sábado, 22 de maio de 1993

1993, André Kertész, "Ma France", Encontros da Imagem de Braga

 Encontros da Imagem de Braga 1993

“Mestre Kertész”


EXPRESSO/Revista 22/05/1993, pp 46-47



HÁ DOIS encontros de fotografia nos Encontros da Imagem de Braga. Dois modos de divulgação da fotografia, apenas coincidentes no tempo desta 7ª edição: Kertész e os outros.

André Kertész, que é habitual considerar um dos maiores fotógrafos de sempre (ou mesmo o maior), é apresentado pela exposição «Ma France», uma selecção das fotos que realizou em Paris entre 1925 e 1936, associadas a algumas outras com datas que vão de 1948 a 1984, resultantes de episódicos regressos a França. Pierre Bonhomme, o comissário, estruturou-a numa sequência de núcleos temáticos que se distribuem pelas pequenas salas do Museu dos Biscainhos: retratos dos amigos húngaros também exilados, retratos de artistas e escritores e fotografias dos cafés ou ateliers parisienses (Mondrian, Chagall, Zadkine, Foujita, Lurçat, Mac Orlan...), reportagens publicadas na imprensa da época, fotografias escolhidas pelo próprio autor para exposições nos anos 20 e 30, a série das «Distorções», as vistas de Paris, etc. Por outro lado, colocou em contiguidade, no interior de algumas das séries, fotografias com quase seis décadas de distância — e só as legendas permitem em muitos casos distingui-las. 

A mostra foi acompanhada pela importação de alguns exemplares do livro-catálogo com o mesmo título (Ma France, «Collection Donations», volume 2, coedição La Manufacture e Ministère de la Culture, Paris, 1990; 276 págs., 395 FF, 10. 000$00). Além de ser um album belíssimo, onde se segue a mesma ordenação da exposição, com mais imagens e mais documentação, os textos de Isabelle Jammes, Jean-Claude Lemagny, Michel Frizot e em especial Sandra Phillips constituem uma contribuição importante para enquadrar o itinerário francês do fotógrafo. Exposição e livro resultam dos primeiros anos de trabalho sobre o espólio de Kertész, confiado à Mission du Patrimoine Photographique (da Direction du Patrimoine, Paris), que tem precisamente por atribuição a prospecção, a conservação, o estudo e a divulgação das doações fotográficas feitas ao Estado, e de que Pierre Bonhomme é o director. 


NASCIDO em Budapeste em 1894, André Kertész chegou a Paris com 31 anos, já como fotógrafo publicado e premiado, e integrou-se rapidamente nos meios da vanguarda artística e literária do tempo, ao mesmo tempo que começava a colaborar como «freelancer» em revistas franceses e alemães. Em 1928 trocou os seus pequenos aparelhos pelos 35 mm da Leica e foi um dos primeiros fotógrafos a explorar as possibilidades mecânicas e estéticas da nova câmara, que lhe permitia associar a declarada atitude de amador com a expontaneidade do olhar e a velocidade do registo, transportando-as para um novo estilo de magazines. 

Fundador da fotografia moderna, Kertész foi nesses anos, simultaneamente, o passeante disponível para os encontros de acaso, que Breton teorizava, e o turista guiado nas ruas de Paris pela curiosidade e pelo pitoresco; foi o repórter, o publicitário e o artista que fundia numa mesma prática da fotografia um olhar avesso a todos os sistemas: «entre uma fotografia de ilustração e uma fotografia estritamente pessoal, a diferença está sobretudo no uso que delas se faz; ninguém já as separa uma da outra, nem as hierarquiza», escreve Pierre  Bonhomme (Ma France, pág. 12). Com ele, que foi o primeiro a introduzir o humor na fotografia, como notou Pierre de Fenoyl, o onírico surrealista nunca se transformou em receita de escola, a estruturação pós-cubista da composição não se encerrou na pesquisa formalista, a atenção ao imprevisto não se prendeu à busca do anedótico, e a relação calorosa com o mundo não se fixou no humanismo sentimental que marcou grande parte do realismo francês.  

Nos retratos e fotografias de atelier, por exemplo, a aproximação ao universo próprio de cada um dos artistas materializa-se ora no rigor da espacilidade recticulada de Mondrian, ora na presença ondulante e evanescente do casal Chagall. O interesse pela construção geométrica da imagem não limita a discrição do concreto; o sentido dos espaços e o gosto pelo pormenor, a elegância gráfica, a preocupação pela captação das matérias e das estruturas é simultânea com a permanente relação sentimental com o real; o rigor plástico, que pode fazer da fotografia publicitária um radical momento de estudo das formas (La fourchette, 1928), exprime uma certa arte de viver. Kertész não teoriza nem se fixa numa atitude; inventa e abre caminhos sem criar uma escola; ensina a ver e estabelece um catálogo de temas que outros explorarão. «Eu sou... um amador e tenciono permanecer um amador toda a minha via», dizia em 1930 (cit. pág. 65).

Em 1936, no entanto, Kertész aceitou um contrato com a agência Keystone, em Nova Iorque, e iniciou então um longo e amargo exílio americano que durou até à morte em 1985. Só em 1962, ao abandonar um contrato de exclusividade com o grupo Condé Nast, para quem fez fotografia de moda e de arquitectura interior, voltou a dedicar-se livremente à sua obra pessoal, já com 68 anos; no ano seguinte recebeu a medalha de ouro da Bienal de Veneza e conseguiu recuperar os negativos húngaros e parisienses deixados em França e escondidos durante a guerra. Obtivera a nacionalidade americana em 1944 e a partir dos anos 60 conheceu um segundo período de reconhecimento (MoMA, 1964), mas, ainda em memória dos seus anos mais felizes e fecundos de Paris, acabou por doar em 1984 todos os seus negativos (100 000), documentação e correspondência ao «povo francês». (A colecção pública — e secreta — da SEC possui duas fotografias de Kertész, Distorção # 76, de 1933, e Brick Walls, de 1961).


TEM SIDO muito rara, em Portugal, a possibilidade de contacto directo com a obra dos criadores essenciais da história da fotografia, através de exposições monográficas acompanhadas por catálogos que as estudem e que coloquem as imagens à disposição de olhares mais demorados. As instituições públicas (Gulbenkian, Serralves...) e os encontros de fotografia (Coimbra, Braga, etc) têm dispersado a sua actividade por figuras laterais ou tidas por mais modernas, com algumas excepções meritórias; mais raramente ainda completam a exibição efémera das fotografias com a realização ou importação de catálogos. Também por esse motivo, a exposição Kertész deve ser saudada como um acontecimento excepcional. 

Mas o facto de se tratar de uma retrospectiva (onde faltam, naturalmente, as fotografias feitas na Hungria desde 1912 e toda a produção americana) não remete esta antologia para um qualquer distante limbo da História, nem autoriza uma abordagem historicista que se estabeleça em contraposição ao que seria o presente da fotografia. 

Se a obra de Kertész atravessa todo o século e se ele é o mestre reconhecido de tantos outros criadores (de Brassaï, de Cartier-Bresson, da fotografia humanista francesa, de Gibson, etc), poderá reconhecer-se também que a sua produção das últimas décadas não é o prolongamento de um estilo, a mera sobrevivência de um modo ou de um olhar. É a obra da maturidade de um grande artista, mesmo quando, em Nova Iorque, depois de duas agressões, já quase só fotografava a partir da janela da sua casa, ou quando, em 1984, revisitava em Paris as «Distorções» que publicara em 1933 por encomenda do jornal «Le Sourire». Não foi por acaso que na edição do EXPRESSO/Revista comemorativa dos 150 anos da fotografia (7.10.1989) Jorge Calado escolheu uma fotografia de Kertész para documentar a década de 60. 

É que a fotografia não se deixa apreender segundo o modelo historicista reinante nas artes plásticas e, como diz, por exemplo, Jean-Marie Sheaffer e esta exposição de Kertész plenamente demonstra, «pode colocar-se lado a lado uma imagem dos anos 40 do século XIX e uma fotografia contemporânea sem se experimentar um desvío histórico de princípio» ou de «horizonte semiótico» (L'Art de l'Âge Moderne, 1992, pág. 366). «O ritmo da evolução da fotografia não é o de uma progressão» e nada confirma as teses de «uma evolução teleológica que iria de um realismo mais ou menos ingénuo para uma espécie de meta-fotografia que acabaria por absorver a fotografia nas artes plásticas» (idem). 

No entanto, é esse tipo de discurso, banalizado por certa crítica que serve de caução à ignorância de muitos fotógrafos e ao regresso actual a novas (?) modalidades de «fotografia artística» e de maneirismo conceptual ou picturialista, o que impera na rede internacional dos Encontros de fotografia e se manifesta, em Braga, na generalidade das exposições, conferências (como as de Manuel Vilariño e Michael Kohler, no dia 9) ou textos de catálogo. Um exemplo apenas dos múltiplos erros em circulação, colhido na apresentação destes Encontros: «É sabido que apenas a partir dos finais da década de 70 a fotografia, enquanto projecto artístico, começa a ter, em Portugal, um corpo regular de criadores» (a afirmação tem, pelo menos, um século de atraso).


PARA além de comprovar a ineficácia da ideia de uma progressão temporal da fotografia equiparada à lógica da sucessão dos estilos e das rupturas das artes plásticas (o que não significa ignorar a evolução de problemáticas, dos modos de circulação e de recepção, e, em especial, os progressos técnicos), a obra de Kertész é também excepcional na relação que estabelece com a ideia de estilo em fotografia. Sucede, de facto, que a caracterização da sua produção levanta o exemplar problema da impossibilidade de definir facilmente uma «maneira» pessoal, uma linguagem, uma autoridade feita de uma estratégia conceptual ou formal estabelecida — e é a busca imediata dessa facilidade, a coberto de uma qualquer «vontade de arte» ou «projecto artístico», que caracteriza a maior parte da fotografia que se expõe na nova modalidade de salões de arte fotográfica que são a generalidade dos Encontros. 

Como sintetiza Jean-Claude Lemagny, repetindo muitos outros observadores precedentes, «a obra de Kertész parece recusar-se a dar oportunidade à análise crítica porque ela não deixa isolar nenhum acento dominante que permita a fixação dos comentadores» (Ma France, pág. 105). E Kertész é um fotógrafo maior precisamente porque o contacto imediato que estabelecemos com as suas imagens, graças a uma relação sempre disperta e calorosa com o mundo, que é descoberta pessoal e comunicabilidade, se prolonga nessa dificuldade de abordagem do discurso crítico, incapaz de arrumar a sua fotografia na gaveta de uma escola ou fórmula ou período.

Num terceiro nível, a exposição Kertesz é ainda exemplar. Ela vem dar conta de um entendimento da fotografia que se consolidou já na sua dimensão patrimonial e museológica, através de estruturas oficiais que a conservam, estudam, expõem e põem em circulação. A França está actualmente na dianteira dessa actividade, ao cabo de uma década de sólidos investimentos públicos, e faz dela uma das armas mais poderosas da sua representação cultural no exterior. Em Portugal, todos os esforços se concentram ainda numa actividade efémera de divulgação, permanentemente recomeçada e incapaz de estruturar bases sólidas de investigação e difusão, tanto a nível público como de iniciativa local ou associativa. Parece que, em Braga, a Câmara já aprovou a instalação de um museu da fotografia que dê uma nova consistência ao esforço de divulgação empreendido pelos encontros — aguarda-se que a concretização dessa promessa pioneira sobreviva ao ano de eleições.



 

sábado, 3 de abril de 1993

1993, Paris, "Beyrouth, centre-ville", Martin Parr: "Bored Couples"

 «Ruínas de Beirute... ócios britânicos», Paris 

03 Abr. Actual


Robert Frank regressou à reportagem para fotografar o centro arruinado de Beirute, na companhia do francês Raymond Depardon, do italiano Gabriele Basilico, do suiço René Burri, do checo Josef Koudelka e do libanês Fouad Elkoury

Quem juntou a  mais improvável equipa de fotojornalistas foi a Fundação Hariri, tutelada pelo milionário chefe do governo libanês, Rafic Hariri, e o primeiro resultado da operação visita-se em Paris no Palais de Tokyo (até dia 12) e folheia-se na luxuosa edição de Beyrouth, centre-ville (ed. du Cyprès, 490 FF). 


Confinados a cerca de um quilómetro quadrado de ruas destruídas e edifícios esventrados, apenas habitado por uns quantos milhares de «skatters» mantidos à distância, eles tiveram cerca de vinte dias para fazerem o último registo de uma cidade martirizada por sucessivas guerras entre 1975 e 1990. Burri e Depardon fixaram a paisagem monótona a cores, o segundo com uma câmara de grande formato, Koudelka explorou o terreno com imagens panorâmicas que percorrem a monumentalidade arruinada das construções, Basilico e Elkoury são rigorosamente documentais, e Frank, com fotografias muito diversas, voltou à construção de imagens fragmentadas e narrativas, isolando por vezes um pormenor mais íntimo sobre a sua própria passagem por um cenário de fantasmas. 

Apesar de todo o dramatismo inevitável desse último registo de uma cidade destruída, o trabalho ressente-se das condições absurdas da encomenda, enquanto se manifestam dúvidas fundadas sobre a intenção mais obscura desta missão fotográfica. É uma gigantesca operação de reconstrução que se anuncia, já amplamente denunciada como uma manobra de especulação fundiária e de «manhattanização» do centro histórico de Beirute.  


Nos 2000 metros quadrados de área de exposição do Centre National de la Photographie estão igualmente Martin Chambi, fotógrafo dos Andes apresentado através de duas colecções paralelas e por vezes coincidentes, e também uma retrospectiva do inglês Don McCullin (n. 1935, Londres), além de uma evocação do francês Daniel Boudinet, recentemente falecido, retratista de intelectuais e autor de ensaios sobre cenários arquitectónicos que Roland Barthes prefaciou, este apresentado pela Mission du Patrimoine Photographique, herdeira do seu espólio.


McCullin é um notável foto-reporter, que cobriu primeiro para «The Observer» e depois para o «Sunday Times» (até à chegada de Murdoch) quase todas as guerras do planeta nos anos 60 e 70, com passagem sucessivas por Beirute. A retrospectiva da sua obra, um dos libelos mais firmes sobre o horror e o absurdo, foi precedida pela publicação de uma autobiografia (Unreasonable Behaviour, Jonathan Cape, Londres, 1990) e de uma larga antologia de 35 anos de imagens, no mesmo editor, enquanto em Paris foi objecto de uma monografia na colecção «Photo Poche», com textos do próprio autor. Na mesma colecção já se seguiu outro volume dedicado a Dieter Appelt, com introdução de Michel Frizot (50 FF).


Entretanto, a política oficial de apoio à fotografia, um dos sectores em que a acção de Jack Lang se traduziu em resultados reconhecidos (e deu também lugar a uma decidida concorrência da parte de Jacques Chirac e da Câmara de Paris, que promovem o «Mois de la Photo» e se preparam para inaugurar a Maison Européenne de la Photographie), é o tema de um livro de síntese intitulado Photographie, editado pela Documentation Française numa série intitulada «État et Culture« (75 FF; outros volumes foram dedicados aos museus, à música, ao património, ao livro e ao cinema). Um album paralelo, de mais ostensiva ambição pré-eleitoral, faz o balanço ilustrado da década socialista na área da fotografia numa colecção ("Enjeux-Culture") da Reúnion des Musées de France (450 FF).


Fora do domínio oficial, algumas exposições em galerias permitem, também em Paris, acompanhar itinerários que já foram parcialmente apresentados  em Portugal. 

Bernard Faucon, cujo trabalho se tem seguido na Módulo, em Lisboa e Porto, apresenta uma nova série de fotografias na Galeria Yvon Lambert (até dia 6), onde continua a ocupar-se da paisagem, encenando-a como lugar metafórico de sentimentos ou de ficções. Depois de a ter transformado por efeito de colorizações parciais — com rios de sangue, por exemplo —, Faucon utiliza em Les Écritures, de 1991-92 (com livro-catálogo), a paisagem deserta como suporte de frase mais ou menos poéticas («À quoi ça ressemble la fin du désir», na foto) que são recortadas e sustentadas sobre estacas, por vezes visíveis. É um trabalho maneirista desenvolvido com um extremo rigor, sem trucagens laboratoriais.  

Pierre et Gilles, na Galerie Samia Saouma (até 30), acrescentam mais alguns retratos encenados a um universo kitsch e de inspiração gay em que se integram a si próprios travestidos como um casal de noivos.


Com outra exposição parisiense, do inglês Martin Parr, na Galerie du Jour de Agnès B., regressava-se à foto-reportagem, ampliando os recursos e a surpresa permanente do «género». Fotógrafo da agência Magnum, Parr expunha L'Ennui à Deux/Bored Couples (com catálogo), prosseguindo a construção de um retrato crítico da sociedade inglesa, na sequência, nomeadamente, de The Cost of Leaving (Cornerhouse, Manchester, 1989), One Day Trip (ed. Différence e Centre Régional de la Photographie Nord Pas-de-Calais, 1989), integrado na série de encomendas feitas pela Mission Photographique Transmanche com vista a documentar a realidade social alterada pela construção do túnel sob o canal da Mancha, e, mais recentemente, Signs of Times — a portrait of the nation's tastes (Cornerhouse, 1992), publicado em paralelo com a realização de uma série da BBC com produção e texto de Nicholas Barker sobre as decorações dos interiores domésticos britânicos.


Usando a cor e o humor, o formato 6 x 7 cm e o flash com luz diurna, em enquadramentos instáveis onde personagens e cenários são igualmente decisivos, Martin Parr é o reporter de uma «middle class» (ou «confortable class», como ele prefere) que se afadiga no consumismo e nos lazeres. Herdeiro de Tony Ray-Jones na capacidade de surpreender a coreografia das situações — e contemporâneo de outros notáveis fotógrafos britânicos como John Davies, Kris Killip, Graham Smith ou Nick Waplington —, Martin Parr é um dos poucos que sabe evitar a caricatura e o estereótipo ao fazer um registo implacável da transformação recente da sociedade britânica que renova a tradição da fotografia documental. 



1993, Frank Thiel na Módulo, Fontcuberta na Gal. Pedro Oliveira

FRANK THIEL, Módulo, Lisboa

JOAN FONTCUBERTA, Gal. Pedro Oliveira, Porto 

“Documentos”

EXPRESSO/Cartaz 03.04.1993, pag.17



Apenas a sequência das inaugurações permite que se aproximem num comentário único estas duas exposições. Ou o interesse de ambas, sobre diversíssimas bases. Ou, ainda, a possibilidade de serem tomadas como exemplos da vastidão do continente fotográfico.

Frank Thiel é um jovem alemão, nascido a Leste (em 1966) e passado a Ocidente antes da queda do muro. Com uma história dramática de um ano de prisão no fim da adolescência e uma libertação a troco de dinheiro, no contingente das «vendas» anuais feitas pelas autoridades ditas socialistas. Vive em Berlim desde 1985, onde fez estudos de fotografia; ganhou em 1990 o prémio da Kodak alemã e nesse ano expôs, por isso, em Arles. A primeira individual data de 1991, em Berlim, e logo no ano seguinte integrou uma importante mostra colectiva alemã que circulou em Espanha, «Einsamkeit, un sentimiento aleman», ao lado de Bernd & Hilla Becher, Jochen Gerz, Thomas Ruff e Roland Fischer (exp. comissariada por Rosa Olivares — Tarazona Foto 1992, Zaragoza; «La Caixa», Madrid e Barcelona; Palma de Maiorca). No próximo ano, participará numa colectiva de fotografia a apresentar por Lisboa'94 no CCB («Depois de Amanhã»).

A Módulo mostra fotografias de 89 e 90 pertencentes a duas séries, «Potsdam» e «Muro de Berlim». Sempre em preto e branco e de pequeno formato, resultam da impressão simultânea de dois disparos sequenciais (dois negativos contíguos) — é sempre de um falso díptico que se trata, de uma imagem panorâmica feita de pontos de vista distintos, mas aproximados, e não de uma colagem ou associação de fotografias. As provas conservam as «janelas» do negativo e servem-se de sumptuosos processos de impressão que sugerem uma velatura prévia do papel e criam halos em torno dos objectos, diminuindo os brancos mas conservando uma grande riqueza de pormenor nos negros. 

Outras séries conhecidas de catálogos — uma sequência de 24 soldados do regimento Friedrich Engels ou imagens de monumentos da ex-RDA — são impressas em grande formato, 215 cm, e mantêm a construção com dois (ou mesmo quatro) negativos, mas Frank Thiel sabe usar igualmente a cor e os planos únicos em fotografias das torres de vigia do muro de Berlim ou de portões fechados. Excepto nessas fotos a cor, associáveis mais directamente à mais recente vaga da nova objectividade alemã, pós-conceptual e «fria» (Ruff, Struth, etc), os trabalhos de Frank Thiel instalam no registo informativo uma deliberada ambiguidade. 

A suas fotografias constituem um olhar pessoal sobre um cenário em transformação, claramente estruturado por uma memória que parece quer reencontrar no presente a realidade essencial de um tempo já ultrapassado, como se Frank Thiel buscasse na ex-RDA as fotografias que não fez antes. O rigor da informação passa por um modo de olhar que relativiza o carácter imediato do registo através dos sinais de um código próprio e de uma prática de laboratório tornada evidente.

O seu trabalho é sempre documental, mas afasta-se deliberadamente do fotojornalismo que se exerce como crença ingénua na verdade das provas. O testemunho sobre a realidade social alemã é imediatamente marcado por um efeito de distanciamento introduzido pela composição dupla da imagem e por um modo de impressão que torna fantomáticas todas as existências: as janelas abertas na prova denunciam a vigilância e o cepticismo de um olhar ainda clandestino, enquanto o falso díptico se deixa interpretar como a herança profunda de uma Alemanha dividida. 

Joan Fontcuberta é um catalão (n. 1955, Barcelona) já com duas décadas de carreira, apresentado pela primeira vez entre nós nos Encontros de Coimbra de 1986. Objecto de uma intensa circulação internacional, inclusivamente americana (MoMA, 1988), teve uma importante mostra antológica organizada pelo IVAM (Valência) em Novembro de 1992, acompanhada por um catálogo que reune as suas séries desde Herbarium, nas quais se aprofunda um trabalho de pesquisa sobre a «verdade» da fotografia e sobre a natureza do medium.

Naquela série, Fontcuberta fazia uma homenagem irónica a Karl Blossfeldt, substituindo as plantas e flores das suas fotografias históricas por criações fantasistas, mas mantendo a mesma aparência de objectividade. Depois, levou mais longe a denúncia da confiança ingénua na fotografia numa série seguinte, Fauna, realizada de parceria com Pere Formiguera, que consistiu na simulação de documentos fotográficos (e também de textos, desenhos, radiografias, etc) idênticos aos usados pelos investigadores de ciências naturais. A sua obra posterior manteve a mesma relação irónica com o uso informativo da fotografia, ao mesmo tempo que se constituia num inventário de experiências (científicas?) sobre as possibilidades do medium fotográfico; em Frottogrames os negativos foram sujeitos a fragmentações, raspagens sobre os objectos fotografados e remontagens, de que resultou um renovado picturialismo.

Os trabalhos mostrados no Porto («Palimpsestos», 1989-92) integram-se nesse itinerário de experimentação de atelier e laboratório, retomando a técnica do fotograma (fixação de contornos e sombras por contacto directo dos objectos com a película fotográfica), mas utilizando suportes já previamente impressos: ilustrações e materiais publicitários, papel de parede, tecidos estampados, puzzles, etc. Na origem da série estão os interiores kitsch de hotéis americanos. As composições articulam-se por vezes em grandes dípticos ou trípticos, reunindo superfícies impressionadas sobre tela, em geral por plantas e flores, com tecidos decorativos originais e sem intervenção. Ao mesmo tempo que os objectos criados parecem colocar-se por inteiro no terreno sem fronteiras da pintura, numa estratégia de apropriação neo-conceptual, Fontcuberta mantém processos de trabalho rigorosamente fotográficos e dá sequência à sua pesquisa experimental sobre a relação entre a natureza e a sua represtação.

É no entendimento do seu trabalho anterior que assenta a recepção possível dos seus novos trabalhos, directamente ameaçados pela estratégia decorativa que aí se interroga e pelo kitsch dos materiais que utiliza como suporte.

sábado, 13 de março de 1993

Beaumont Newhall (1908-1993)

«Beaumont Newhall (1908-1993)» 


 EXPRESSO/Cartaz de 13 Março 1993, Actual, p. 2


Beaumont Newhall, o pioneiro da divulgação moderna da fotografia, morreu no dia 28 de Fevereiro, na sua casa de Santa Fé. Nascera a 22 de Junho de 1908 em Lynn, Massachusetts, e foi o fundador, a convite de Alfred H. Barr, em 1940, do departamento de fotografia do MoMA, que dirigiu até 1947. 

Diplomado em História da Arte em Harvard e em arte e arqueologia em Paris, em 1933, entrara para o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1935, como bibliotecário, e dois anos depois foi o responsável pela exposição "Photography 1939-1937", cujo catálogo se iria tornar no clássico da história de fotografia (The History of Photography, cinco vezes revista até à última edição de 1982). Tal exposição integrara-se na série das quatro grandes mostras — com "Cubism and Abstract Art", "Fantastic Art, Dada and Surrealism", e "Bauhaus: 1919-1928" — que entre 36 e 38 estabeleceram o paradigma da entrada da modernidade no museu (e a da fotografia como um dos seus ramos). 

Abordada à margem da velha questão do seu estatuto entre as Belas-Artes, bem como da oposição entre os seus usos e as artes plásticas (mas com um olhar de historiador de arte), a fotografia é então considerada tanto como um meio de expressão como de comunicação, catalogada com base na evolução dos seus processos técnicos e avaliada pelas qualidades consideradas intrínsecas ao seu "medium" próprio, fundando-se assim a possibilidade da sua história e crítica. 

Em 1947, B.N. é substituido no MoMA por Edward Steichen, no termo de um diferendo subterrâneo em que o seu culto da "arte da fotografia" se contrapunha aos interesses imediatos da indústria fotográfica e da grande massa de amadores (a Steichen sucederia John Szarkowski em 1962, reaproximando o departamento da orientação de Newhall, e depois Peter Galassi em 1992). 

Mas logo no ano seguinte B. Newhall podia continuar o seu trabalho como comissário do George Eastman House, de  Rochester, de que foi, também, o primeiro director  entre 1958 e 1971, ocupando mais tarde um lugar de professor na Universidade do Novo México. Foi entretanto autor de uma extensa bibliografia (mais de 600 artigos, ensaios e textos de catálogos), e nomeadamente de Photography: Essays and Images, Latent Image. The Discovery of Photography, Masters of Photography (com Nancy Newhall), etc.

Defendendo sempre o uso directo da câmara para "a revelação, interpretação e descoberta do mundo do homem e da natureza", Newhall mostrar-se-ía pouco interessado em algumas orientações das últimas décadas, por se afastarem do que entendia ser a especificidade do "medium" e surgirem como formas de narração e ilustração ou mais próximas das arte dramáticas. Temas que as suas memórias, a publicar no próximo Verão (Belfish Press), darão certamente novos contributos. 




terça-feira, 26 de janeiro de 1993

1993, 1994, 1995, 1996, Culturgest, Rui Vilar, Fernando Calhau, Colecção CGD, Egon Schiele

 ARQUIVO EXPRESSO: A CRIAÇÃO DA CULTURGEST em 1993 (há 30 ANOS) - I

A criação da Culturgest em 1993

DOSSIER EXPRESSO 26 Jun.1993, pp. 68-71

1 entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos

2. “Cultura sociedade anónima”

3. entrevista  de Rui Vilar

 1.

“Entrar nos circuitos”, entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos

 

«A CULTURGEST é uma empresa privada e comercial que assegura a animação dos espaços culturais da nova sede da CGD», diz o seu principal responsável, Manuel José Vaz. A utilização de tais espaços constituía, inicialmente, um projecto interno à CGD, dirigido para os seus empregados e para actividades de representação ligadas à natureza própria de um banco. Foi Rui Vilar, presidente da CGD, quem, entretanto, resolveu «voltar também para o exterior a utilização do edifício, abrindo-o à cidade e procurando assim suavizar o impacto negativo de uma tão grande concentração de serviços» numa única zona da cidade, decidida de acordo com concepções de gestão que hoje já não são pacíficas.
Abrir a fortaleza a diferentes usos, com novas circulações de público e horários mais flutuantes, implicou algumas alterações na obra e a revisão de condições de segurança. Mas reconheceu-se que o gigantismo da sede veio, de facto, alterar as características ambientais de uma área densamente povoada, sujeitando-a, para além de outros efeitos secundários, a uma nova vocação de serviços e ao peso do fluxo regular dos seus milhares de empregados. Toda a zona sofreria rapidamente, sem o projecto de animação cultural, um processo de desertificação no período posterior ao encerramento do banco semelhante ao que ocorre na Baixa pombalina.
Entretanto, se o mecenato cultural se tornou, para a generalidade das grandes empresas, um processo de adquirir um renovado prestígio através da ideia de uma espécie de retorno de benefícios, a animação do edifício, em especial na sua fachada volta ao Arco do Cego, corresponde também a uma contrapartida oferecida aos moradores das áreas limítrofes, depois de anos de perturbação causado pelo mastodôntico estaleiro da Caixa.
Mas as atribuições da Culturgest voltam-se ainda para o aproveitamento de algumas das potencialidades do edifício na perspectiva da sua rentabilização (congressos, reuniões, etc), actuando como «interface» entre o público e os equipamentos que se integram na estrutura da Caixa. É o caso da biblioteca da CGD, que, além da sua componente mais técnica e especializada, dedicada à economia, finanças e direito, desenvolverá uma nova vertente com criação de um Centro de Documentação Europeia, em colaboração com o Centro Jean Monet, com acesso a bases de dados internacionais. Paralelamente, outro polo reunirá documentação especializada no domínio das artes plásticas, em articulação com a própria colecção de arte da Caixa, e também no campo das artes do espectáculo.

EM TERMOS de estrutura interna, a Culturgest é uma empresa muito leve, que conta apenas com o núcleo formado pela administração, um assessor artístico, António Pinto Ribeiro, e um director técnico, Eugénio Sena, mais um secretariado de duas pessoas. Não terá estruturas artísticas residentes e, em termos práticos, irá socorrer-se da contratação temporária de serviços especializados, embora conte com a disponibilidade das equipas técnicas que pertencem aos quadros da própria CGD.
Entretanto, a natureza própria dos seus «serviços» levou a Culturgest a constituir um Conselho Consultivo, que já reuniu no dia 15 para apreciar a programação prevista e os princípios gerais que enformam o seu plano de actividades. Actualmente preenchido por 12 elementos, num total previsto de 15, o Conselho elegeu, nessa primeira reunião, Rui Vilar como seu presidente e Rui Machete (FLAD) e Yvette K. Centeno como vice-presidentes, sendo os restantes titulares Eduardo Lourenço, António Barreto, João Marques Pinto (presidente da Fundação de Serralves), Isabel Silveira Godinho, Ruy Vieira Nery, Gerard Castello Lopes, Paulo Lowndes Marques, José Mariano Gago e Manuel Pinto Barbosa. Sem poderes vinculativos, o Conselho reune duas vezes por ano.

1993 é o ano de abertura da sede da CGD e das actividades culturais da Culturgest, limitado a um trimestre de lançamento. O próximo ano será excessivamente marcado pela dinâmica da capital cultural para se poder considerar exemplar dos propósitos da empresa, justificando-se mesmo alguma preocupação dos seus responsáveis perante os riscos de um previsível excesso de oferta cultural global. É, por isso, só para a temporada de 94/95 que se prevê uma velocidade de cruzeiro e uma exacta caracterização da sua lógica de programação. Entretanto, irá procurar criar um público novo, alargando o público cultural existente, para o que se conta em especial com a população estudantil do eixo Cidade Universitária-Instituto Superior Técnico.
Para o futuro, não se exclui a hipótese de outros espaços culturais, fora de Lisboa, virem a ser incluidos na órbita da Culturgest. Para já, porém, existe uma sede precisa para a sua acção, e uma clara distinção entre os apoios mecenáticos que continuarão a ser da competência da CGD, e são várias vezes superiores ao orçamento da empresa, e o seu próprio plano de actividades. A Culturgest não é uma instituição-mecenas, disponível para distribuir bolsas ou subsidiar projectos alheios.

NÃO É SÓ por se tratar de uma empresa comercial que a Culturgest se quer definir como um projecto original no terreno da cultura. A própria linha de programação adoptada (ver texto de abertura) reveste-se de características inovadoras, e a lógica empresarial que se lhe impõe pretende igualmente reflectir um conhecimento actualizado da realidade internacional das indústrias e dos mercados culturais.
Por um lado, apresenta-se, segundo Fátima Ramos, como «uma empresa privada, que é gerida por princípios estéticos, artísticos e de gosto da sua única responsabilidade». A procura de um perfil próprio entre as instituições culturais passa por um opção resoluta pela actualidade da criação artística e intelectual.
«A área principal de actuação vai basear-se na actualidade e em geral no século XX mas, na medida em que o século XX também já é em grande parte passado, gostávamos de imprimir à nossa programação a perspectiva de um olhar de hoje, e mesmo a marca da leitura que o final do século faz sobre esse passado». Daí até ao projecto de estruturar um programa de reflexão sobre o modo como as artes abordam as angústias do final do século e do milénio vai um pequeno passo que certamente será dado com o «Ciclo Apocalipse».
A programação por ciclos temáticos, e não como soma de acontecimentos desconexos ou avulsos, é, aliás, uma das regras da casa. Inscritos na programação anunciada estão já os ciclos «Multiculturalismo e novas mestiçagens», em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos, «Mediterrâneos», «Dança do século XX», «La Liseuse» (leituras públicas). «A interdisciplinaridade, o multiculturalismo e o diálogo entre o 'antigo' e o 'novo'. o reportório e o experimentalismo deverão favorecer tensões criativas que contribuirão para uma programação atraente e coerente» — pode ler-se num documento interno.
Por outro lado, a intervenção cultural da empresa pretende expressamente apoiar os artistas portugueses e favorecer o seu acesso às redes da circulação internacional de exposições e espectáculos. Com a reserva das suas limitadas possibilidades de intervenção: «Não queremos sobrepor-nos nem às outras instituições que já existem ou estão a ser criadas, nem entrar em competição com elas, tal como não pretendemos substituir-nos ao que são as obrigações das instituições estatais em matéria de cultura», dizem os administradores.
No entanto, Manuel José Vaz e Fátima Ramos definem como seus objectivos «tentar impulsionar a criação e fazer a melhor divulgação que pudermos das obras dos criadores portugueses, ao mesmo tempo que se apresentarão produtos estrangeiros de boa qualidade». Para além das fórmulas abstractas, trata-se de valorizar a noção de rede e de a traduzir pela prática constante da co-produção, entrando desde o início nos circuitos internacionais: uma estreia não deve esgortar-se na sua apresentação isolada, deve circular; a vinda de uma exposição ou de um espectáculo a Portugal é mais útil e mais económica se ela (ou ele) percorrer um itinerário de várias cidades — e a intervenção cultural é mais sólida, e menos passiva, se for possível participar desde o início na definição do seu programa; melhor ainda se a encomenda feita lá fora tiver as contrapartidas de um processo de trocas.
Segundo princípios já correntes de gestão cultural, mas que são raros em Portugal, trata-se de pensar a programação, desde o início, de parceria com outras instituições, assegurando uma maior divulgação, diminuindo os custos e estabelecendo mecanismos de circulação capazes de assegurar que a importação de criações estrangeiras possa ter a contrapartida da apresentação de autores portugueses no exterior.
Mas será preciso encontrar parceiros em locais exteriores à sede lisboeta, e a realidade nacional não é imediatamente favorável: por toda a parte espera-se acolher espectáculos oferecidos, limitando os investimento à cedência de uma sala.
«É patente a ausência de um mercado de produção e de distribuição artística em Portugal», lê-se no documento já citado. Aí se adianta que «as razões fundamentais residem na inexistência e ignorância dos mecanismos de produção, ... das regras de comportamento laboral e de mercado entre todos os agentes intervenientes no processo cultural, dos artistas aos programadores, na desorganização e na falta de planeamento de produção e organização de reportórios e criações».

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2. “Cultura sociedade anónima”

(a Culturgest abre a 10 Out.)

A NOVA sede da Caixa Geral de Depósitos, ao Campo Pequeno, não é só o maior edifício comercial em construção na Europa — é também o lugar de implantação de uma experiência de gestão cultural inédita em Portugal. A CGD, que tem mantido, nos últimos anos, uma larga mas discreta acção de mecenato, vai ter a partir de Outubro a sua própria «fachada cultural», inaugurando no seu faraónico palácio do Campo Pequeno, um centro de espectáculos e exposições com programação regular.
Não se trata de mais uma fundação, embora houvesse neste caso (ao contrário do que sucede em S. Carlos ou no Centro Cultural de Belém) uma rectaguarda financeira sólida assegurada pelo maior banco português. Para gerir aquela programação e os seus espaços próprios, e rentabilizá-los também através da organização de congressos e da venda de serviços, Rui Vilar criou uma empresa, a Culturgest — Gestão de Espaços Culturais, Sociedade Anónima. Os seus capitais pertencem em 90 por cento ao Grupo Caixa (CGD e a sua holding) e os dez por centos restantes são investidos pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. É uma lógica empresarial, mesmo que inevitavelmente sem resultados lucrativos, que presidirá às suas actividades.
Na respectiva administração encontram-se Manuel José Vaz, engenheiro com uma longa ligação ao S. Carlos (fundador do seu grupo de Amigos e durante três anos membro do conselho de administração, declarando-se, em 1991, indisponível para novo mandato), Fátima Ramos (ex-funcionária superior dos quadros da SEC, vice-comissária geral da Europália 91 e, mais recentemente, chefe de Gabinete de Teresa Gouveia na Secretaria de Estado do Ambiente), e ainda Luís Santos Ferro, em representação da FLAD.

É SÓ A 10 ou 11 de Outubro que se abrirão as portas da CGD/Culturgest, com um concerto inaugural e duas exposições simultâneas: a apresentação das obras de arte da colecção da própria Caixa e da grande mostra de fotografia que comemorou os 50 anos da agência Magnum e se encontra em digressão mundial desde 1989 (passou pela Hayward Gallery de Londres, Folkwang Museum de Essen, Stedelijk Museum de Amsterdão, Pallazo delle Expozioni de Roma, Museo Alinari de Florença, Palais de Tokyo de Paris, e está desde a passada segunda-feira no Centro Reina Sofia de Madrid, para citar apenas alguns pontos da viagem da sua «edição» europeia). As 300 fotografias da Magnum, «In Our Time» no seu título inglês, são uma indicação bastante do «fôlego» imprimido a uma programação que corresponde, de facto, à abertura de um novo polo cultural na capital.

Quanto à colecção de arte, mostrada apenas uma vez, em 1989, em instalações do Ministério das Finanças, ela foi entretanto sujeita ao reexame da sua representatividade, confiado a Fernando Calhau, iniciando-se depois um novo programa de aquisições. A colecção surgirá, portanto, já redefinida e ampliada.
Para Dezembro, continuando no capítulo das exposições, a programação promete uma mostra de 22 jovens artistas portugueses seleccionados por Fernando Pernes, «Imagens dos anos 90», em co-produção com a Fundação de Serralves e com passagem também por Chaves, e «Cem aguarelas de Egon Schiele», mostra com origem na colecção Sabasky, de Nova Iorque, organizada para celebrar o centenário do nascimento do grande pintor vienense (1890-1918).

Depois, anuncia-se um panorama da arte belga, «Resistências poéticas», também em colaboração com Serralves; «Máquinas de Cena», com cenários e adereços do grupo de teatro O Bando; uma mostra subordinada ao tema «Arte e dinheiro», paralela a um colóquio organizado no âmbito de Lisboa 94 e comissariada por Alexandre Melo, e, por fim, «Paraísos e outras histórias», novas séries ainda inéditas de pinturas de Júlio Pomar, também no quadro da programação da Capital Cultural.

A MÚSICA, a dança e o teatro serão outras áreas de programação regular, dispondo a sede da Caixa de um Grande Auditório com 700 lugares, plenamente equipado e com fosso de orquestra para 40 músicos, e de um outro mais pequeno com 150 lugares, vocacionado para conferências e espectáculos de cunho experimental. Entretanto, tal como no capítulo das exposições, também na programação da área dos espectáculos há duas constantes que podem ser sublinhadas: a programação a longo prazo (o que é raríssimo nas instituições nacionais) e a opção pelas co-produções, com abertura às circulações nacionais e internacionais (ver texto ao lado).
Significativamente, o segundo concerto previsto será de jazz, com a Big Band do Hot Club e um solista de renome, ficando assim provada desde logo a intenção de não restringir a agenda musical às áreas eruditas, mesmo que não se preveja a concorrência com os empresários do rock. O jazz, aliás, dará lugar imediatamente a um mini-ciclo dedicado à música americana, das raízes autênticas dos espirituais, do gospel ou do dixieland, aos grandes êxitos de Gershwin, Cole Porter, etc, segundo um programa da responsabilidade de Gary Gibbs, que é o animador cultural da Ópera de Houston. Mas os grandes acontecimentos do próximo ano serão a colaboração com a Capital Cultural num «Ciclo de Integrais» (32 concertos, de Janeiro a Novembro, sucessivamente dedicados aos quartetos e quintetos de Beethoven, Mozart, Bartok ou da Segunda Escola de Viena e ainda a obras solísticas de Schubert, Ravel e Bach) e, por outro lado, a divisão com a Fundação Gulbenkian da responsabilidade pelos Encontros de Música Contemporânea, em Maio.
Outros acontecimentos, reduzindo sempre o calendário aos grandes títulos, serão a apresentação em Maio da ópera Orfeu, de Walter Hus, encenada por Jan Lawers e que fez parte do Festival de Ópera Contemporâna de Antuérpia 93; um recital de obras de Rachmaninov por Sequeira Costa, por ocasião do lançamento de um disco gravado com a Royal Philarmonic Orchestra, patrocinado pela CGD, já em Novembro; e, em Outubro de 94, o acolhimento de um Concurso Internacional de Clarinete organizado pela RDP.

MAS a dança terá também um lugar destacado na programação do primeiro ano da Culturgest, a que não é alheia a presença de António Pinto Ribeiro como assessor artístico. Anuncia-se já a estreia mundial de uma coreografia de Vera Mantero (Sob) que inaugura um ciclo intitulado «Mediterrâneos» e irá depois encerrar a programação de dança de Antuérpia 93, numa co-produção com Tejo Trust e Ferme de Buisson. Depois, num outro ciclo dedicado à Dança do Séc. XX, seguir-se-ão espectáculos de solos em homenagem a Isadora Duncan, por Margarida Bettencourt, Miguel Pereira e Allison Green, sob o título genérico Atiro uma flecha pelo ar; mais tarde, um espectáculo de Meg Stuart, No longer ready made, numa alargada co-produção da Culturgest com os festivais de Klapstuk, Springdance, etc; uma Homenagem aos Ballets Russes, pela Companhia de Angelin Preljocaj; uma nova criação de Joana Providência com uma bailarina de Cabo Verde, a integrar num ciclo denominado «Novas mestiçagens»; Corol.la, de Angels Margarit; e, a encerrar o ano, a comemoração do centenário do nascimento de Martha Graham, ainda em coprodução com Lisboa 94.
Passando ao teatro, que terá menor expressão no primeiro ano devido à longa preparação de que necessita, alinhem-se os espectáculos Songo la Rencontre, de Vincent Mombachaka, com encenação de Richard Demarcy e actores da República Centro-Africana (ciclo «Multiculturalismo»); Miscelânia de Garcia de Resende, a encenar por Rogério de Carvalho e com vídeos de Daniel Blaufuks (em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos e no quadro do VI centenário do Infante D. Henrique); um ciclo de três encenações sucessivas da peça de Pirandello Esta Noite Improvisa-se, por Fernando Mora Ramos, Isabel Câmara Pestana e João Brites, em colaboração com Lisboa 94; e ainda «As Novas Marionetas», com o apoio do Théâtre de Marionettes de Paris.
Para além dos «workshops», ateliers de experimentação e colóquios, que acompanharão, por regra, a actividade da Culturgest, deve ainda destacar-se um programa original de leituras em voz alta, com debate final sobre os textos — nomes anunciados desde já são os de José Alberto de Carvalho, Eduardo Prado Coelho, Helena Amaral, Paulo Ferreira de Castro, Isabel Matos Dias, como leitores, e Musil, Joyce, Gertrude Stein, Adorno e Merleau-Ponty. O título geral será «La Liseuse».

3

"Eficácia empresarial", entrevista  de Rui Vilar


Rui Vilar é o mentor do novo projecto cultural da Caixa, mas é ele próprio quem sublinha a independência empresarial e programática dos responsáveis pela Culturgest. As suas respostas a um questionário escrito definem, no seu medido laconismo, o quadro global em que se moverá «este novo tipo de gestão cultural», com a «preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial».

EXPRESSO — Com a inauguração da nova sede, a CGD vai alterar o modo como anteriormente praticou o mecenato cultural, constituindo-se como um dos polos culturais de Lisboa?
RUI VILAR — Não. A CGD não vai alterar no essencial a sua prática de mecenato cultural. Vai, outrossim, complementá-la com outras actividades artísticas e culturais cuja programação será da exclusiva responsabilidade da Culturgest.
EXP. — A criação da Culturgest é significativa de um projecto de gestão empresarial da cultura?
R.V. — A Culturgest foi criada como empresa com o objectivo principal de gerir de forma eficaz e planeada os recursos físicos disponibilizados pela CGD. Este novo tipo de gestão cultural pretende beneficiar directamente a cidade, a comunidade no seio da qual o Grupo CGD está implantado, os seus clientes e também, e de certo modo, os empregados do Grupo.
EXP. — Qual é o horizonte financeiro e qual a orientação predominante, em termos culturais, que lhe atribui?
R.V. — A programação das actividades culturais e artísticas da Culturgest é da responsabilidade do seu Conselho de Administração. A Culturgest é dotada de um subsídio anual que corresponderá a uma determinada percentagem da previsão de custos globais para cada ano e será medido em função do contributo efectivo para os objectivos previamente definidos. Segundo as linhas programáticas da Culturgest elaboradas pelo Conselho de Administração e já apreciadas pelo seu Conselho Consultivo, no horizonte imediato, a Culturgest orientar-se-á para uma programação que privilegia a interdisciplinaridade, o multiculturalismo, a criação portuguesa contemporânea e a reflexão em torno das ciências humanas.
EXP. — Como entende as responsabilidades sociais das grandes empresas e instituições bancárias no domínio da cultura?
R.V. — As empresas têm hoje a responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento, em sentido amplo, das comunidades onde estão inseridas. A preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial não é contraditória com as actividades culturais: uma sociedade informada e criativa terá mais capacidade de entender e de realizar as transformações necessárias, designadamente no campo económico. Mas, como é também evidente, esta acção das empresas não desresponsabiliza, nem se substitui, ao Estado, aos demais agentes culturais, criadores e público.


1993

26 Jun.  pp. 68-71, “Cultura sociedade anónima” (Culturgest abre a 10 Out). / “Entrar nos circuitos”, entr, c/ Manuel José Vaz e Fátima Ramos / Eficácia empresarial, ent. C/ Rui Vilar  (I)

9 out 93 "A modéstia do gigante" (a colecção de Fernando Calhau) - (II)

Colecção da CGD Arte Moderna em Portugal: "Contemporâneos” - 16 out , 6 e 13 nov. notas

(abertura) exp. Magnum 50 Anos, «Janela aberta» 16 Outubro - notas  23 e 30 out

24 Dez. “Schiele, o maldito”, p. 13

Imagens para os anos 90 (dd Serralves): INAUG. 6 dez. - nota 18 dez.


A COLECÇÃO DE FERNANDO CALHAU: "A modéstia do gigante" (uma colecção de tendência) - II

 CULTURGEST 1994 / 96 - ARTISTAS BELGAS, 

GONZALEZ 

COBRA, 

WESSELMANN

NAM JUNE PAIK

CULTURGEST 1995: MODIGLIANI e ENCONTROS AFRICANOS