sábado, 21 de abril de 2001

2001, Ferenando Lanhas em Serralves

Sonhei que sabia tudo 

Expresso Cartaz de 21/4/2001, pp. 28-29

As perguntas, os deslumbramentos, os sonhos e os quadros de Fernando Lanhas

Na sala central do Museu de Serralves, as últimas pinturas de Lanhas, já de 1998-2000, coexistem com vitrinas de trilobites e meteoritos. Numa parede, lê-se: «Sonhei esta noite com trilobites vivas. (…) Em certo momento vi uma trilobite grande, de cor dourada, que estava mutilada nas pleuras. Peguei na trilobite sem qualquer receio, para a ajudar. Era uma trilobite muito sossegada e meiga. As crianças até lhe faziam festas.», S322A (sonho 322), 16-17.XII.92. Dois mapas assinalam os principais meteoros e meteoritos caídos em Portugal e a trajectória de um meteoro observado em 1984.


Uma representação da «Noção da grandeza do tempo» (98-2001) e um «Mapa das ocorrências verificadas no Universo desde a explosão inicial» (63-73) expõem-se na mesma galeria. Adiante encontramos o «Estudo do quadro geral do Universo», a «Carta das distâncias entre o sol e algumas estrelas», um herbário com variações morfológicas de folhas de hera ou um aspecto da Praia da Luz tal como seria observada pelo «homo sapiens», 18 000 anos a.C. Para além dos objectos naturais que recolheu ou coleccionou, tudo são obras de F. L.: sonhos, mapas, cronologias e esquemas gráficos ou tridimensionais sobre temas de astronomia, geologia e arqueologia, por vezes realizados para museus ou enciclopédias. A evolução do cosmos, da Terra, das espécies e do Homem, as representações do tempo e do espaço, as distâncias e grandezas cósmicas dominam os interesses de um homem que não se identifica como artista e se diz «talvez meio cientista e meio filósofo.»

A sua pintura dita abstracta, reduzida a formas mínimas e a poucas cores constantes, transporta um mesmo deslumbramento e uma idêntica meditação sobre as escalas do tempo e do espaço que F. L. investiga no campo científico. Alguns quadros nascem de composições gráficas; outros, mais densos e inexplicáveis, mais metafísicos que geométricos, perseguem o movimento das forças e formas naturais, as dimensões do cosmos. Por vezes deixam adivinhar representações simbólicas: sol, árvore, pássaro.

Os sonhos são outra pista para seguir a imaginação de Lanhas: «Sonhei que sabia tudo, que alcançara o conhecimento das coisas, da razão de ser», S42, de 1973. «Sonhei toda a noite com a representação gráfica da evolução do nosso Universo. (…)», S149, 1984. «Sonhei com manchas de cor azul, castanha e cinza», S13, 1963. «Sonhei com um estudo para uma pintura. A composição teria por base a letra N, em que se observa uma inclinação da letra para o lado direito (…)», S45, 1973.

Uma obra assim é idiossincrática e única. Esta pintura, quase invariável ao longo de cinco décadas, não se cataloga como um estilo na sucessão das classificações da história da arte, mas também não se explica pelas ocorrências de uma biografia muito rica de interesses e actividades. Arquitecto, Lanhas pintou cerca de um quadro por ano, irregularmente, foi inventor (o Fotalto, o Cosmoscópio), fez descobertas arqueológicas, projectou museus e exposições, dirigiu o Museu Etnográfico e Histórico do Porto, de 1973 até 93, interessado em arte popular e brinquedos. E a cronologia do catálogo inclui outros dados como, aos cinco anos, a observação do comportamento das formigas com uma lupa ou, em 83, o projecto da recepção ao Papa na Diocese do Porto.

Tal como sucedeu na retrospectiva de 1988, a abordagem de Serralves é (des)centrada na personagem Lanhas e segue-lhe os diversos rostos. Trazem-se à superfície mais alguns dos primeiros quadros, reúne-se toda a pintura recente (a década de 90 é a mais produtiva depois dos anos 60) e o catálogo traça um inédito itinerário biográfico e o inventário de exposições e bibliografia (com erros e lacunas, mas é um começo).

Esperar-se-ia um estudo psicanalítico dos sonhos, o registo das contribuições científicas, o perfil do museólogo e do etnólogo. Em vez disso, o catálogo concentra-se em exclusivo no pintor, reunindo ao estudo inicial de João Fernandes partes de anteriores ensaios de Fernando Guedes, João Pinharanda, Matos Chaves e Bernardo Pinto de Almeida que em geral ainda estão disponíveis. É um «coffee table book», coedição ASA, que prescinde da análise metódica, identificando a aparição pública dos quadros e a recepção crítica.

Fica por estudar a intervenção de Lanhas nas Exposições Independentes, que alteraram o panorama artístico no fim da 2ª Guerra, promovendo o debate sobre a abstracção a par das primeiras afirmações neo-realistas. Em 1945, Lanhas colabora com J. Pomar e Victor Palla na organização da página «Arte» do diário «A Tarde», do Porto (é o próprio que o refere nos catálogos de 49-50), onde os futuros surrealistas Cesariny, Vespeira e Oom também defendiam a «arte útil». Lanhas publica aí os estudos para Tambores (Velha com Lenço) e Velha Branca, que integram o conjunto de pinturas figurativas agora exposto.

São obras posteriores às primeiras abstracções e dão testemunho das ambições do pintor e do debate sobre as implicações sociais da arte, o qual está representado em O Artista Abstracto (mostrado apenas em fotografia). Segue-se Catarina (A Fealdade Magnífica), de 46; em 47 Lanhas visita Paris e retorna ao abstraccionismo.

A situação é tanto mais curiosa quanto Lanhas, em sucessivas declarações, atribuiu a Júlio Pomar o estímulo para expor as abstracções de 44, para além de a anterior retrospectiva ter dado a conhecer um texto datado de 48(?) que surge como uma das suas primeiras defesas («Meridionais, nunca fomos propensos à familiaridade com o mínimo. A pintura de Lanhas faz exclusão de tudo o que lhe aparece como superficial, chega para alguns a tocar as raias da secura. Não temos o hábito da concisão. (…) Lanhas obstina-se a usar o mínimo de meios, o mínimo dos mínimos. (…) escolhe três cinzentos, às vezes menos (?), e fica-se com eles para um ror de experiências»). Depois, Lanhas prosseguirá no desenho um discurso figurativo, com os retratos e alguns temas simbólicos (Menina e mar, D23 - 1999).

Um outro tópico a aprofundar diz respeito ao facto de a obra de Lanhas ter circulado, dos anos 40 aos 60, no âmbito das iniciativas do SNI, embora surgisse também em circuitos independentes, como a Galeria de Março, de J.-A. França. Esse itinerário (representações enviadas ao estrangeiro Bienal de São Paulo, Salão dos Novíssimos de 59, etc) serve de desmentido à alegação que abria o recente catálogo sobre o Porto nos anos 60/70 editado por Serralves, sobre os artistas que «ousaram romper com o academismo e o atraso da cultura oficial do regime político de então». A abstracção de Lanhas fazia parte dessa cultura oficial. Os velhos equívocos convenientes da cultura oposicionista já não servem para nada.

sábado, 24 de fevereiro de 2001

Balthus (1908-2001)

 A magia do real

Balthus (1908-2001), uma obra contra as rupturas do séc. XX

Expresso Cartaz, 24/2/2001, pág. 8


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AO LONGO DE UM SÉCULO que cultivou as rupturas, Balthus personificou a continuidade do ofício da pintura, aprendido com os mestres antigos. Nunca se associou a movimentos, nem a obra se pode definir numa fórmula. Durante décadas envolveu a biografia em mistério e fez da sua pintura realista, não fotográfica mas realizada diante dos modelos ou da paisagem, uma afirmação de estranheza, a revelação dos poderes do sonho ou da magia. Controverso e alvo de juízos contraditórios, marginal à sucessão finalista das tendências modernistas, combateu o academismo usando métodos conservadores e dirigindo a Academia Francesa em Roma.

Autor de uma obra lenta e escassa (terá pintado cerca de 300, foi primeiro um pintor de culto, mais admirado por artistas e escritores, até ser descoberto pelo grande público, em parte devido à escandalosa intensidade erótica das suas adolescentes expostas e expectantes. Às insinuações de pornografia, respondeu em anos recentes com argumentos insólitos: «A minha pintura é uma espécie de oração para celebrar a beleza divina». Camus escrevera no prefácio de uma exposição de 1949: «Aprendemos que a realidade mais quotidiana pode ter este ar insólito e longínquo, a doçura sonora, o mistério velado dos paraísos perdidos. Balthus pinta vítimas mas significativas. Uma faca, nunca o sangue. (…) Não é o crime que lhe interessa, mas a pureza.»

Faleceu no domingo passado quase com 93 anos, no seu «chalet» suíço do séc. XVIII, na companhia da segunda mulher, Setsuko,uma japonesa 35 anos mais nova que retratou em La Chambre Turque, de 1963-66. Foi um casamento ecuménico com o extremo-oriente e a cultura clássica chinesa, por parte de um pintor erudito e autodidacta. A formação adquiriu-a nos museus, como ainda era frequente nos anos 20-30, copiando Poussin no Louvre e depois em peregrinação pelos frescos de Giotto e Piero della Francesca.

 Durante muitos anos o pintor não se deixou fotografar, não deu entrevistas, nem revelava quando e onde nascera, negando que os elementos biográficos servissem para interpretar a sua obra. «Recuso-me a qualquer confidência e não gosto que se escreva sobre arte», foi a única referência pessoal autorizada num livro editado nos anos 40.

Balthus era um diminutivo usado em criança, e o mundo imaginário e perverso da infância é o território de eleição da sua pintura. Decidiu intitular-se Conde Balthasar Klossowski de Rola, atribuindo-se antepassados aristocratas com um brasão vindo de 1044. É mais certo ter nascido em Paris, em 29 de Fevereiro de 1908 (por isso, no último aniversário dizia ter só 23 anos), numa família de ascendência polaca, arruinada e particularmente bem integrada no meio artístico – pai crítico e historiador, mãe pintora. Aos 13 anos publicou um caderno de desenhos sobre um gato desaparecido, que foi prefaciado por Rainer Maria Rilke. Pierre Bonnard, Gide, Derain, Matisse frequentavam a família. Mais tarde, foi amigo de Picasso e de Giacometti, conselheiro de Malraux. A primeira exposição, em 1934, foi descoberta por Antonin Artaud e muito apreciada pelos surrealistas.

O seu último quadro foi exposto na National Gallery de Londres, em 2000, num último encontro com Poussin ("Encounters"). No Museu de Sintra existe um estranho retrato feminino, de 1935, da Colecção Berardo.

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sábado, 17 de fevereiro de 2001

2001, «Porto 60/70: Os Artistas e a Cidade»

 Ares dos tempos” 

 

As viragens dos anos 60 e 70 numa retrospectiva dupla do Porto 2001 

 

PORTO 60/70: OS ARTISTAS E A CIDADE (Museu de Serralves e Árvore, Porto. Até Abril) 

 Expresso 17/2/2001

 

Poderia ser só uma linha bairrista de programação da capital cultural, mas, através da revisão das décadas de 60 e 70 vividas a Norte, são algumas das raízes do actual cosmopolitismo da cidade que se recuperam e repensam. Outra mostra, que abriu a nova galeria municipal, faz o sumário dos grupos que agitaram a vida artística local ao longo de todo o século XX; lá para meados do ano, a reabertura do Museu Soares dos Reis porá em perspectiva a «Escola do Porto» no período anterior ao que é coberto por Serralves, fazendo da sua colecção permanente um outro pólo estruturante da cultura artística da cidade. Para além desta se rever e interrogar a si própria, serão contribuições para uma história geral pouco investigada e demasiado centrada no eixo que durante várias décadas ia do Palácio Foz à Sociedade Nacional de Belas Artes. 


«Porto 60/70: Os Artistas e a Cidade» inaugura um ciclo a que se deu o título «Artistas e Situações Afirmados no Porto da 2ª Metade do Século XX», que continuará com mostras dedicadas a Fernando Lanhas, Ângelo de Sousa e Albuquerque Mendes, em Serralves, e António Quadros, na Árvore. Divide-se já a presente mostra pelos dois lugares, o que tem um imediato conteúdo simbólico: da Árvore partiu a manifestação contra o imobilismo do Museu Soares dos Reis, no seio do qual Fernando Pernes veio a animar, entre 1976 e 80, o Centro de Arte Contemporânea que serviu de estímulo e embrião para o projecto de Serralves. Hoje, a aliança das duas entidades no programa de 2001 é também um gesto de compromisso entre diferentes sensibilidades e poderes da cidade, com o qual se partilham meios e silenciam tensões.


Entretanto, não poderia esperar-se que o contexto celebrativo sustentasse em exaustivo estudo crítico, histórico e sociológico o projecto retrospectivo sobre as rupturas e continuidades dos anos 60-70. Os dois comissários e autores de um estudo conjunto no catálogo, Fátima Lambert e João Fernandes (em substituição de Fernando Pernes, que assina outro texto memorialista), não iludem o carácter embrionário da iniciativa, considerando-a «um apelo a uma investigação mais aprofundada». Trata-se de lembrar e, em especial, de desenterrar materiais e documentos, mas é pena que o catálogo-álbum não inclua um instrumento tão indispensável como uma cronologia.


O núcleo mostrado na Árvore começa por ser a exposição do próprio lugar, fundado em 1963 na sequência da renovação da Escola de Belas-Artes (ESBAP), conduzida por Carlos Ramos no final da década de 50, e que então acolhia como docentes os alunos mais talentosos, numa dinâmica totalmente diversa da situação de rejeição da escola e de exílios que ocorria em Lisboa. Abertura da academia à cidade e ao mercado nascente, espaço de cruzamentos interdisciplinares, a Árvore foi também «um centro de oposição, quase às claras, ao regime», «um espaço de liberdade», para citar uma investigação de Gonçalo Pena que continua actual (publicada em «Anos 60, Anos de Ruptura», que António Rodrigues comissariou para a Lisboa'94). 


Cultivam-se, porém, velhos equívocos quando se apresenta a exposição como retrospectiva dos que «ousaram romper com o academismo e o atraso da cultura oficial do regime político de então» (segundo o prefácio institucional de V. Todoli e José Rodrigues). Nem é verdade que a cidade fosse um «verdadeiro deserto no que diz respeito à iniciativa institucional», nem deve esquecer-se que, nas artes plásticas e arquitectura, o binómio oposição-situação tinha aqui um entendimento próprio, avesso aos boicotes contra o SNI praticados em Lisboa. No Porto do início dos anos 60 já não seria possível traçar qualquer rígida demarcação entre cultura oficial e a «outra», o que pode ser visto como uma prova de pioneirismo. 

 

No microcontexto da cidade (que tanto se pode dizer «mais fervilhante que Lisboa» como caracterizar pelo «isolamento e o provincianismo desarmante», em «Anos 60»), Barata Feyo dirigia o Museu Soares dos Reis, de 1950 a 60, actualizando o seu acervo; mestres e alunos afirmavam-se nas Exposições Magnas e Extra-escolares da ESBAP, realizadas até 68; os discípulos mais brilhantes entravam para a docência e realizavam grandes mostras individuais na Escola (Quadros em 59; Ângelo e Jorge Pinheiro, 63; Armando Alves e Mouga, 64; Alberto Carneiro, 67); Resende e Lanhas representavam o país na Bienal de Veneza, em 1960, e os mais novos iam participando nas Bienais de Paris e São Paulo. Tem de referir-se já sem preconceitos a aparição dos artistas do Porto nas exposições dos Novíssimos e nos Salões Nacionais de Arte, de 1959 a 68, no SNI e no Soares dos Reis, sendo premiados, entre outros, Quadros (60 e 66, desenho), Nadir Afonso (1966, pintura), Areal e Carneiro (prémios nacionais de desenho e escultura em 1968). A seguir, será muito difícil quantificar o que nas rupturas de «circa 68» decorre do fim de Salazar, do crescimento do mercado de arte (até 73), da informação bruscamente actualizada em viagens de estudo e bolsas no estrangeiro ou tão só dos ares do tempo.


No núcleo da Árvore documentam-se diversas recolhas da cultura popular em extinção, numa séria contraposição ao populismo folclorista do SNI: discos de Michel Giacometti, obras de Rosa Ramalho e Franklin, o filme Auto de Floripes produzido pelo Cineclube do Porto e o inquérito à Arquitectura Popular - entretanto, com Álvaro Siza, começava a construir-se o que depois se designaria por «regionalismo crítico». É nesse contexto que é exposta a figuração imaginativa de António Quadros (personagem central da viragem da década, que em 63 parte para Moçambique), com destaque para a insólita presença de uma vitrina com cartões de boas festas gravados por Quadros e A. Alves. São testemunho de uma figuração muito presente no Porto em finais de 50 e em toda a primeira metade dos anos 60, que se encontrava já nas elegantes estilizações de Eduardo Luiz (fixado em Paris em 58) e que caracteriza as obras iniciais de Ângelo, J. Pinheiro e outros. É todo um campo que os dois núcleos da mostra não ilustram explicitamente e que, não se tratando de sobrevivência neo-realista, num ambiente bem informado do pioneiro abstraccionismo portuense, já era por vezes defendido como uma precoce «neofiguração». 


Também na Árvore se recorda o grupo Os Quatro Vintes (Ângelo, José Rodrigues, Pinheiro, A. Alves, 1968-72), associação bem mediatizada de bruscas rupturas pessoais resultantes da informação internacional, sintetizando referências que iam da abstracção «hard edge» (bordos nítidos) ao formalismo de Anthony Caro e da «New Generation» inglesa, da Pop à Op e aos «minimalismos». Os mesmos artistas ocupam o espaço mais amplo do núcleo de Serralves, acompanhados pela «eco-arte» conceptual de um Alberto Carneiro também regressado de Londres e já envolvidos por uma produção objectualista diversificada que dá conta da actualização escolar e experimentalista portuense.


Entretanto, no Museu, o facto de a visita se iniciar na Biblioteca adequa-se ao carácter histórico-documental da mostra: sucessivas vitrinas exibem programas do Cineclube (ilustrados por Ângelo, de Francesco, Manuel Pinto, etc.), catálogos das galerias Divulgação (1958-67), Alvarez (1954), Zen (1964), memórias do Teatro Experimental do Porto, revistas literárias, etc.


No itinerário foi reservada uma área de passagem a nomes vindos de anteriores gerações, como Lanhas, Nadir e Augusto Gomes, a que se segue Júlio Resende, entrando já noutro espaço mais sombrio e massificado, que inclui quer a pintura quer testemunhos de intervenções dos anos 70 (grupos, acções e manifestos). Aí confluem exemplos de itinerários autorais mais estruturados e também restos fugazes de inquietações e experiências que reagem ao 25 de Abril, se agregam na «Alternativa Zero» de Ernesto de Sousa ou se movimentam em torno de Jaime Isidoro, pintor eclético, «marchand» e animador de vanguardismos, verdadeiro Mr. Hyde e Dr. Jeckyl (in «Anos 60») que promove «happenings» na Casa da Carruagem de Valadares (desde 68?), os Encontros Internacionais de Arte (74-77) e depois as Bienais de Cerveira, pertencendo à sua colecção muitas das obras reunidas para a presente mostra. 


Ao chegar ao fim da década, esses anos de viragens decisivas na sociedade portuguesa e internacional, de «agitação» e utopias, desembocam não numa abertura mas no encerrar de um ciclo. A nova década vai desenhar outras rupturas.


Fotos : Escultura recortada de José Rodrigues (1968-70?), um dos «Quatro Vintes». E «Torre dos Clérigos», pintura colectiva do Grupo Puzzle, de 1976

 


sábado, 20 de janeiro de 2001

Porto 2001, O Museu Boijmans “In the rough”!?

 

A propósito do Museu Boijmans de Roterdão, e de Rembrandt, vindos ao Porto em 2001, e a Serralves, numa desperdiçada ou tosca oportunidade.

 EXPRESSO ACTUAL de 20/1/2001 

"O bazar pós-moderno"

Paisagens e outras imagens da Natureza vindas do Museu Boijmans de Roterdão para Serralves

«IN THE ROUGH»
 Imagens da Natureza Através dos Tempos na Colecção do Museu Boijmans Van Beuningen (Roterdão) Museu de Serralves  

 Quando o Museu de Arte Antiga se apresentou na galeria federal de Bona, em 1999, escolheu, de entre as obras que podiam viajar, o património mais significativo, do duplo ponto de vista do interesse internacional e da representação da arte portuguesa. Quando o Museu Gulbenkian levou uma selecção do seu acervo ao Metropolitan de Nova Iorque, fez deslocar peças de primeira escolha, sob um título, «Only the Best», que já correspondera à divisa do fundador. O melhor não é nunca um dado invariável, mas é uma regra exigente quando os museus viajam.

É outro o caso da colaboração entre Serralves e o Museu Boijmans Van Beuningen. Não por se ter adoptado um tema específico para a embaixada vinda de Roterdão (a paisagem e outras «imagens da natureza através dos tempos»), mas por se trocar a escolha das melhores obras por uma representação onde cabem obras maiores e menores, peças de excepção e curiosidades, a excelência e o «kitsch». O título em inglês, «In the Rough», traduz-se por «em bruto» ou «em tosco» e deve ser interpretado à letra. Note-se, porém, que o universo das imagens da natureza vindas da colecção de Roterdão se restringe à produção dos sécs. XVII-XX, no Ocidente, na área das artes eruditas e sumptuárias.

O que se expõe, sob a dupla responsabilidade de Piet de Jonge e de Vicente Todoli, é um bazar pós-moderno. Um enorme «puzzle» onde nenhuma informação orienta ou esclarece o visitante, sem qualquer ordenação ou categorização inteligível dos objectos.



 

Tornaram-se frequentes nos últimos anos as exposições e montagens de museus (por exemplo, as Tates de Londres) onde se sucedem, à margem da cronologia e em torno de um determinado tópico, peças de diversos períodos, técnicas e estilos e também de diferentes padrões de qualidade, às vezes incluindo o académico, o «kitsch» e o trivial para ilustrar a produção corrente, a decadência dos estilos ou a diversidade social dos gostos.

Pode tratar-se de um modo experimental de reexaminar cronologias e classificações tradicionais, explorando direcções esmagadas pelas tendências dominantes ou valorizando a observação desprevenida das obras face às explicações aprendidas. Mas ao pôr em questão o evolucionismo esquemático da história das formas que se associou à afirmação da arte moderna – da representação naturalista à abstracção e desta ao fim da pintura… -, algumas montagens deitam fora o discurso da história e todas as outras condições de inteligibilidade que se esperam de um museu. O que pode proporcionar leituras renovadoras, quando estão em causa breves períodos históricos e pistas temáticas consistentes, toma o carácter de um jogo aleatório, indecifrável e arrogante, ou a marca de uma moda.

Em geral, esse tipo de montagens é apoiado pela presença (demasiado insistente) de textos de parede e longas tabelas das obras, e também por roteiros e audioguias que vão balizando e «explicando» as obras essenciais. Em Serralves, a total ausência de informações (que se prolonga no catálogo) deixa o espectador à deriva entre obras de diferentes séculos, de distintos ramos da criação (pintura e desenho, artes decorativas e «objectos de arte», fotografia contemporânea), de diferentes tradições culturais, de artistas por vezes totalmente desconhecidos (ou de fases incaracterísticas de outros: as flores de Mondrian, a paisagem de Gauguin).

 Obras que pontuam alguns capítulos determinantes da arte ocidental – o paisagismo holandês da idade do ouro e a afirmação da paisagem como o género determinante da evolução da pintura no séc. XIX (Barbizon, impressionistas, etc.) – perdem-se numa sequência indistinta, «em bruto», talvez ao acaso. E são igualmente dispersos e ilegíveis outros episódios mais especificamente holandesa, com valores locais qualificados e algumas marcas universais indeléveis, que aqui não se mostram nem adivinham.

O silêncio informativo que se soma à sequenciação caótica e à abundância do «kitsch» talvez proporcione ao visitante erudito o prazer de construir a sua própria decifração e o ordenamento mental da exposição. Também eventuais visitas guiadas poderão proporcionar exercícios pedagógicos. Mas não é essa a situação do espectador «médio», para quem a ausência de sinalizações cronológicas e estilísticas favorece uma passagem acelerada diante de obras que ele não pode referenciar nem interpretar.

Esse trânsito indiferente que o museu pós-moderno propõe ao visitante tem por modelo a insignificância de alguma arte actual e por projecto a sua generalização. Bastará ler, noutro local, o texto de parede que acompanha as paisagens fotográficas anónimas, «encontradas» por Júlia Ventura, para saber que alguma arte contemporânea, aquela que Serralves patrocina, «propositadamente se mostra inexpressiva e no limiar da trivialidade».

 É, de facto, de um efeito geral de trivialização que se trata, de uma indiferenciação de objectos, autorias, expressões, histórias, categorias e estatutos. Talvez em nome de uma crítica da ideia aristocrática de excelência, da rejeição de uma hierarquização entre obras ou artistas, com que se reproduziriam mecanismos de distinção social. Através da montagem em estilo bazar, o objectivo seria a desconstrução do museu tradicional e burguês – selectivo, cronológico, hierarquizado, e, por isso mesmo, autoritário e elitista -, mas é ao gabinete de curiosidades que se regressa ou à galeria do antiquário, ao gosto de uma restrita elite de agentes do mundo da arte e com total ausência de sentido para a generalidade do público.

Não é por acaso que há aqui uma presença tão constante do «kitsch», ostensivo nos «objectos de arte» que acompanham a pintura (recusando a distinção de significados e de importância entre consumos ostentatórios) e não menos evidente noutras produções recentes, fotográficas por exemplo. É de uma perspectiva antimoderna do pós-modernismo que se trata, como se torna evidente pelo apagamento das questões associadas às raízes ou rupturas da modernidade.

Veja-se, à entrada, um quadro de J. H. Weissenbruch que parece oferecer-nos a Holanda de bilhete postal numa pintura de convencional realismo, com o moinho à beira do canal e vacas que pastam ou ruminam. Uma observação mais informada situará o artista entre a Escola de Haia, que pretendeu, a partir de 1860, num estilo próximo do «ar livre» de Barbizon, fazer renascer a tradição da paisagem holandesa do séc. XVII, explorando a poética das variações da luz em diferentes horas e climas, nas particulares condições paisagísticas da Holanda. Como aí se reconhecerá pela luminosidade do largo céu carregado de chuva, sobre a extensão plana feita das «nuances» de muitos verdes. Tanto Van Gogh como Mondrian foram muito sensíveis a este tipo de pintura que se afirmou como tendência nacional, mas que na viragem do século começou a ser contrariada pelos simbolistas e logo depois pelos «luministas» (procurem-se as obras de Leo Gestel e Slujters). O visitante passa depois por uma porta giratória de Dan Graham, que seria só um incómodo adereço se não assegurasse um posto de trabalho ao vigilante que vai alertando para um obstáculo pouco visível (ah, o imenso mercado de emprego que a cultura abre…). Que encontra ele na primeira sala? Louças, pratas, mais candelabros e vasos pirosos numa primeira barreira diante de quadros: paisagens de heteróclita procedência e datação onde predominam cenários idealizados, céus dramáticos, iluminações fantasistas, concluindo com as cores artificiais do «kitsch» contemporâneo de Roger Brown e Salvo

 É nas salas mais periféricas e mais íntimas que se encontrarão as principais peças, por vezes integradas em sequências discretamente significantes. Os desenhos de observação de Rembrandt; as telas de Claude Lorrain e Jacob van Ruisdael, referências essenciais da pintura de paisagem, clássica e idealizada no primeiro, e modelo holandês de fidelidade à natureza o segundo. Um estudo rápido de Delacroix, um seco esboço romano de Corot, o realismo prosaico de Courbet, a densidade expressiva de Permeke. As três baías de Boudin, Daubigny e Monet, já estereótipos. Os empastamentos luminosos de Diaz e Monticelli, de destino mundano. Franz Marc, Kandinsky e De Kooning, a abstracção de origem paisagística. Morandi e a visão despojada.

Consultando o site do museu (www.boijmans.rotterdam.nl), encontram-se obras de referência e textos breves que sustentariam um outro percurso menos «tosco» sobre a paisagem. Identificando o seu aparecimento renascentista como cenário de temas religiosos, com a Paisagem com Fuga do Egipto, atribuída ao círculo de Patinir, e a sua importância em posteriores composições com figuras, com o Rapaz com Cães numa Paisagem, do velho Ticiano («in a roughly defined landscape»), ou o quadro de Munch, Duas Raparigas e Macieira Florida, de 1905.

Duas outras peças maiores da colecção de Roterdão, certamente transportáveis, teriam estabelecido pistas decisivas para se entender as rupturas do séc. XX com a representação naturalista, e dariam uma densidade mais holandesa à exposição e a essa mesma viragem de século. Com a Natureza-morta com Batatas, de 1885, de Van Gogh, a intensidade emotiva, expressão pessoal e de revolta colectiva, inscrevia-se explicitamente na maneira de descrever (interpretar) a realidade, também natural, de uma refeição de pobre. De Mondrian, o museu possui uma magnífica Composição com Amarelo e Azul, de 1929, uma tela abstracta de uma economia e tensão formal que se poderia entender como consequência e fim da pintura de paisagem. Um fim provisório.

(Museu de Serralves. Até 1 de Abril)

#

E não sei se isto chegou a sair na mesma edição:

Porque é que, tantas vezes, os textos «culturais» não se entendem? Porque é que, demasiadas vezes, o que se escreve sobre arte não significa nada?
Sobre «In the Rough» (em tosco?) existe um folheto de quatro páginas a que se chama roteiro. Deveria guiar o itinerário por várias salas e cerca de 200 «imagens da natureza através dos tempos», sem qualquer sequência ou organização inteligíveis. Mas a única página de texto é incompreensível.

Como exemplo, transcreve-se um parágrafo, na íntegra:
«Propõe-se um jogo reflexivo: olhar e compreender realidades. Pela direcção do olhar do artista é-nos devolvido o nosso próprio olhar. Assim, demarca-se a necessidade de libertação dos limites da obra como objecto, alargando a noção de paisagem através de uma interpenetração da obra e da realidade. O que, desde logo, suscita uma exposição aberta e flexível ao dinamismo do olhar.»

Se o nosso olhar nos é devolvido pela direcção do olhar do artista, o que vemos? Chama-se paisagem ao espaço ou panorama visto por um observador e também à imagem (a obra) que eventualmente o representa ou fixa – são duas distintas realidades. O que poderão ser a «libertação dos limites da obra como objecto» e a «interpenetração da obra e da realidade»? A passagem anterior não ajuda: «As visões imaginativas de muitas paisagens diferentes executadas por artistas ao longo dos últimos séculos (…) proporcionam um ponto de partida para “novas maneiras de ver” no início do século XXI. Justapor conscientemente diferentes períodos, técnicas, estilos é um modo de abordar a complexidade da obra de arte em relação à mudança do papel de quem a vê.» Os outros parágrafos são idênticos, mas o espaço para transcrições escasseia.
Porque é que a exposição que inaugura a capital cultural não precisa de se fazer compreender? O que é que, no Museu, se entende por cultura?

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sábado, 6 de janeiro de 2001

Brasil, 2001, CAM, "Mostra do Redescobrimento


Excepções à regra 


SÉCULO XX: ARTE DO BRASIL

 

Expresso, 06-01-2001




foto: Ruben Valentim (1922-91), «Pintura nº 11 - Roma 1965» 


 

AO ASSOCIAREM-SE no CAM os dois núcleos de arte moderna e contemporânea da Mostra do Redescobrimento que se apresentou em São Paulo, com um imenso êxito de público e alguma polémica, foi o segundo segmento cronológico que ficou mais diminuído quanto à possibilidade de tornar inteligível um panorama coerente e representativo, capaz de significar a extensão continental do Brasil e a pluralidade actual dos seus focos criativos, bem como a diversidade das suas dinâmicas artísticas, entre absorção ou dependência dos modelos internacionais e manifestações identificáveis com originalidade própria. 


Têm sido frequentes, já antes da quadra comemorativa, as retrospectivas de figuras que intervieram ou intervêm nas décadas recentes da arte brasileira, em parte por efeito de reavaliações críticas ou à mercê das operações de reconstituição de obras, mas têm faltado as abordagens de conjunto que localizem esses e outros artistas nos seus contextos próprios. É só marginalmente que a actual mostra cumpre essa necessidade, certamente por insuficiências de programação por parte do seu comissário, o brasileiro Nelson Aguilar, como se comprova pelo pequeno esforço argumentativo que o catálogo recolhe. 


A par de algum gigantismo - decerto inferior ao previsto, dada a escassa ocupação das três naves esvaziadas para a ocasião - impõe-se a sensação vaga de que a escolha dos artistas foi em grande medida aleatória, para além de ser insuficiente a representação de muitos deles, limitada a obras únicas. Sabe-se também que diversas obras expostas em São Paulo ou requeridas para Lisboa (uma vez que se pretendeu reajustar o conteúdo da mostra) rumaram a projectos de maior coerência e a países mais atraentes. Para lá de Valência, que apresenta «Brasil 1920-1950: da Antropofagia a Brasília», já inaugurou em Madrid o panorama «Visões do Sul» e vai abrir na Tate Modern «Century City: Art and Culture in the Modern Metropolis», que dedica um dos seus capítulos cronológicos, entre 1955-1969, ao Rio de Janeiro (em coincidência temporal com outro sobre Lagos, capital da Nigéria…), associando numa só explosão criativa neo-concretismo, Bossa Nova, Cinema Novo e nova arquitectura (de 1 de Fevereiro a 29 de Abril). 


No CAM, a história da primeira metade do séc. XX expõe-se com alguma extensão no piso inferior («Cartaz» de 11 de Novembro), fechando com a notável representação de Alfredo Volpi. Foi uma personagem irredutível a qualquer fórmula ou escola, um pintor de origem operária em cuja obra se fundiram raízes populares e aquisições eruditas, com uma energia criativa que atravessou pelo menos cinco décadas. A partir dos anos 50, o despojamento das referências figurativas (fachadas das casas) orienta o interesse prioritário pela cor para uma formulação tendencialmente abstracta, em diálogo com o ambiente concretista instalado a partir da primeira Bienal de São Paulo, em 1951, sem diminuir o curso original da sua pintura. 


O itinerário expositivo torna-se depois muito pouco coerente, partilhado entre as duas outras naves sem um fio condutor visível, ao sabor das difíceis condições espaciais. Entretanto, dissolve-se a divisão da mostra de São Paulo entre moderno e contemporâneo, fixada no início dos anos 60 e justificada pela rejeição dos suportes tradicionais por artistas que «percebem que a tela e a massa escultural representam uma limitação às aspirações de liberdade que a arte pretende veicular». A fragilidade da tese não resistiu à viagem. 


Ao visitante que regressa à nave central do CAM (vindo da primeira metade do século) oferece-se, à esquerda, uma síntese vasta e massificada da abstracção geométrica dos anos 50, com destaque último para as esculturas de Sérgio Camargo, enquanto à direita se agregam vários exemplos desconexos das conjunturas dos anos 60, em que se associaram aceleradamente novas figurações e importações Pop, contestações políticas e experiências vanguardistas (ambientes, «happenings», etc). 


Entretanto, é no piso superior que se sinaliza uma outra situação que também marcou os anos 50-60, a abstracção informal ou gestual concorrente com a arte concreta, mas dando-se logo passagem à efervescência pictural dos anos 80, prolongada por algumas aparições esparsas de artistas já surgidos na última década. Naquele breve conjunto inicial situam-se alguns dos artistas que se destacam da sucessão das conjunturas. 


É o caso de Ruben Valentim, que em São Paulo figurou no núcleo dedicado à arte afro-brasileira e aqui se aproximou da abstracção informal, embora as suas geometrias ritualizadas, em que se adivinharam marcas de um mundo mítico-religioso ancestral, sejam habitualmente associadas aos artistas construtivos do Rio. E também o de Tomie Ohtake, única representante dos pintores nipo-brasileiros de São Paulo, com duas telas de grande tensão, elegância e economia formal. Ou de Iberé Camargo, presente com quatro telas vibrantes de matéria viva, onde se inscreve uma impetuosidade corporal que sobrevive aos códigos gestuais da época. (Centro de Arte Moderna. Até dia 20) Alexandre Pomar 


sábado, 6 de maio de 2000

Brasil, 2000, Chiado, OLHARES MODERNISTAS

Identificação de um país

expresso 6 de Maio 2000

OLHARES MODERNISTAS

Museu do Chiado (Até 28 Junho)


Muitas e variadas histórias se abrigam sob a designação de modernismo, em correspondência, pelo menos, com a diversidade das situações locais em que, nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do séc. XX, se confrontam tradições ou academismos regionalmente estabelecidos com dinâmicas de renovação que se reivindicam da mudança dos tempos. Se, mesmo nas grandes metrópoles, a modernidade não pode sintetizar-se num aspiração unitária e linear, o caso brasileiro é particularmente significativo da pluralidade dos modernismos. 

O que a vontade de mudança transportava de informação internacional (variável consoante a sua proveniência, que está longe de ser apenas parisiense, e com diferentes conteúdos, antes e depois da primeira guerra mundial) não vinha significar um simples e mecânico acertar do passo com «a vanguarda» nem é redutível à interpretação formalista que a voga dos «estudos culturais» atribui ao modernismo, vendo-o como um processo centralista, elitista e autoritário - na caricatura pós-modernista de um Thomas McEvilley diz-se mesmo que «o modernismo incluia no seu âmago um mito da história que visava justificar o colonialismo». 


No Brasil, o modernismo é ao mesmo tempo internacionalista e nacionalista (ou melhor, nativista), e o interesse pelos «primitivos» (os índios e negros bem reais no país) não se confunde com o deslumbramento pelo exotismo descoberto nos ídolos tribais. A vontade de futuro (que pode ser amalgamada com a voga do futurismo) fazia acompanhar a renovação formal com a redescoberta de um outro passado oculto pela colonização, e a abertura cultural ao exterior associava-se ao inquérito sobre a identidade própria, tomando por mito fundador a deglutição pelos índios do bispo português Sardinha, naufragado nas costas brasileiras em 1554. Devorar o outro vindo de fora com a sabedoria autóctone do ritual antropofágico seria a palavra de ordem do manifesto de Oswaldo de Andrade, em 1928, depois com reactivação tropicalista em finais da década de 60. 

Modernismo tardio, o brasileiro encontra-se já com o clima cultural dominante na Europa dos anos 20, que é mais o do chamado regresso à ordem do que das primeiras vanguardas, aproximando-se assim de outros contemporâneos realismos nacionais e vivenciando em simultâneo orientações desencontradas, expressionismos vários, o cubismo disciplinado da «art deco» e surrealismo, por exemplo.


Organizada em quatro secções temáticas e genericamente cronológicas que cobrem um itinerário que vai de 1915 ao início dos anos 40 -  «Princípios», «Explosão Tropical», «Urbanidades» e «Reivenção da História» -, a mostra é um panorama sintético e didáctico, que insere as criações visuais no contexto literário e cultural do tempo, acompanhando a interdisciplinaridade própria das manifestações modernistas brasileiras (que na famosa Semana de Arte Moderna de 1922, se prolongou com a música de Villa-Lôbos). 

No primeiro espaço destaca-se o papel pioneiro de Anita Malfati, com trânsito anterior pela Alemanha e Estados Unidos, cuja exposição de 1917 gerou os primeiros escândalos - leia-se a crítica de Monteiro Lobato, onde a posição anti-expressionista, contra os que «vêem anormalmente a natureza», se funda nas referências modernas de Lenbach, Zorn, Rodin e Zuloaga. 

As obras do escultor Victor Brecheret, com formação em Roma, e de Vicente Rego Monteiro dão conta da transição prudente e da informação sincrética que ainda preside à Semana de 1922, sem que se chegue a revelar a originalidade posterior da obra do segundo.

É em «Explosão Tropical» que se observa a viragem para a descoberta da realidade brasileira, estimulada pela visita de Blaise Cendrars e pelos estudos parisienses de Tarsila do Amaral, em que predomina a lição de Léger. Em O Lago, a paisagem molda-se com um colorido vibrante e uma ingenuidade mágica, enquanto os estudos desenhados para A Negra e Abaporu (que ilustrou o «Manifesto Antropófago») recentram o nacionalismo modernista brasileiro sobre as culturas étnicas. Com Lasar Segall, artista de origem lituana, com fortes relações com o expressionismo alemão, idênticos interesses inscrevem-se na tela O Bananal e projectos decorativos sobre a fauna local. 

São os mesmos dois artistas que logo a seguir testemunham que não é só uma visão edílica e primitivista que marca o modernismo brasileiro, mas também a transformação do país sob a dinâmica do desenvolvimento económico e urbano. As excelentes gravuras de Lasar Segall tomam por tema os novos arranha-céus de São Paulo e a aglomeração dos deserdados nas favelas que envolvem as cidades – significativamente, em Favela, de 1930, o espaço ogival do morro ocupado pelos negros é idêntico ao do superlotado convés do seu famoso Navio de Emigrantes (1939-41). As Meninas de Fábrica, na xilogravura de Livio Abramo que serve de aproximação à tradição brasileira da gravura de intervenção social, e a Rua das Mulheres, de Emiliano Di Cavalcanti, são duas observações simétricas das transformações da sociedade moderna.

A secção final é dominada pela presença de Portinari, já precedida pela exibição do Chorinho (1942) da colecção do próprio Museu do Chiado. Uma sequência de desenhos ilustra o tema da antropofagia, enquanto um estudo Brasil, de 1953-61, documenta a ambição de sintetizar a história nacional.


Aracy Amaral

textos sobre relações entre Portugal e Brasil, nomeadamente com um importante inventário de contactos e trânsitos estabelecido por José-Augusto França (que no entanto não refere a longa presença do brasileiro Waldemar da Costa)



Nota:

A exposição ocupa o espaço do Museu habitualmente atribuído à sua colecção de obras do século XX português, já antes deslocada para acolher uma anterior mostra. Não se deverá acolher como um facto banal essa suspensão da função essencial que se espera de um museu, mas antes como a escandalosa demonstração de que urge proceder à ampliação das suas instalações. Já autorizada pela resolução de fazer sair a polícia do edifício, já com previstas comparticipações comunitárias, só os impasses políticos explicam o actual silêncio em torno da questão.



ALEXANDRE POMAR

sexta-feira, 7 de abril de 2000

2000, René Bertholo, Serralves

René Bertholo Serralves 2000

FIGURA.FICÇÃO
Catálogo da retrospectiva de René Bertholo no Museu de Serralves
7 de Abril - 28 de Maio de 2000

Rene (Inclui textos de John Ashbery, André Balthazar, João Fernandes, Sebastião Fonseca, José-Augusto França, Jean-Jacques Lavêque e Alexandre Pomar. As entrevistas foram conduzidas por Xavier Douroux & Frank Gautherot, Pierre Restany e Jean-Luc Verley.)

1. René Bertholo é um actores, é mesmo um dos protagonistas, que intervêm na conjuntura em que, no início dos anos 60, em Paris, tal como em outras capitais, se procede ao ensaio das condições de possibilidade de uma figuração entendida como nova, isto é, defendida como de ruptura ou de vanguarda face ao predomínio das expressões abstraccionistas.
Esse é um ciclo complexo em que às manifestações de um corte geracional e cultural se associavam linhas mais ou menos subterrâneas de continuidade com precedentes práticas realistas e, especialmente, com orientações críticas dos valores instituídos que se interessaram por várias formas de figuração primitivista (infantil, popular, grafitista, etc), desde Dubuffet e Chaissac até às manifestações do grupo Cobra, de Appel, Jorn, Constant e outros, sobre heranças do surrealismo revolucionário belga e com sequência imaginista e situacionista. Aos «novos realismos» que se aproximavam da interpretação de uma nova «natureza industrial, mecânica, publicitária» (1) por via da apropriação directa dos seus produtos e detritos (assemblage, acumulação), somam-se então as práticas picturais que buscam a sua renovação no reportório das imagens populares da cultura urbana, sob as designações Pop e neofiguração, a qual, em versão mais parisiense, se nomeava figuração narrativa e, a seguir, figuração crítica. A respectiva consagração enquanto atitude vanguardista seria tão rápida como efémera, logo desvalorizada como prática regressiva (2) e substituída pela aceleração da lógica das rupturas, ao ritmo de uma crescente dissociação dos circuitos de legitimação, a que o seu próprio êxito público dera lugar. Diferentes atitudes radicais, que recuperavam o vector da autonomia formalista ou escolhiam o primado da atitude, poriam então em causa, outra vez, a continuidade da pintura como medium ainda potencialmente inovador e relegavam para a área do «mainstream», ou para a travessia do deserto, quase todos os artistas que estiveram associados àquele processo.

A década é tumultuosa. Nela se encerra a guerra da Argélia e abre a do Vietname (e também as guerras portuguesas), transportadas para o interior das metrópoles, num processo em que os sucessos económicos do pós-guerra são confrontados com a estagnação das expectativas políticas geradas pela vitória aliada, identificando-se a contestação ideológica com a miragem da emergência de alternativas nas periferias pré-capitalistas. (A conjuntura política, que aqui se terá de supor conhecida, voltará a ser referida a propósito da obra de R.B., na medida em que ele próprio se vai confrontar claramente com as marcas mais efémeras daquela.) É também uma década que assiste à substituição das consagrações parisienses pelo dinamismo de um novo centro, Nova Iorque, e também à afirmação de outras capitais, aonde chegam mais cedo os ecos norte-americanos ou que têm mais experimentada a sua condição periférica. A França nunca mais saberia, até hoje, defender os seus artistas e os estrangeiros que acolhia, tornando-se doentiamente dependente dos gestos de reconhecimento vindos do exterior.

Sendo um dos protagonistas de uma dinâmica colectiva de renovação, e é raríssimo que na arte portuguesa se verifique, em vez da dependência ou da sintonia, essa participação plena no centro da acção internacional, René Bertholo é – em grande medida por isso mesmo (o confronto surdo entre estrangeirados e «resistentes» que no interior se acomodaram continua a atravessar o panorama nacional) – o último dos artistas portugueses afirmados nos anos 60 a ser objecto de um olhar retrospectivo. Valerá a pena enfrentar o atraso da revisão da sua obra, que muitas vezes foi sendo apontada como indispensável, mas que tem ainda em Serralves uma abordagem só antológica.

Ter-se-ia de falar da dispersão real de uma obra que percorre então um largo circuito internacional de exibição, da Itália aos países nórdicos e também aos Estados Unidos – neste caso, por sinal, integrando um importante panorama oficial francês, «Painting in France, 1900-1967», itinerante por Washington, Nova Iorque, Boston, Chicago e São Francisco, cuja reduzida projecção funcionou como decisivo revelador da menorização do centro parisiense. Uma obra dispersa é mais difícil de reunir, e conhece-se a regra da facilidade e a pobreza de meios que têm curso institucional entre nós; não há nada como as obras de gaveta e atelier para favorecer as «descobertas» de que se alimentam os comissários, com a vantagem adicional de não sujarem as mãos procurando num mercado privado que, para mais, não precisou dos seus préstimos.

Ter-se-ia de falar também numa obra quantitativamente escassa, ou lenta, que nunca se estabeleceu como cadeia de produção, ao arrepio de outras «fábricas» que se tornaram emblemáticas da década de 60 e serviram de modelo aos circuitos de distribuição que a partir de então se começaram a montar com uma lógica já não artesanal – estava a nascer, sobre a contestação da década, a indústria do espectáculo cultural. Mais ainda, notar-se-á que René Bertholo constrói, desde 60 até ao presente, um universo imaginário particularmente individualizado e coerente que sucessivamente se retoma e reorienta, configurando-se sempre sobre novas condições expressivas, através de rupturas interiores mais ou menos explícitas, o que corresponde à recusa em estabilizar uma imagem de marca administrável como repetição «ad eternum» de múltiplos predefinidos e bem reconhecíveis, a que se chama em muitos casos a carreira. Poucos dos seus contemporâneos internacionais escaparam a essa tentação e raros foram tão incisivos como ele ao rejeitarem o carreirismo artístico e mesmo «a profissão» de pintor.

Por outro lado, se os primeiros períodos marcantes da obra de René Bertholo se reconhecem como característicos (e caracterizadores) dos anos 60, servindo por isso mesmo a habitual mas muito discutível tendência historicista de privilegiar os momentos de primeira consagração dos movimentos e dos artistas – de que resulta, em geral, a valorização sucessiva de cada vez mais curtos ciclos criativos e um relegar desatento e indiferenciado das obras de maturidade para um pantanoso «mainstream» –,  a produção mais recente do pintor, que é decididamente mais realista e abre, por isso mesmo, um campo mais vasto de possibilidades à expressão da imaginação e do sonho, que desde o início a alimentava, é aquela que hoje mais nos deve interessar, pelas qualidades próprias da sua realização pictural e pela originalidade radical do seu universo ficcional. Um universo imagético acertado com o seu tempo de realização, na sua própria dimensão autobiográfica e nos ecos, sintomas e questionamentos que o atravessam, mesmo se a dependência de valores mais correntes e mais mediatizados impedirão alguns de o reconhecer. E, em especial, uma obra que se enfrenta com uma das questões decisivas deixada pela herança modernista, a da viabilidade da ficção depois da desconstrução das convenções e dos mitos.
Uma tendência dominante que substitui a crítica das obras pela aplicação mecânica das grelhas cronológicas ou geracionais esforçar-se-á por sugerir, como sucede por exemplo a propósito de Paula Rego, que na pintura de René Bertholo ocorre uma sobrevivência de problemáticas dos anos 60 – a continuidade das tensões bipolares abstracção/neofiguração, representação/apresentação (e também se dirá, noutras prosas ainda mais inconsequentes, que enquanto pintura se trata do prolongamento de uma tradição já muitas vezes extinta...). Não importa. Se a cegueira não for fatal, reconhecer-se-á que o que existe de participação numa dinâmica colectivamente renovadora nos anos 60, expressando com originalidade própria um certo ar do tempo, ao intervir na reabertura de um campo de expressão figurativa sem abdicar da sua aprendizagem das lições do automatismo psíquico e da exploração abstraccionista, evolui e enriquece-se depois no sentido de uma cada vez maior afirmação individualizada para ser uma das obras incontornáveis do presente – o virar do século.
O trabalho recente de René Bertholo (como todo o seu trabalho, aliás, ao longo de diversas fases) não é o congelamento de um estilo pessoal ou a circunscrição de uma linguagem imediatamente reconhecíveis como um domínio de produção assegurado por um «copyright», como sucede, por exemplo, com Arroyo, Erro, Klasen e outros nomes que acompanharam a chamada neofiguração, no que esta ambicionou afirmar como exercício da constatação e do comentário. Sob os vectores da continuidade, não se caracterizando as suas últimas duas décadas por uma mutação por fases bem delimitadas, a obra sempre lenta e numericamente escassa da maturidade recente de René Bertholo é um processo constante de reapropriação, análise e transformação das aquisições anteriores, que se resolve sempre por uma ampliação de possibilidades expressivas e pela integração de novos questionamentos e novas imagens. Passando da inicial simulação – só simulação - de um discurso narrativo à afirmação plena da necessidade e possibilidade da ficcionação pictural.


2. O período da pintura de René Bertholo habitualmente identificada com a figuração narrativa durou apenas cerca de quatro anos, de 62/3 a 66, e encerra-se em ruptura com a respectiva caracterização enquanto tendência (veja-se o significativo diálogo com Pierre Restany publicado no catálogo da exposição de 1965 na Galerie Mathias Fels). O período seguinte dos «modelos reduzidos» é mais longo, de 66 a 73, mas é também numericamente menos produtivo, dadas as próprias características técnicas desses trabalhos, para além de constituir uma linha de trabalho mais solitária, menos directamente integrável nas movimentações colectivas então dominantes. O seu «regresso à pintura», a partir de 1974, é acompanhado por um investimento principal, até por ser intensamente absorvente enquanto trabalho efectivo, em intervenções no espaço urbano, ou obras de arte pública, que ocupam o artista entre 1972 e 1983, com uma pronunciada dimensão utópica que René Bertholo quis tornar acessível a todos os públicos e depois identificar com uma tradição da escultura popular. A primeira numa rua de Paris, a pintura de uma empena da Rue Doussoubs, no âmbito de um programa estatal de encomendas de intervenção urbana que se iniciara no ano anterior com Morellet (3); depois em vários edifícios escolares franceses, com sucessivas experiências de diferentes materiais (mosaico, cerâmica ou complexas construções esculturais, como o pórtico do Collège du Luzard, em Noisiel, 1978); a última já em Portugal, com seis esculturas em betão armado colorido, no Hospital do Barreiro.
Irregularmente, a partir de 1974, com os acrílicos sobre papel que no ano seguinte expõe na Galerie Lucien Durand («Mirages»), e mais regularmente a partir da sua instalação definitiva em Portugal, esse «regresso à pintura» constitui a mais longa das fases da obra de René Bertholo, a que corresponde a produção, sempre lenta, do seu mais extenso corpo de trabalho. A continuidade com as pinturas da primeira metade dos anos 60 é evidente, até pela retoma mais ou menos sistemática de elementos sígnicos aí presentes, mas é muito mais decisiva a evolução constante que se vai operando no seu trabalho.
Nele se assiste à transformação da estratégia de acumulação e espalhamento de pequenos sinais isolados (objectos reconhecíveis ou não reconhecíveis), em quadros que recusam a sua leitura como «estória», mesmo quando parecem sugeri-la pela utilização de processos idênticos aos da banda desenhada, numa investigação sobre as possibilidades da ampliação, localização e adensamento desses sinais, que passam a ser cada vez mais dotados de volume, «peso» e sombra (sem deixarem de ser em muitos casos «abstractos»), ao mesmo tempo que passam a organizar-se segundo diferentes modelos de representação explicitamente narrativa de um universo ficcional próprio, onde o imaginário é mais claramente afirmado como uma dimensão intrínseca do real. Nesses modelos investe-se por vezes um sentido reconhecidamente autobiográfico (as «mulheres imaginárias», os «quartos», a casa e a paisagem do Algarve, etc), ou são-no também através da revisitação da obra anterior; outros casos, como o das suas pinturas em «episódios», mostram-se claramente como dispositivos ficcionais abertos a uma pluralidade de leituras, porque também não partem de uma história preconcebida («num quadro há milhões de histórias», dizia o pintor numa entrevista de 1984); enquanto ainda noutros casos Bertholo faz uma referência explícita a personagens de ficções tradicionais – nos seus quadros de 1995 aparece o coelho de Alice, que também é uma referência privada a um desenho de António Dacosta (O Coelho do António, etc), a Carochinha, o Capuchinho Vermelho e certamente o feijoeiro mágico (Coluna Sem Fim, A Árvore da Vida).
René Bertholo recusara em 1965 a identificação dos seus quadros como figuração narrativa, no momento em que a fórmula se institui. Ao responder a um Restany que o interroga sobre o «risco» de as suas «imagens subjectivas» se organizarem numa narrativa (récit), R.B. diz: «Primeiro sabes muito bem que não sou um narrativo. Eu não conto nada. Depois, o meu tratamento da imagem (nas suas modificações como nas suas repetições) é inteiramente instintivo e espontâneo.» O tópico da narração, assim negado, associava-se então quer à defesa de um certo automatismo de tradição surrealista quer à recusa da «crítica política do género Arroyo», bem como ao respeito pelo interdito modernista do «literário», que praticamente extinguira a pintura de história e de género. Restany fala de «uma arte de evasão», Bertholo propõe-se «divertir os outros» no texto que escreve para o mesmo catálogo; notar-se-á, no entanto, que ele próprio retoma aí a ideia de narrativa, distinguindo-a da constatação e da denúncia ou crítica políticas, para a inscrever no domínio da ficção: «Encontrar para uso dos adultos qualquer coisa que corresponda  ao mundo dos livros da escola, ao mundo dos álbuns de colorir. Contar-lhes histórias de fadas, regá-los com vapores coloridos, faze-los sorrir. Deixar-lhes, no entanto, qualquer coisa para fazer: dou-lhe um cosido já pronto, mas que cada um deve temperar a seu gosto».
É na obra que cresce a partir de meados de 70 que René Bertholo vai descobrir como é que as suas telas se podem organizar como construções ficcionais, sem que a pintura se torne ilustração de um texto prévio, sem dependências  ou conotações «literárias», e onde ao seu tratamento «instintivo e espontâneo» da imagem corresponda também uma não determinação das respectivas leituras pelos espectadores (4). A questão do movimento-tempo é decisiva nessa evolução, e ela tinha passado por diversas experiências anteriores de inscrição ou utilização da «durée», tanto na sua pintura como nos «modelos reduzidos», antes de se afirmar com decisiva clareza nas sequências, compartimentações e episódios do seu período dos «quartos».
Entretanto, é particularmente relevante na produção mais recente a lenta mutação do trabalho da pintura, que radicalizou uma investigação sobre os seus procedimentos através do que René Bertholo designou como «Quadricomias», na exposição de 1995, na Galeria Fernando Santos, no Porto (também mostrada em Lisboa no ano seguinte), e, logo depois, com o início da utilização experimental das possibilidades do computador na concepção e estudo prévio dos seus quadros. Antes de voltar a considerar a obra de Bertholo no seu devir cronológico, é oportuno referir estas duas inovações processuais, pelo que elas revelam, em versão recentíssima, de uma atracção continuada pelo emprego de meios mecânicos (que já vem de uma exploração precoce das técnicas de impressão, nos anos 50, continua com a construção dos modelos reduzidos e, depois, nas máquinas musicais), mesmo se logo nos anos 60, à revelia da pressão do tempo, a sua pintura não se deixou seduzir pela apropriação fotomecânica das imagens nem pelo império da comunicação de massas.
Nas «Quadricomias», Bertholo adopta na aplicação da cor o processo usado na reprodução impressa da fotografia, a selecção de cores, restringindo a paleta a quatro tubos de óleo – azul cobalto, vermelhão, amarelo cadmium e um cinzento quase preto –, e utiliza a cor em camadas sucessivas no «preenchimento» de um desenho prévio, ou suspende aquela sequência para manter vastas áreas monocromáticas ou explorar um colorido não «naturalista», de aspecto artificial, com a luminosidade do neon ou do ecrã. O processo que então designava como «quadricomia» tinha largos antecedentes: por exemplo, em Jeux sans Issue, de 1977, um dos seus mais antigos «quartos», o pintor restringira-se à cor azul. E o início das suas pinturas dos anos 60 já tivera lugar com a decisão de colorir as formas desenhadas.
Depois, graças à exploração dos meios informáticos (scanner, computador e impressora), René Bertholo liberta-se do que havia de fastidioso no seu processo de trabalho, quando retoma elementos miniaturais dos seus quadros anteriores e os sujeita a operações de ampliação, fragmentação, repetição e sequenciação. Não se trata de o incluir em qualquer «revolução digital» de que resultem objectos de diferente natureza – e nada indica, entretanto, que os meios informáticos tenham trazido alterações substanciais ao que também já era criação de imagens virtuais pela pintura ou, noutros artistas, pela manipulação de fotografias através da fotomontagem e das alterações laboratoriais, para lá do que resulta ser mais fácil e mais «perfeito». No entanto, é certamente possível detectar na última exposição de Bertholo (1998, Cascais e Porto) uma maior variedade de processos de construção do quadro que parece resultar da maior agilidade consentida pelo computador aos seus estudos preparatórios: aí encontramos a imagem unificada sobre uma tela de grande formato, A Heroína; a utilização de dois, quatro ou seis espaços repetidos; a retoma do processo de espalhamento e acumulação de figuras, mas numa sobreposição total de elementos de onde fica ausente qualquer «fundo» plano ou abstracto, em Indiana Jones; e ainda a composição inédita de Oh Céu de Agosto ou a aparente simulação da colagem em O Diabo, a Paraquedista, etc. O novo instrumento de trabalho assegura-lhe maior liberdade inventiva.


3. Uma retrospectiva que venha a reconstituir todo o trajecto de René Bertholo, iniciado na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1953, terá de explorar o seu primeiro período de trabalho, precocemente assinalado pela participação no 1º Salão de Arte Abstracta, organizado em 1954 por José-Augusto França na Galeria de Março, e prolongado até à presença na 2ª Exposição Gulbenkian, em Dezembro de 1961, com uma tela de vigorosa gestualidade informalista. Alguns desenhos serviriam talvez para localizar em germe tópicos e processos que serão diferentemente retomados pelas obras dos anos 60, a par de uma prática da ilustração ou, melhor, de actividade gráfica figurativa (em especial, na revista de cinema «Imagem», em 1955-58), ao mesmo tempo que se averiguaria o que significa a atribuição de títulos explicitamente narrativos à produção «abstracta» apresentada em 1960 na exposição do Grupo KWI, na SNBA, onde também mostrou «relevos» que se desconhecem. Esse é um período de intensa participação de Bertholo nas iniciativas de uma nova geração de artistas e de agitação do panorama artístico português, desde a fundação da revista escolar «Ver», em 1954, e da galeria Pórtico no ano seguinte, à co-organização do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, nas vésperas de deixar o país em direcção a Munique. A revista «KWY», que começa em 1958 com Lourdes Castro, e toma depois o carácter de órgão de grupo ou de confluência de trajectos pessoais, até 1963, insere-se nessa mesma capacidade de criação e condução de projectos colectivos.
Decisiva é a mutação que o trabalho de René Bertholo conhece a partir de 1961, com os primeiros desenhos-acumulações que conduzem directamente às pinturas expostas em 63 na Galerie du Dragon, numa situação parisiense então marcada por grande dinamismo vanguardista, em que os encontros e cruzamentos de experiências são mais decisivos que as demarcações programáticas. O tempo e a actuação propagandística de Pierre Restany parecem isolar os «Nouveaux Réalistes», na viragem da década de 50 para a de 60, como movimento coerentemente programático e fechado sobre os seus nomes de referência, mas a realidade era então mais fluida e aberta. São ténues as fronteiras entre movimentações e direcções, e os artistas que Restany agregou com os seus manifestos incluem a linha dos «affichistes» que antes se associava aos «informais», convive com o experimentalismo cinético e com o grupo Zero, estará presente também na afirmação da figuração narrativa, com Raysse e Niki de Saint-Phalle. A participação na revista «KWY» de Christo e do pintor alemão Jan Voss, desde 1960, é indicativa desses cruzamentos. O nº 11, da Primavera de 63, é organizado por Christo e em grande parte dedicado a Yves Klein.
A «nova figuração» que se procurava recobria genericamente uma distanciação crítica face à estabilizada abstracção lírica e informal parisiense, reafirmando a validade de figurações expressionistas anteriores. Em 1961, a Galerie Mathias Fels festeja os 10 anos dos Cobra e no ano seguinte apresenta a colectiva «Une nouvelle figuration», com a participação de Appel, Bacon, Corneille, Dubuffet, Giacometti, Jorn, Matta, Saura e De Stael, entre outros. Essa movimentação é exactamente contemporânea da afirmação do «Nouveau Réalisme» que Restany promove em «À 40º au-dessus de dada» (Galerie J, 1961) e ao primeiro confronto entre «neo-dadas» franceses e norte-americanos (Galerie Rive Droite, 1961), que só no ano seguinte, na sua edição americana da Sidney Jannis Gallery, incluirá, ao lado de Rauschenberg e Johns, os futuros artistas Pop (5).
Bertholo participa em 1962 numa influente exposição colectiva comissariada por jovens críticos, «Donner à Voir 2», seleccionado por José Pierre, de filiação surrealizante. No ano seguinte, em que entra na representação portuguesa da Bienal de Paris (da qual é comissário César Moreira Baptista), está presente noutro ponto da situação promovido anualmente pela Galerie Charpentier sob o nome de «École de Paris», designação que continuava a traduzir a afluência de estrangeiros a Paris e tinha uma marca cosmopolita. É então Corneille quem o selecciona, ao lado de Baj, Chaissac, Jorn, Saura, Hundertwasser e outros; aí participam também Télémaque, Fahlström, Arikha, etc. No mesmo ano de 1963, é o mesmo José Pierre que o apresenta em «Image à Cinq Branches» na Galerie Mathias Fels, ao lado de Télémaque, Rancillac, Klasen, Voss e Reuterswäld. Logo depois, Bertholo intervém activamente, com Télémaque e Rancillac, na organização de «Mythologies Quotidiennes», 1964, que tem lugar no Museu de Arte Moderna de Paris, e a propósito da qual Gassiot-Talabot forja a designação «figuração narrativa» num contexto em que a Pop britânica e americana já é conhecida. Vimos que René Bertholo não acompanhou o sentido que viria a ter essa fórmula.
É numa orientação que assume alguma proximidade com um surrealismo liberto da sua iconografia estereotipada e com a linhagem Cobra que vencera a polaridade abstracção-figuração que René Bertholo iria passar das suas primeiras acumulações desenhadas para os quadros de acumulação de imagens. «Essa coisa de ir amontoando, amontoando, não sei de onde viria, tem provavelmente várias origens» - refere o artista na entrevista de 1984 já citada (6). Interrogando-se, recorda o seu primeiro choque perante as reproduções de Pollock e Tobey vistas em Lisboa na Biblioteca Americana, ainda antes do seu grande interesse por Klee; aponta depois, já em Paris, o encontro com os «cachets» e «allures d’objects» de Arman e a impressão causada pelos esquissos de Leonardo da Vinci em «páginas inteiras cobertas de bonequinhos». Essencial, entretanto, é a cumplicidade estabelecida com Jan Voss, numa constante troca de experiências ao longo de quase uma década, que seria curioso observar em pormenor. «De nós dois acho que foi ele que começou (não quero ser pretensioso) essa evolução. Ele fazia uns novelos, uma riscalhada que tinha muito a ver com a pintura de Twombly, que já usava uma espécie de grafitis... Era uma coisa que andava no ar.» Depois é Bertholo que começa «a misturar coisas figurativas e outras abstractas dentro de um mesmo espaço», seguido por Voss.
São objectos miniaturais em queda ou em voo sobre um espaço «abstracto» que pode ser, com ironia, atmosférico e ambíguo, mas é essencialmente gráfico e objectual, entendido o quadro como página e usado como suporte ou depósito de signos e representações, às vezes limitado por frisos ou dividido por configurações geométricas repetidas que têm algo a ver com os quadrados da banda desenhada, mesmo se os sinais desobedecem à compartimentação e brincam com a sequenciação narrativa. Heraldique, Formations Blanches, Table Verte, Babel Encore, La Voie Lactée, títulos de 1963, indicam que é o jogo da associação livre e paradoxal de elementos identificáveis ou não reconhecíveis que preside a essas obras, num momento prévio ao projecto de algum modo ficcional que existirá, logo no mesmo ano, em Le Désarroi de M. Thomas, e se reconhece em Mme Julia entre la Nuit et le Jour.
Em 1965, com Une Vie de Secrétaire e Casa de Paris (título a confirmar) a tela segmenta-se em áreas bem demarcadas, que funcionam por vezes como quadro dentro do quadro ou que se podem ver como «trompe l’oeil» de uma colagem de fragmentos com diferentes regras de composição, ou melhor, de preenchimento. As zonas de acumulação esvoaçante de objectos coexistem com alinhamentos de sinais repetidos (ou de representações, por exemplo, de uma fotografia que é uma natureza morta) e ainda com sequências de imagens que sugerem o movimento ou são aparentes inventários. A palavra escrita surge como objecto também, como comentário e legenda, como pista de leitura ou  acréscimo de irrisão. Em 1966, L’Idéal já inclui um projecto de «modelo reduzido».
Entretanto, pode situar-se nestas telas o aparecimento de motivos e personagens que voltarão a surgir em pinturas muito posteriores: em Une Vie de Sécretaire está a mulher que segura um vidro, com uma espécie de adesivo sobre os braços, a qual aparece de novo em Malabarismos, de 1998, e igualmente em O Diabo, a Paraquedista, Etc, de 1997, nesta última tela também ao lado da mulher paraquedista que está desenhada em A Casa de Paris.
Voltemos ao diálogo com Pierre Restany em 1965, intitulado «Le réel au delà du récit», um prefácio assinado em comum que está intimamente associado às tensões que ocorrem na cena artística parisiense – a radicalização política no seio do Salon de la Jeune Peinture e a afirmação da figuração narrativa por Gassiot-Talabot –, manifestando a demarcação nítida de René Bertholo face a ambas. O «pai espiritual do novo realismo, papa do pop parisiense e vulgarizador prosélito do animismo do ready-made», como o próprio Restany se identifica, distancia a «escrita das coisas» de Bertholo da neofiguração narrativa que então ambiciona a intervenção política, situando-o «fora da corrente». De facto, ele já não participará em «La Figuration Narrative dans l’Art Contemporain», de Gassiot-Talabot na Galerie Creuze, em Outubro de 1965, onde a indiferença de Duchamp seria militantemente «assassinada», nem em «Bande Dessinée et Figuration Narrative», organizada em 1967 pelo mesmo crítico (7), tal como não estará associado à escalada de activismo político em que se implicam diversos artistas parisienses. Bertholo dizia a Resteny: «Abstenho-me de qualquer pretensão à moralidade pública, de qualquer crítica político-social do género Arroyo. Como homem e como português acredito pouco, em 1965, na eficácia dessa crítica». No entanto, está presente em mostras italianas orientadas para a interrogação da situação contemporânea, como «Il Presente Contestato», em Bolonha, e «Alternative Attuali», Aquila, ambas em 65, tal como participa numa sequência ininterrupta de exposições significativas desse período: o Prémio «Marzotto» em 1966, com larga circulação internacional; o Salão de Maio de Paris, em 1967, reeditado em Havana; «Superlund», na Suécia, 67;  «L’Art Vivant», Fundação Maeght, 68; «Distances», MAM, Paris, 69, etc.
Àquela distância da politização dos discursos artísticos da época, soma-se a recusa dos processos mecânicos de apropriação das imagens (transposições fotográficas, impressões serigráficas, decalcomania industrial), que defende Restany. A atitude de Bertholo é tanto mais significativa quanto a sua pintura nunca foi nem pretendeu ser a exibição de qualquer virtuosismo do fazer e, por outro lado, o gosto pela exploração das técnicas de reprodução serigráfica fora evidenciado desde o tempo da sua formação em Lisboa e esteve na base da publicação do «KWY» e de outras edições. Porque não recorres aos processos fotomecânicos? a técnica da colagem nunca te tentou? – pergunta Restany. «O meu realismo consiste em reconstituir na minha memória a integralidade da forma. As imagens “ready made” bloqueiam-me a visão. Já estão  demasiado presentes. A decalcomania ou os processos mecânicos de reprodução da forma são tão académicos como a pintura» – responde Bertholo.
Entretanto, seria curioso avaliar a incompreensão com que em Portugal se acolhem então as informações sobre as mutações que ocorriam no exterior, através de abordagens associadas a uma retardada tradição formalista e aplicadas em defesas programáticas que se colavam com um ritmo sempre excessivamente atrasado a ortodoxias já em vias de esgotamento, como ocorrera em torno do surrealismo no final da década de 40 e aconteceu com os abstracionismos na segunda metade da década de 50. Depois do culto pela polaridade figuração-abstracção, o gosto pelas classificações redutoras dá lugar a uma amálgama que se designa como «neofigurativismo», onde a ideia absurda de «figura pura» se vem somar à «cor pura» e ao «espaço puro», numa defesa dos «factores puramente plásticos» contra as ameaças de persistência naturalista, da qual se era cúmplice, afinal, no que esta teve de pior, a fatalidade de um lirismo nacional...
Curiosamente, rejeitados os processos mecânicos de apropriação das imagens mediáticas, a restrição às imagens de imagens, são as máquinas que vão então surgir na obra de René Bertholo, através da construção dos autómatos designados como «modelos reduzidos», os quais, apesar do seu nome, assinalam uma primeira possibilidade de passagem das representações miniaturais e acumuladas a imagens unificadas de grande formato. «A ideia que me veio foi fazer paisagens com movimento» (1984). «Procuro sempre ilustrar um só tema (...) tenho vontade de me limitar, de sugerir de maneira muito legível este ou aquele fenómeno da natureza» (8). O que seria então impossível representar em pintura ganha uma dimensão lúdica e irónica quando a figura se reduz ao arquétipo e é dotada de movimento.
A via aberta, por mais sugestiva que se reconheça, era de desenvolvimento necessariamente limitado, para além de vir a confrontar-se com complexas condições materiais de produção. Adquirido o movimento que a sua pintura anterior tinha ensaiado, Bertholo perdia no mesmo passo o recurso à memória, como processo essencial de activação do seu imaginário. Ao regressar depois à pintura, o seu projecto será «passar através da memória para descrever a realidade» (1984).
«Mirages», 1975: «uma longa série de acrílicos sobre papel onde jogava com a ideia de que alguém, tendo visto uma paisagem, tenta lembrar-se de como ela era e faz tentativas desesperadas para a encontrar na sua memória». «Mirages suite et fin», 1977, óleos: «A série seguinte mostrava retratos de mulheres, praticamente sempre imaginários e, aliás, pintados sobre a tela sem a ajuda de qualquer documento. Imaginação e memória. Em seguida pintei quartos de dormir onde montes de objectos heteróclitos juncavam o chão, as paredes e por vezes a cama, tornando-a muitas vezes inutilizável». «O prazer de misturar tudo num espaço imaginário, sonhos acordados». «Légendes», 1981: «Imaginei que cada interior representava uma lenda», mas «estas lendas não têm um sentido definido à partida» (9). Todo esse trajecto não se acompanhou em Portugal (com excepção de uma mostra no Funchal, em 1980, que não poderia ter eco continental), até que em 1984, na Galeria Ana Isabel, se iniciasse a série de espaçadas individuais de galeria (Nasoni, Fernando Santos) prosseguida ao longo da década de 90. A antologia não permitirá ainda sumariar os passos de todo este itinerário, onde a obra de René Bertholo constantemente se recicla, reorienta e amplia, numa situação de plena maturidade que nunca perdeu a frescura do seu humor. Os seus «puzzles», inventários e histórias, sem abandonarem o vector do jogo e da irrisão mas juntando-lhe a perturbação perante «os mistérios da existência e das estrelas» (1984), cruzam a dimensão autobiográfica com a reinterpretação do mundo afirmando os poderes do sonho e da imaginação. Propõem-nos espaços lúdicos de fingimento partilhado (J-M.Schaeffer). Reconciliam a pintura com a ficção.

(1) Pierre Restany, «La réalité dépasse la fiction», prefácio para a exposição «Le Nouveau Réalisme à Paris et à New York», Galerie Rive Droite, Paris, Junho de 1961, in 1960, Les Nouveaux Réalistes, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1986, pág. 267.
(2) Simón Marchán Fiz, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, ed. Akal, Madrid, 1986, pág. 21.
(3) Ver Germain Viatte, «Au service de la création artistique», in Bernard Anthonioz ou la Liberté de L’Art, ed. Adam Biro, Paris, Paris, 1999, pág. 97.
(4) Para uma «compreensão positiva» da mimesis e mais especificamente da ficção, ver Jean-Marie Schaeffer, Pourquoi la Fiction?, Seuil, Paris, 1999.
(5) Ver Manifeste. Une Histoire Parallèle. 1960-1990, Centre Georges Pompidou, 1993, e Catherine Millet, L’Art Contemporain en France, Flammarion, Paris, 1987.
(6) Alexandre Pomar, «René Bertholo: Num quadro há milhões de histórias», «Expresso-Revista», 14 de Abril de 1984.
(7) No prefácio desta exposição, Gassiot-Talabot precisa a sua definição de figuração narrativa: «É narrativa toda a obra plástica que se refere a uma representação figurada “dans la durée”, pela sua escrita e a sua composição, sem que aí exista propriamente uma estória (récit)». Ver Gérald Gassiot-Talabot, «De la Figuration narrative à la Figuration critique», in Face à l’Histoire, Flammarion/Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 358.
(8) Conversa de René Bertholo com Jean-Luc Verley, catálogo da Galeria 111, 1972.
(9) René Bertholo, catálogos da Galerie Lucien Durand, 1981, e da Galeria Ana Isabel, 1984.