C. — ...naqueles projectos que nos interessarem a nós e que interessem aos outros organismos, e que forem de benefício comum.
EXP. — Esses organismos manterão a sua independência entre si? O IAC não tem a tutela sobre o sector?
F.C. — Não tem nenhuma tutela.
EXP. — O IAC existe para subsidiar iniciativas exteriores e alheias — feiras, bienais, exposições, etc — ou assumirá uma programação própria?
F.C. — As duas coisas. Vamos apoiar tudo o que mencionou e vamos também ter programação própria, porque faremos um programa de divulgação da arte contemporânea em todo o território nacional. Não será um modelo ultrapassado de «enlatados», como as velhas exposições itinerantes que eram despejadas localmente e apresentadas a seco, normalmente pouco motivadoras. É importante criar um modelo para cada situação do território, o que não quer dizer que esses modelos não possam ser repetidos — não há uma paranóia da originalidade e é também uma questão de rentabilizar meios. Vai tentar-se criar exposições com formulações diversas, a partir de acervos diversos, umas comissariadas por pessoas do Instituto e outras por pessoas convidadas, ou por directores de espaços locais que tenham capacidade para o fazer. Mas sempre acompanhadas por conferências, visitas guiadas, debates, também procurando o modelo que se ajuste melhor a cada situação.
EXP. — Contar-se-á com a actual proliferação das galerias municipais e centros culturais descentralizados, procurando formas de articulação?
F.C. — ... e também com a rede de museus do IPM, com todas as associações que estão activas no meio e com equipamentos de outros institutos do Ministério, por exemplo.
EXP. — Nas duas linhas de acção que definiu (apoio à criação e formação de públicos), quais serão os critérios de intervenção? Há uma linha de orientação programática e estética, por exemplo no sentido de apoiar preferencialmente os jovens artistas, a inovação, a vanguarda artística?
F.C. — A pergunta tem dois vectores. Claro que apoiaremos sempre os artistas novos naquilo que diz respeito à afirmação de novos «apports» à arte contemporânea. Haverá um apoio atento ao que é novo, não enquanto novidade pela novidade, mas como novas aproximações aos fenómenos artísticos contemporâneos. Agora, quanto a uma orientação estétíca, não... de todo. A prática que desenvolvemos ao longo deste ano, como Comissão Instaladora, tem-no demonstrado. Temos apoiado um leque muito vasto de pessoas e de actividades, das mais diversas tendências e de diferentes áreas de mercado.
EXP. — Foi atribuída a alguém do IAC, num recente artigo de «O Independente», a frase «Vamos agora trabalhar com os artistas dos anos 90».
F.C. — É uma linha de fundo, de facto, mas significa que vamos trabalhar com aqueles artistas que trabalham nos anos 90. E não apenas, obviamente, com a geração que aparecerá ou já apareceu nos anos 90.
EXP. — Quais são os instrumentos para apoio directo à criação? Bolsas para artistas, aquisições, encomendas?
F.C. — Bolsas, não, mas atribuições de subsídios para projectos específicos, que podem ser individuais ou colectivos. Encomendas também menos, mas aquisições, sim, com certeza.
EXP. — Com que critérios?
F.C. — Os critérios serão definidos por uma comissão que vai ser constituida para esse efeito e que funcionará como uma comissão consultiva, sugerindo linhas de actuação ou áreas em que se entende que é útil avançar com a colecção. E depois haverá um elemento, um único elemento, que dará a cara e que, segundo essa definição estabelecida, actuará então no mercado.
EXP. — A comissão e esse elemento terão um prazo temporário de actuação?
F.C. — Exactamente. Um ano.
EXP. — Há quem considere que o fulcro da política de aquisições públicas deve residir nos museus. Não deveriam ser antes Serralves e o Museu do Chiado—Alcântara a comprar, e não um núcleo ministerial, que em princípio compra sem destino?
F.C. — Há uma especificidade nas aquisições que vamos praticar, e que, em princípio, se destinarão a um núcleo museológico do CCB. Serralves vai ter um discurso museológico próprio, com uma lógica discursiva e museológica própria. O Museu do Chiado e a sua extensão de Alcântara vão ter também um discurso específico, cronológico. O que pressupõe, a partir do momento em que esses núcleos estão estabelecidos, que as aquisições terão um carácter mais supletivo, visando suprir lacunas que se verifiquem nas suas colecções. Mas elas têm limites próprios e, por exemplo, o Chiado tem um limite temporal definido.
EXP. — Apesar de ter recebido em depósito a colecção FLAD, que vai até aos anos 90?
F.C. — Isso é outro problema de que trataremos mais à frente. De qualquer forma, uma vez que somos um Instituto sem necessidade de ter um discurso museológico permanente, poderemos ter uma atenção mais constante ao mercado, poderemos ter um acervo que registe o que está acontecer na sociedade portuguesa em termos de arte contemporânea. É muito importante ter um acervo desse género, porque, no fim de contas, é isso que vai fazer a crónica... Mas, atenção, só se isso for comprado, como vai ser, em perspectivas museográficas, ou seja, não vamos comprar só uma peça de cada artista nem peças de dimensões próprias de coleccão privada.
EXP. — Essas compras têm também o sentido de apoio à criação?
F.C. — Têm esse sentido continuado de apoio à criação, obviamente, e também às galerias, uma vez que as peças vão ser adquiridas nas galerias.
EXP. — É exactamente o que ía perguntar...
F.C. — Compraremos exclusivamente nas galerias. E mesmo quando forem peças de artistas estrangeiros — também se prevê que tal aconteça, e ter-se-á de definir um critério, provavelmente de artistas que estão ligados de alguma forma a Portugal —, as aquisições serão feitas através de galerias portuguesas, por forma a dar-lhes respeitabilidade internacional e maior capacidade de negociação com o estrangeiro.
EXP. — Essa tem sido uma reivindicação da Associação de Galerias...
F.C. — É uma reivindicação lógica das galerias. Aliás, mantemos há meses encontros regulares com a Associação e temos verificado que os contactos são frutuosos, permitindo ultrapassar maus entendimentos e funcionar mais francamente. Pretende-se que o IAC tenha uma ligação muito aberta com o exterior, com os agentes que estão activos no meio, e uma acessibilidade fácil.
EXP. — Que orçamento é que o IAC terá para aquisições?
F.C. — Contamos com uma verba da ordem dos 40, 50 mil contos, a partir de 1997.
EXP — É um montante que orienta as aquisições do IAC para o sector da «arte jovem» ou emergente, já que será difícil chegar a uma tela da Paula Rego ou, por exemplo, a um quadro da série dos «Reis» do Costa Pinheiro, que surgiu à venda por 17 mil contos.
F.C. — Essas directrizes terão de ser conjuntamente analisadas pela comissão que vai orientar as compras.
EXP. — A comissão terá uma independência idêntica à que procuram atingir os concursos do cinema e do teatro, ou traduzirá o gosto do IAC?
F.C. — A comissão terá em parte iguais pessoas do MC e do meio exterior.
EXP. — Para evitar a presunção de um gosto oficial?
F.C. — Prevenindo essa presunção.
EXP. — Quanto à área da divulgação, há outros projectos?
F.C. — Há mais actividades ligadas à formação de públicos. Nessa área — que conta com um departamento exclusivo do IAC, que designamos como de comunicação e informação — haverá um programa chamado «Arte nas Escolas» que funcionará no país todo: um programa muito longo, com muito pouca visibilidade imediata e que esperamos possa vir a dar resultados a dez anos de prazo. É um objectivo ambicioso, que pretende fornecer aos jovens em idade escolar, já perto dos últimos anos do ensino secundário, as ferramentas para entenderem a arte contemporânea. Não para obrigar os alunos das escolas secundárias a gostar de arte contemporânea, mas para a fazer compreender. Não se pode amar aquilo que não se conhece.
EXP. — Será uma forma de encarar também o problema da oposição entre as expectativas do público e alguma incomunicabilidade da arte contemporânea?
F.C. — É evidente que a arte contemporânea desenvolveu sistemas criativos que pressupõem muitas vezes um discurso que é feito sobre si próprio, sobre a sua própria actividade, e especializa-se às vezes a tal ponto que o público, se não estiver a funcionar nos mesmos parâmetros, fica um pouco de fora. Temos consciência disso e também de que a arte contemporânea é um dos aspectos fundamentais da vida das sociedades contemporâneas. Temos de colaborar para rebentar essa barreira, para aproximar o público de um processo criativo que, no fim de contas, lhe é destinado prioritariamente.
EXP. — Evitando o dirigismo da intervenção estatal?
F.C. — Em relação à hipótese de dirigismo, há um trabalho que estamos já a fazer com as autarquias que desenvolvem projectos culturais. Não queremos dirigir os projectos das autarquias, nem interferir neles, mas, dentro da nossa medida, poderemos ser consultados para sugerir melhores formulações, para reflectir sobre os assuntos, para rentabilizar os meios que têm à disposição e que muitas vezes são desperdiçados de uma maneira incrível.
EXP. — Prevêem-se formas de contratualização, como existem por exemplo na rede das bibliotecas?
F.C. — Prevêem-se todos os mecanismos que facilitem o progresso da divulgação da arte contemporânea em todo o território nacional. A cada momento serão estudados os melhores meios.
EXP. — Existem projectos de acção editorial?
F.C. — Sim, uma das atribuições da área de divulgação e comunicação passa pelas edições, desde os catálogos das exposições aos estudos teóricos e à tradução de ensaios, que é raríssima neste domínio, ou ainda pelo acesso aos meios electrónicos, como a Internet. Temos em estudo a criação de um CD ROM que será um dicionário comparado da arte portuguesa do século XX, com o agendamento dos artistas activos desde o modernismo, até aos que surgirem em 1997.
EXP. — Outra vertente de intervenção são os lugares de representação no estrangeiro, e neste momento perfilam-se Frankfurt'97 e, em Madrid, o Arco'98. São projectos assumidos directamente pelo IAC?
F.C. — Não. Para Frankfurt há uma comissão nomeada....
EXP. — Presidida por Margarida Veiga, com Teresa Siza para a fotografia...
F.C. — Não, presidida por António Mega Ferreira; a Margarida Veiga está à frente da área das exposições e Teresa Siza é comissária de uma das exposições. Aí o papel do IAC é apenas de colaboração e de assistência técnica, de suporte de produção. O caso de Madrid é diferente, mas é um projecto mais ligeiro. O IAC está a coordenar um projecto inter-institucional e interdepartamental dentro do próprio MC, articulando instituições portuguesas e as suas homólogas espanholas.
EXP. — Entretanto, foi recusada uma exposição comissariada pela crítica espanhola Aurora Garcia, de 12 artistas ibéricos, apesar da importância dos nomes envolvidos...
F.C. — A exposição não virá a Lisboa, infelizmente. A anterior directora do IPM tinha previsto que a exposição fosse apresentada na Gare Marítima de Alcântara, mas nas datas previstas a Gare provavelmente não estará ainda pronta e outras eventualidades não foram possíveis. A nossa posição é não inviabilizar a exposição, manter os compromissos de coprodução, dentro do que é razoável nestes casos, mas não temos suporte físico para a apresentar.
EXP. — O IAC vai ter uma galeria própria?
F.C. — Não. Cooperará com o CCB, com as autarquias, com todos os agentes, e no estrangeiro também, com os centros culturais...
EXP. — Terá intervenção directa na programação exterior?
F.C. — Não fazemos a programação exterior, a qual decorre das ligações diplomáticas e de compromissos históricos assumidos, como a Bienal de S. Paulo, Veneza e outras grandes manifestações artísticas. O que pretendemos é aproveitar essas oportunidades para negociar a tempo com os directores de museus e os organizadores envolvidos, por forma a torná-las não uma maçada que é politicamente obrigatório aceitar, mas antes uma acção que possa servir os artistas portugueses e os públicos que vão visitar essas exposições, e, sobretudo, que possa interessar aos próprios directores dessas instituições e manifestações, por forma a criar uma outra abertura às actividades que partem de Portugal, com outra seriedade e continuidade, numa posição de paridade, digamos.
EXP. — A estrutura Instituto, com o peso burocrático associado, será a mais adequada à intervenção na área da arte contemporânea?
F.C. —A fórmula que está prevista na lei orgânica, que neste momento está a fazer o «tour» dos ministérios para ser aprovada pelo Governo, é a fórmula mais leve e mais pioneira de criação de um instituto deste género. É um instituto público com uma grande liberdade de funcionamento, com uma grande leveza estrutural, que não precisa de um quadro pesado. As pessoas podem ser contratadas por projectos, o que dá uma liberdade enorme aos serviços e uma capacidade de actuar de forma mais móvel.
EXP. — Será a originalidade dessa fórmula que justifica o atraso da aprovação?
F.C. — Não... Passará eventualmente por aí, mas também pelos trâmites normais que implicam estas coisas.
EXP. — Como encara as acusações de uma certa confinação da acção das instituições, formalizada no acordo tripartido com a Gulbenkian e a Fundação Luso-Americana, como oficialização de um gosto artístico e de alguns artistas? Haveria uma uniformização de critérios, são sempre os mesmos artistas que circulam...
F.C. — Parece-me uma acusação injusta e precipitada. Se se vir o somatório da actividade do IAC, isso não é verdade. Acontece que as pessoas se lembram apenas dos casos que conhecem ou que querem apontar. Temos estado a apoiar artistas e exposições de todas as tendências e ligados a um leque de galerias bastante alargado. Por exemplo, apoiámos a presença na FIAC de José de Guimarães, que é um dos críticos, digamos, e apoiámos uma pequena individual de Domingos Rego em Paris...
EXP. — Este tema remete para o balanço nem sempre positivo do voluntarismo estatal. O caso mais flagrante é o da França, que criou um desiquilíbrio entre mercado público e privado e não tem êxito na afirmação internacional dos seus artistas nem na consolidação das respectivas carreiras. O dirigismo tende a alienar legitimidade crítica e de mercado. Na Inglaterra, onde não há ministério, a intervenção do Arts Council e do British Council não tem esse sentido estatizante...
F.C. — Mas apoia-se numa estrutura pesadíssima...
EXP. — Quanto aos riscos do voluntarismo...?
F.C. — Não me parece que haja riscos e, aliás, não estamos a seguir os modelos dos outros. Estamos a dar respostas a necessidades concretas que são óbvias e, num país como o nosso, não se podem desperdiçar meios. É fundamental saber onde é que se fazem as intervenções cirúrgicas para o meio se desenvolver. Não há lugar para fantasias, nem desperdícios ou esbanjamentos.
EXP. — O IAC tenderá, então, mais a fazer «intervenções cirúrgicas» do que a assumir o protagonismo na circulação e na imposição de valores?
F.C. — Absolutamente. O que queremos, em todos os pontos da nossa intervenção, é estimular o desenvolvimento nas várias áreas e nunca manter uma presença tutelar que estrangulasse e impusesse uma linha. É na diversidade que residirá o interesse da situação criativa da arte contemporânea.
EXP. — O Orçamento do IAC atinge os 200 mil contos de funcionamento e mais 200 mil de PIDDAC.
FC — Não chegará a tanto a verba para funcionamento... Mas não temos ainda orçamento aprovado. Se me perguntar se nos satisfaz, direi que não, não há nenhum orçamento que satisfaça. Queria-se sempre mais.
in "Carreiras paralelas" 15/6/2002
Fernando Calhau (1948-2002), artista plástico e ex-director do IAC
https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2007/11/fernando-calhau.html#more
No âmbito da administração cultural,
Calhau manteve uma intervenção oficial continuada ao longo de 25 anos,
através de variados contextos políticos (interrompida no mandato de
Santana Lopes), tendo chefiado a divisão de Artes Plásticas e o serviço
de Comunicação Visual da antiga Direcção-Geral de Acção Cultural da SEC,
onde trabalhou com João Vieira, Julião Sarmento, Cerveira Pinto,
Margarida Veiga e Delfim Sardo. Foi membro da comissão organizadora do
Museu de Arte Moderna do Porto e integrou as comissões de compras de
obras de arte para a SEC e para a Fundação de Serralves, passando a
assegurar também a orientação da colecção de arte contemporânea da Caixa
Geral de Depósitos entre 1992 e 96. Essa experiência culminaria na
actividade à frente do IAC, criado em 1997, depois de já ter presidido à
respectiva comissão instaladora.
sábado, 23 de novembro de 1991
Europália'91, "Portugal 1890-1990"
"Retrato de grupo"
Europália'91, "Portugal 1890-1990", comissário António Sena
exposições em
Charleroi, Musée de la Photographie: Joshua Benoliel / "Regards Étrangers" (Jorge Calado) / "Les Années de Transitions, 1927-1967" / Helena Almeida
Antwerpen, Provinciaal Museum voor Fotografie, "Regards Inquiets"Expresso Revista, 23 de Novembro de 1991
PODERA citar-se a propósito da representação da fotografia na Europália o que se costuma dizer da garrafa meia cheia e meia vazia. Ou seja: o que se levou à Bélgica sob o título «Portugal 1890-1990» foi uma sumária, incompleta e parcial retrospectiva construída sobre apenas alguns momentos significativos da história fotográfica portuguesa; e foi, também, a primeira tentativa global de revisão histórica, o mais amplo panorama desde sempre reunido sobre a história da fotografia em Portugal, e ainda uma belíssima exposição. Não se poderá pretender, contudo, que se tratou de um primeiro passo para fazer aquela história: para lá de algumas outras contribuições episódicas, uma parte central do projecto resulta directamente da acção desenvolvida ao longo da última década pelo comissário António Sena e a associação/galeria Ether, sendo afinal essa mesma actividade que foi agora projectada numa maior dimensão institucional.
Como a falta de memória é uma marca essencial da fotografia em Portugal, importa referir objectivamente os acontecimentos incluídos no programa Europália. Começando por precisar que a representação enviada à Bélgica, embora constituísse uma exposição única, acompanhada por um só catálogo bilingue (francês e holandês), se apresentou dividida entre os dois museus da fotografia do país, um em Charleroi, na região francófona, e outro em Antuérpia, região flamenga.
No primeiro caso, o museu ocupa uma antiga abadia, tendo a nave central, de pequenas dimensões, sido dividida em três espaços atribuídos a mostras individuais de Joshua Benoliel, Sena da Silva e Helena Almeida. Uma outra sala reuniu fotografias de António José Martins, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, Gérard Castelio Lopes e Jorge Guerra, num itinerário que se desenvolvia entre os anos 30 e os anos 60 através de uma nítida sequência de autores.
Paralelamente, em mais duas salas e um corredor, num percurso labiríntico em torno de um claustro e entrosado com espaços de exposição permanente, apresentaram-se cerca de 70 fotografias feitas em Portugal por fotógrafos estrangeiros, numa selecção de Jorge Calado que incluía exemplares pertencentes à colecção que ele próprio reuniu para a SEC (mostrados parcialmente em Janeiro na Galeria Almada Negreiros), mais alguns da Fundação de Serralves e outros expressamente adquiridos já este ano e para esta exposição graças a uma dotação da Caixa Geral de Depósitos.
Quanto a Antuérpia, o Museu apresentou em duas galerias de mostras temporárias uma selecção de fotógrafos portugueses actuais, incluindo, na primeira, de novo G. Castello Lopes e Paulo Nozolino, José Rodrigues, Rui Fonseca, José Francisco Azevedo e Daniel Blaufuks; e na segunda galeria sequências e «instalações» fotográficas de Mariano Piçarra, Augusto Alves da Silva, António Júlio Duarte, João António Motta, Francisco Rúbio e António Carvalho. Num outro piso, na zona de exposição permanente, apresentou-se Victor Palia e Costa Martins com 10 painéis referentes ao livro de 1959 Lisboa, Cidade Triste e Alegre (originais de paginação, colagens com anotações, folhas de contacto, etc.) e mais nove fotografias de recente reimpressão (Lisboa e Tejo e Tudo), ainda como extensão autónoma do panorama relativo aos anos 50.
O CATALOGO, agregando as obras separadas pelos dois lugares de exposição num único discurso, constitui de certo modo um objecto autónomo e no qual é mais compreensível a concepção global do projecto. Embora se trate de um volume de boa qualidade de impressão, ficou ainda longe de corresponder às ambições do comissário, uma vez que o número das reproduções (de página inteira) foi reduzido a menos de metade das provas expostas, algumas reproduções atraiçoaram o carácter de sequência ou instalação dos trabalhos, as legendas ficaram incompletas e os dados técnicos foram drasticamente abreviados por dificuldades editoriais belgas. Neste caso, o confronto com outras edições de António Sena é uma curiosa prova de como, às vezes, se sabe fazer muito melhor em Portugal do que no «estrangeiro».
Seguindo a sequência dos capítulos do catálogo encontramos primeiro Joshua Benoliel, foto-repórter particularmente activo entre 1903 e 1918, e que pela primeira vez foi objecto de um trabalho sério de selecção e reavaliação; depois o panorama relativo a «Os anos de transição» (1927-1967), onde se incluiu naturalmente Vitor Palia/Costa Martins; o conjunto dos «Estrangeiros olhares» (1930-1989); e, por fim, os «Olhares inquietos» (1980-1991), abrangendo estes tanto o trabalho de Helena Almeida como a mostra colectiva de Antuérpia. Todas as secções são precedidas por textos de António Sena, com excepção da fotografia estrangeira que é prefaciada pelo respectivo coordenador; no final, todos os autores expostos são objecto de exaustivas notas biográficas e bibliográficas. Parte significativa dos textos de A.Sena constituem extractos do livro "Uma História de Fotografia" (da colecção «Sínteses da Cultura Portuguesa», editada também por iniciativa da Europália na lN-CM).
As duas exposições e essas duas publicações representam, assim, um todo que provisoriamente constitui o mais ambicioso e completo trabalho de revisão histórica. Na sua totalidade estabelecem-se como uma data decisiva no entendimento da fotografia portuguesa, como primeiro esforço de sedimentação de um «corpus» estabelecido e estudado, ao qual terão de se referir todas as contribuições futuras. Importa agora saber se, depois do momento Europália, surgirão outros estímulos para prosseguir na mesma direcção, ou se, como é usual, a falta de iniciativa institucional (indispensável nesta matéria) abrirá um novo intervalo de esquecimento até uma próxima data. Porque pensar num museu da fotografia em Portugal é ainda ambição irrealista.
É NECESSÁRIo, entretanto, referir algumas condicionantes conhecidas que enquadraram e limitaram o programa expositivo. Em especial, deve saber-se que foram muito reduzidos os meios financeiros disponíveis para esta iniciativa (3710 contos para a produção de Benoliel e 1280 contos para o sector contemporâneo), para além de só muito tardiamente os mesmos terem sido confirmados. De facto, o projecto foi inicialmente pensado como levantamento dos «Grandes momentos da fotografia em Portugal», e devia iniciar-se com a apresentação de dois mestres do documento fotográfico oitocentista, J. A. da Cunha Moraes e Francisco Rocchini. Razões financeiras e o atraso no estabelecimento do contrato de produção fizeram desaparecer essa abordagem ao século XIX (tal como ameaçaram o panorama dos anos de «transição»). Graças à própria colecção do Museu de Charleroi, no entanto, foi exposta fora do programa oficial e sem referência no catálogo, uma série de 11 «vistas» do álbum de Rocchini sobre o Mosteiro da Batalha, em tiragens sobre papel albuminado de 1870-75. (Assinale-se, a propósito, que Cunha Moraes é actualmente mostrado em Coimbra, em especial através de espécimes cedidos por um coleccionador italiano.)
Quanto a Benoliel, as 34 fotografias expostas resultam de um trabalho de investigação desenvolvido por António Sena na Fototeca da Direcção Geral da Comunicação Social/Palácio Foz, não se tendo trabalhado com os negativos pertencentes aos arquivos da Câmara de Lisboa e outros. Da colecção daquela Fototeca foram inventariados e fichados informaticamente dez mil negativos, sendo realizados 500 diapositivos e 60 provas arquivais, numa colaboração que irá ter continuidade e será publicamente exposta. <não teve...>
Quanto ao sector dos «anos 30/60», ele não pôde ser incluído no protocolo referente à produção da exposição e só foi apresentado graças ao interesse manifestado pelos dois museus e à colaboração dos próprios autores e da galeria Ether, em geral retomando exposições que já apresentara. A não inclusão de Fernando Lemos é uma lacuna particularmente gravosa, mas a recuperação do seu trabalho fotográfico dos anos 50, por iniciativa da Gulbenkian, continua a aguardar-se.
Passando ao sector contemporâneo, importa ressalvar que a ausência de Jorge Molder (referido por A.S., no catálogo, a par de G. Castello Lopes, Helena Almeida, Nozolino e José Rodrigues, como um dos autores que «conheceram, desde 1980, os percursos mais densos e mais regulares») se deve à recusa do próprio fotógrafo - sabe-se que as dificuldades de relacionamento e colaboração entre fotógrafos e entre os agentes da divulgação da fotografia são, infelizmente, uma outra constante decisiva no panorama actual. Entretanto, a inclusão de Helena Almeida partiu de uma proposta de George Vercheval, director do Museu de Charleroi, e foi apoiada pela galeria Valentim de Carvalho.
A mostra intitulada «Olhares inquietos», para a qual o comissário contactou três dezenas de fotógrafos com vista à selecção das obras a incluir, constituiu em parte a actualização de uma colectiva itinerante realizada por António Sena para a SEC em 1989, sob o título «Nível de Olho». Registou-se agora a integração dos «consagrados», que aquela mostra intencionalmente deixara de fora, e repetiu-se, com novas peças, a participação de metade dos fotógrafos então expostos (M. Piçarra, D. Blaufuks, António Carvalho, F. Rúbio e J. António Motta).
Quanto aos «Estrangeiros Olhares», verifica-se a incorporação de 11 autores não incluídos no catálogo "1839-1989 - Um Ano Depois" (ed. SEC. 1990), onde figuravam já 18 fotógrafos com passagem por Portugal, ou por comunidades emigrantes: os novos fotógrafos são Thurston Hopkins (1950), Cartier Bresson (três fotografias de 1955), Peter Fink (duas, anos 50 e 60), Alma Lavenson (1962), Esther Bubley (1965), Godfrey Frankel (1978), Harry Callahan (três, 1982, cor), Larry Clark (1987), Tod Papageorge (duas, 1989, cor), Lynn Bianchi (1989), Dick Arentz (três, 1990). Não referida no catálogo, apesar de exposta em Charleroi, há ainda a apontar uma fantástica fotografia do Terreiro do Paço de 1942, de Cecil Beaton, reeditada a partir da colecção do Imperial War Museum, de Londres. Por outro lado, também cresceram as representações de Neal Slavin (graças à colecção de Serralves), Edouard Boubat (mais 3 fotos dos anos 50), Brett Weston (1960) e Koudelka (1976).
Particularmente significativo é o alargamento do horizonte temporal da colecção até ao presente, com o acolhimento de trabalhos como os de D. Arentz (provas impressas por contacto directo do negativo, com um aparelho de grande formato, sobre desertas paisagens urbanas) e L. Bianchi (recomposição de pormenores arquitectónicos, em estúdio, com modelos geométricos e nus, num trabalho que recorda o de F. Drtikol nos anos 20), e ainda como as fotos a cores de H. Callahan, sobre fachadas de casas tradicionais, ultrapassando-se assim os pólos dominantes dos olhares estrangeiros sobre o exotismo da Nazaré e de uma Lisboa arcaica e misteriosa, nos anos 50-60, ou mais tarde sobre a «revolução dos cravos».
Paralelamente, o Museu de Charleroi acolheu extra-programa um fotógrafo belga, Michel Waldmann, que visitou repetidas vezes Portugal e apresentou algumas calorosas visões jornalísticas, entre outras de efeito mais anedótico.
A recepção interessada das exposições na imprensa de lingua francesa, pelo menos, pode ser registada através de dois títulos significativos: «Photo: un certain regard sinon une forte présence», no «Le Soir», e «Cent ans d'images et de déclics - pour la toute première fois de son histoire, la photographie portugais s'exporte», no «L'Express/Le Vif». A fotografia portuguesa era desconhecida, mas existe - é essa a principal ideia transmitida.
NUMA ordem inversa da da cronologia, acrescentem-se ainda à descrição da iniciativa algumas rápidas anotações criticas sobre os materiais expostos. Na secção contemporânea destacam-se naturalmente os trabalhos de Nozolino e Castello Lopes, e também os de José Rodrigues, fotógrafo com actividade profissional na Holanda que importaria conhecer melhor, sendo todos eles mostrados em breves selecções retrospectivas. Se poderia ser oportuna a sua mais larga representação, não deixa de estabelecer-se uma distinção nítida entre consagrados e novos, uma vez que dos primeiros se expõe uma selecção de trabalhos diferenciados e isoladamente de grande interesse enquanto os restantes mostram um só projecto tematicamente estruturado. Entre estes, confirmam-se abertamente os itinerários recentes de Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte.
A. Alves da Silva apresenta uma sequência de seis imagens alternadas de denúncia de situações de degradação da paisagem algarvia, utilizando uma abordagem friamente distanciada e «neutral» em fotografias de enquadramento frontal sob uma luz constante que privilegia uma gama uniforme de cinzentos; A. Júlio Duarte mostra uma reportagem feita em Macau, com 10 fotos de pequeno formato (P&B), onde a criação de espaços fragmentados e ilusionísticos se prolonga em jogos subtis de máscaras, cartazes e palavras.
Noutro pólo de menor eficácia, no qual a procurada dimensão experimental não parece ultrapassar uma certa inconsequência, o amadorismo ou o exercício privado, encontram-se as contribuições de António Carvalho ("Folhas Mortas"), trabalho literal e certamente ingénuo de impressão fotográfica, colagem, montagem, coloração de folhas de árvores; de Francisco José Azevedo, «homenagem aos polípticos flamengos e à fotografia de cabeceira» (A.S.); de Daniel Blaufuks, «polaroids» anódinos em caixas com iluminação interior, numa possível referência à publicidade e ao vídeo que constitui mais uma deriva num trabalho que parece multiplicar-se em direcções pouco conciliáveis; e António Motta, com uma instalação dedicada aos «arquétipos técnicos e sensoriais da imagem fotográfica» (A.S.), transportando uma pouca partilhável ambição «poética» .
Para lá destas propostas que apenas parecem testemunhar a relação aberta do comissário com a ortodoxia fotográfica, resultam mais interessantes embora carentes de melhor confirmação o trabalho de Mariano Piçarra, as videografias de Francisco Rúbio e a presença do estreante Rui Fonseca com uma série de fotografias da orla marítima de uma discreta dimensão onírica.
É óbvio que se trata aqui de um panorama incompleto (talvez o domínio da foto-reportagem, onde se conhecem alguns trabalhos de segura qualidade, dificilmente pudesse ser apresentado sem um outro contexto integrador), ou de uma selecção afirmativa de interesses próprios do comissário. Mas no terreno das exposições colectivas é perigoso ambicionar consensos e equlíbrios: o que importa é multiplicar as iniciativas, assegurar a independência de comissários competentes e avaliar os efeitos da concorrência entre as suas sucessivas propostas.
A qualidade própria dos trabalhos que representam os anos 30/60 é já conhecida de exposições anteriores. Não se esperará de carreiras ensaiadas à margem de condições mínimas de profissionalização, e quase sempre rapidamente interrompidas, uma produção globalmente competitiva com a dos autores que constituem a história geral da fotografia. Mas todos os fotógrafos incluídos (e também o ausente Fernando Lemos) desenvolveram um trabalho de resistência frente aos valores dominantes no seu tempo e uma incorporação experimental da informação externa, expressos no seu visível interesse simultâneo pela descoberta do país e da fotografia, que se transmite nessas imagens só recentemente recuperadas. Uma outra revisão a fazer deveria agora permitir o confronto directo dessas fotografias, independentemente de uma nítida afirmação de autorias, com uma outra selecção mais ampla feita sobre o foto-jornalismo e a fotografia documental do tempo (a arquitectónica e etnográfica, em especial), bem como com o trabalho dos amadores e salonistas seus contemporâneos.
Mas de todo o projecto retrospectivo, é a obra de Benoliel que emerge com definítiva clareza, finalmente liberta das muitas utilizações oportunistas e amadoras de que tem sido presa fácil - e que num primeiro momento justificaram até a rejeição do fotógrafo pelo museu belga. A importância de alguns momentos historicamente decisivos que fixou para «O Século», veio somar-se o encontro com uma efectiva originalidade na prática do fotojornalismo, muitas vezes atenta a um lado mais intimo e inconvencional do testemunho informativo. Veio acrescentar-se a abordagem de um quotidiano da cidade feito de situações «insignificantes», despidas de qualquer retórica ou estratégia anedótica, bem como o interesse por géneros fotográficos menos associados à sua fama mais corrente, como os interiores e as «naturezas mortas». Por outro lado, a exposição ensaiou a indispensável revisão do trabalho de Benoliel em articulação com as condições práticas da divulgação das suas fotografias em «O Século» e na «ilustração Portuguesa», nomeadamente com atenção ao grafismo envolvente, paginação, legendas e textos anexos.
Efectiva redescoberta de Benoliel, como grande fotógrafo e como pioneiro da reportagem moderna dos anos 20, esta exposição mostrou mais uma vez que a autêntica recuperação patrimonial é indissociável do rigor metodológico e técnico, como o trabalho de A.Sena tem demonstrado em exposições e catálogos. A retrospectiva nacional e uma edição condigna impõem-se agora.