sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Kerry James Marshall: The Histories, em Londres até 18 jan.


Kerry James Marshall: The Histories


20 September 2025 - 18 January 2026

Main Galleries | Burlington House 

This autumn, experience the epic style of America's most important artist, Kerry James Marshall, whose powerful paintings place the lives of Black Americans front and centre. 

Internationally acclaimed artist Kerry James Marshall is one of the most important painters working right now.

His vivid and mostly large-scale paintings place the Black figure front and centre. Marshall builds upon the Western tradition of history painting and makes visible those people who were so noticeably absent in the works that came before him.

These powerful paintings are full of references which span art history, civil rights, comics, science fiction, his own memories and more. He uses these to comment on the past, celebrate everyday life and imagine more optimistic futures.

This exhibition of his paintings will be the largest outside of the US, and the first chance for many to experience his works in the UK.

See 70 works including his monumental commission from the City of Chicago Public Art Program and the Chicago Public Library, Legler Regional Library, Knowledge and Wonder(1995), which has never been loaned before.

Exhibition organised by the Royal Academy of Arts, London in collaboration with the Kunsthaus Zurich and the Musée d'Art Moderne, Paris.

Download our large print guide.

Introduction to Exhibition

Kerry James Marshall (b. 1955, Birmingham, Alabama), is celebrated for his figurative paintings that “unapologetically” centre Black people. This exhibition highlights eleven distinct cycles of his work, the earliest dating back forty-five years, and the most recent premiering here. 

Marshall’s practice is grounded in a deep engagement with the histories of art. He reimagines and transforms the conventions and genres of Western painting, from portraiture and landscape to history painting, a genre that was first concerned with Biblical and mythical narratives, and has been used to depict contemporary political events. 

He also draws from the art of Africa and its diasporas, for instance Kongo ‘nkisi nkondi’ “power figures’”, and Haitian Voodoo ‘veves’ – drawings used to invoke spirits. 

For Marshall, it is important that an artist knows the histories of art in detail in order to contribute to them in powerful, meaningful and original ways. Many of the works in this exhibition address moments in Black history from the Middle Passage and slave rebellions to the Civil Rights and Black Power movements which formed a backdrop to Marshall’s childhood. 

Recently, challenging romantic representations of a past in Africa, his paintings have confronted difficult historical subjects that others prefer to avoid. In the late 1940s and 1950s, popular American artists were championed or their expressive and intuitive paintings. Marshall, by contrast, gravitated towards a more rational approach to picture making, planning his compositions meticulously, every element carefully orchestrated. 

At a time when art was often expected to provide quick meanings, is multilayered works insist on complexity, raising more questions than they resolve.


Madrid, Reina Sofia ew Barcelona, 2014


Dois grandes pintores norte-americanos (por sinal, afro-americanos):
Robert Colescott, 1925–2009, e Kerry James Marshall, n. 1955.



George Washington Carver Crossing the Delaware: Page from an American History Textbook, 1975, Robert Colescott, acrylic on canvas, 84 x 108 in., Private collection, Saint Louis.



School of Beauty, School of Culture, 2012, Kerry James Marshall, acrylic and glitter on unstretched canvas, 108 x 158 in., Birmingham Museum of Art, Museum purchase with funds provided by Elizabeth (Bibby) Smith, the Collectors Circle for Contemporary Art, Jane Comer, the Sankofa Society, and general acquisition funds.
(Claro que o breviário formalista tardo-Greenberg do bando Foster-Krauss-Bois-Buchloch nem os refere - não são pinturas planas d'après Greenberg)

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

João Francisco, "Paredes de Papel" em Torres Vedras, "um jardim"

 Entretanto ficou atrasada a referência à exposição do João Francisco em Torres Vedras na Fábrica das Histórias - Casa Jaime Umbelino: "Paredes Pintadas", com duas instalações em diferentes salas.

Aqui, "Sem título - um jardim", 2025, tinta acrílica sobre papel, a ocupar todas as paredes:






"Tendo como ponto de partida os extraordinários papéis pintados na China e exportados para a Europa a partir do séc. XVII, e que ainda sobrevivem em muitos palácios e casas da nobreza, entramos num jardim onde árvores se sucedem, envolvendo a totalidade do espaço. Talvez este jardim, ao contrário das cenas idílicas e auspiciosas presentes nas porcelanas e papéis chineses, seja menos belo ou elegante. Não será certamente menos convidativo à contemplação e à meditação. Talvez seja o jardim que precisamos, ou merecemos, no tempo presente em que vivemos.
João Francisco

Na folha de sala que escreveu (e ele é um pintor erudito e é sempre o seu melhor intérprete - e legível, objectivo e inteligível) aponta para um prato de porcelana chinesa que colocou na outra sala em lugar de destaque:


"Este fantástico e raro prato chinês (em porcelana Kraak e possivelmente do séc. XVII) apresenta na decoração do seu painel central um jardim onde, rodeada por plantas, uma ave pousa numa estranha estrutura, quase uma escultura modernista. Esta "estrutura" representa na realidade, embora com alguma fantasia, uma pedra Gongshi, pedras com formas bizarras que eram apreciadas pelos eruditos chineses pelas suas qualidades estéticas e usadas em exercícios de contemplação e meditação.

O que encontramos na segunda sala é então, à imagem desta deliciosa imagem pintada em porcelana, "um jardim"."


É o que se pode chamar pintura expandida, onde a "imitação" de papel de parede não se repete como padrão, antes se mostra como um jardim contínuo onde árvores e arbustos circundam o espaço sobre uma faixa de terra na qual se acumulam como restos objectos variados, pedras e folhas secas, livros e cartas de jogar, um caderno desenhado, meia caveira animal, uma sapatilha, etc. e também um auto-retrato pintado. Outro encontra-se numa árvore do painel central, entre janelas, acompanhado por retratos que o têm acompanhado em diferentes pinturas (Gauguin é o mais evidente, outros a identificar). 

E nas árvores à volta há flores, fitas coloridas e pássaros pintados, por vezes acompanhados por outros empalhados, juntando peças das suas colecções às que pertenceram ao proprietário da casa, Jaime Umbelino. 

Passando quadro à instalação de pintura, J.F. prossegue com o papel de parede ou "Parede de papel" a exploração que antes passou pela referência à tapeçaria "mille-fleur" (gal. 111 2018) e por outras árvores pintadas (Sintra 2022)



quarta-feira, 1 de outubro de 2025

ex-Typepad agora Wordpress + Blogspot e Academia

 


O blog Typepad desapareceu.
Transferi tudo (?), desde 2006 ou 07, mesmo antes de sair do Expresso, para o Wordpress ( https://alxpomararquivo-enzhl.wordpress.com ) e está mais activo o Blogspot ( https://alxpomar.blogspot.com/ ), onde algumas coisas se repetem e tem um bom índice.

José Veloso de Castro, major; Fotógrafo de Angola 1904-1914 (II)


 É, sem dúvida, um grande fotógrafo, com uma prática diversificada, em cenas de acção e guerra, na observação de nativos e retratos, lugares e cenas de trabalho, com um notável sentido da composição e enquadramento no espaço natural, com um forte interesse sociológico que parece respeitador dos seus modelos, e um gosto pelo auto-rertrato que o identifica como fotógrafo consciente. 

Um grande fotógrafo de ou em Angola, fotógrafo militar e colonial, antes de Elmano Cunha e Costa (1935-1939). Foi editor de séries de postais, revistas e livros, mas certamente não expôs em vida.

Curadoria: Carlos Pedro Reigadas. Impressões de Roberto Santandreu (colaboração da Galeria Arte Periférica)

Tenente Veloso de Castro - 1910
Combate no reconhecimento a Macuvi - 1907


Na Sala Vasco da Gama,  a branco e preto

 
Legenda (?): "Mulheres do Lubango". 1910

Na legenda (?): 'Prisioneiros de guerra' - 1907

Congo - Ribeira do Bende - 1914

 "Actual rei do Congo" - 1914


https://www.belasartes.ulisboa.pt/jose-veloso-de-castro-a-revelacao-de-um-artista/

terça-feira, 30 de setembro de 2025

José Veloso de Castro, major; Fotógrafo de Angola 1904-1914

 O Pedro Reigadas dá a conhecer um grande fotógrafo no Museu Militar: “José Veloso de Castro. A Revelação de um Artista” até 31 de dezembro.

Com muito boas impressões feitas pelo Roberto Santandreu, dimensão de 46x61cm.

As fotografias não eram desconhecidas na área da história militar e colonial (foi também editor de séries de postais), mas surge agora como um excelente fotógrafo, um artista, de facto.
120 fotos são apresentadas no Museu, distribuídas ao longo de 29 (?!) salas do Palácio/Museu e são uma oportunidade para (voltar a) visitá-lo.



Sem querer exagerar, arrisco que por vezes me faz lembrar o Sebastião Salgado.

Veneza 1995: Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes / Jean Clair (I)

 Portugal regressou à Bienal de Veneza em 1995 (depois de uma pausa desde 1988), com Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes, apresentados pelo comissário José Monterroso Teixeira, então director do Centro de Exposições do CCB - ao tempo da SEC de Santana Lopes.

Por essa altura, já Álvaro Siza fora indigitado para projectar um falado pavilhão de Portugal nos Giardini, mas nunca chegou a ser disponibilizado espaço para a construção. Álvaro Siza voltaria a ser "anunciado" em 1997 e em anos seguintes.
Nesse mesmo ano de 1995 chegou a ser convidada Paula Rego, que terá preferido aguardar por uma situação mais sólida e pelo pavilhão de Siza.

Também em 1995 João Fernandes foi o comissário nacional na 1ª Bienal de Joanesburgo.


"Três em Veneza"

Expresso/Cartaz de 03-06-95 - II

Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes

Portugal volta a estar presente na Bienal de Veneza — que se inaugura no próximo dia 11 —, depois de uma ausência que se arrastava desde 1988. A falta de um pavilhão próprio, que numa primeira fase pareceu comprometer ainda a possibilidade da participação nacional, acabou por ser resolvida com o aluguer de uma galeria de exposições situada na Praça de São Marcos, que se manterá aberta durante os dois primeiros meses da Bienal (a decorrer até 10 de Outubro).
Os escultores Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes foram os artistas escolhidos para integrarem a representação portuguesa, de que é comissário José de Monterroso Teixeira, também director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém. Trata-se de uma selecção que merecerá certamente um alargado consenso, uma vez que as obras dos três artistas têm assegurado um notório dinamismo recente da escultura portuguesa e já conquistaram significativos níveis de circulação e reconhecimento internacional. Sabe-se, porém, que numa primeira fase foi ensaiada a hipótese de um convite a Paula Rego — que, aliás, já representou a Grã-Bretanha na Bienal de São Paulo —, acabando os artistas depois escolhidos por terem um papel activo no encontro da referida galeria.

A comparência de Portugal na Bienal de Veneza, que partilha com a Documenta de Kassel (de quatro em quatro anos) a máxima notoriedade entre as grandes manifestações artísticas mundiais, é entendida como uma condição indispensável para assegurar uma plena visibilidade internacional dos artistas portugueses. No entanto, essa participação não ficará condignamente assegurada sem a construção de um pavilhão próprio na área dos Giardini di Castello.

Já em 1994, a SEC convidou Siza Vieira para vir a ser o autor do projecto desse pavilhão, para o qual, no entanto, não está ainda atribuida uma localização precisa, condição prévia para o seu estudo arquitectónico. Será um investimento de grande vulto, cuja hipótese de concretização, ainda algo nebulosa, terá de ser equacionada nos próximos orçamentos do Estado...

Note-se que foi sempre precária a presença portuguesa na Bienal de Veneza, que este ano comemora um século de existência. Depois de participações esporádicas em 1950 e 1960, que colocaram sempre em confronto o regime político anterior com a generalidade dos artistas plásticos, Portugal esteve presente em 1976, 1978, 1980, 1982, 1984 e 1986, podendo dispor nas primeiras edições do Pavilhão Alvar Aalto, libertado pela Finlândia, que decidira juntar-se aos outros países nórdicos.
Para a edição do centenário, a Bienal foi confiada pela primeira vez a um director não italiano, o francês Jean Clair, crítico e director do Museu Picasso. A grande atracção deste ano será a gigantesca exposição, realizada em colaboração com o Palácio Grassi, da Fundação Fiat,  em que Jean Clair que se propõe reexaminar a arte do século XX sob o ângulo da representação do corpo humano.

"Veneza e Joanesburgo: bienais"

Expresso/Cartaz de 18-02-95 - I

Portugal não deverá estar presente na próxima edição da Bienal de Veneza, que se inaugura a 11 de Junho festejando o seu centenário. Depois de uma interrupção de quatro anos da participação nacional, Santana Lopes nomeara no início de 1994 José Monterroso Teixeira, director do Módulo de Exposições do Centro Cultural de Belém, para comissariar a representação deste ano e para desenvolver o projecto de construção de um pavilhão nacional permanente em Veneza.
No entanto, a Bienal acabaria por comunicar «a impossibilidade de conceder espaços expositivos adequados às necessidades de todos os países que não dispõem de pavilhão permanente», segundo os termos da resposta oficial à candidatura portuguesa.
As participações <nos Giardini> ficariam assim reduzidas a 29 países.

Entretanto, terá surgido nos últimos dias uma tentativa de solução de compromisso com os países não admitidos, através da procura de espaços alternativos em colaboração com a Comuna de Veneza, eventualmente nos antigos armazéns de sal, as Zattere, que a Bienal costuma também ocupar. Segundo José Teixeira, «estão a ser desenvolvidos esforços diplomáticos e outros 'lobbings' para acolher as obras de artistas de países sem pavilhão».

Por outro lado, Siza Vieira foi já escolhido para realizar o projecto do pavilhão português na área da Bienal, os Giardini. Aceite o convite, o arquitecto aguarda «a afectação do espaço pelas autoridades venezianas» para iniciar o seu estudo.

#

Enquanto se aguarda uma informação final sobre a ida a Veneza, foi ontem apresentado no Museu do Chiado o projecto da representação nacional na 1ª Bienal Internacional de Joanesburgo, que se inaugura já no dia 28. Por iniciativa do Instituto Português de Museus, a quem compete agora a responsabilidade da divulgação da arte portuguesa, foi nomeado comissário para esta exposição o director das Jornadas de Arte Contemporânea do Porto, João Fernandes, que seleccionou obras de Ana Jotta, Ângela Ferreira, Luís Campos e Roger Meintjes, um sul-africano radicado em Portugal. A representação terá o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto Camões, Fundação Gulbenkian, Banif e Fundação Horácio Roque.

Na África do Sul deverão estar presentes artistas de cerca de 60 países, numa bienal que definiu a sua orientação segundo dois temas: «Alianças voláteis», sobre «as diferenças culturais e a marginalização por motivos de sexo, raça, nacionalismo, religião, etc»; e «Descolonizando as ideias», sobre «a identidade e os efeitos da colonização nas comunidades culturais através do mundo».

#

Em Veneza, por seu turno, o tema «Identidade e Alteridade» presidirá a uma grande exposição retrospectiva sobre a representação do corpo e em especial sobre o retrato ao longo do século XX — desde Degas, Rodin e Thomas Eakins (1895/1905: «a era do positivismo»), até Lucian Freud, Auerbach, Bill Viola, Bruce Nauman, Louise Bourgeois, Helmut Newton, Mapplethorpe, Andres Serrano e outros (1980/1995). O projecto é da autoria do comissário geral da Bienal, que pela primeira vez não é um italiano: Gérard Régnier, director do Museu Picasso e crítico de arte sob o nome de Jean Clair.

Trata-se, certamente, de uma das figuras mais polémicas do universo da arte contemporânea, e a mais odiada desde que publicou em 1983 o livro-manifesto "Considérations sur l'état des beaux-arts. Critique de la modernité" («Les Éssais», Gallimard). Especialista em Duchamp (foi o responsável pela sua retrospectiva que inaugurou o Centro Compidou), comissário de «Viena 1900» e da recente «L'Âme au corps», Jean Clair conseguiu fazer aceitar pela Bienal, por ocasião do seu centenário, o projecto de uma exposição gigantesca de mais de 400 obras, dividida pelo Palazzo Grassi, cedido pela Fiat, e pelo pavilhão central dos Giardini, a qual se substituiu às diversas actividades paralelas incluidas no programa habitual, nomeadamento à secção «Aperto», dedicada a jovens artistas.
A exposição apresenta-se como uma «história da arte do nosso século em oito capítulos», equacionada em relação com os progressos da ciência e com a evolução da noção de identidade pessoal (comemorando os cem anos da introdução do bilhete de identidade) e também social, de classe, de nação e de origem étnica. «A história do rosto humano» e «a fatalidade da anatomia na era da modernidade» são dois subtítulos do projecto, em que colaboraram Hans Belting, Gabriella Belli, Maurizio Calvesi, Gillo Dorfles e Giulio Macchi.
Nas representações nacionais, a Espanha far-se-á representar por Eduardo Arroyo e pelo escultor Andreu Alfaro (Valência, 1927), enquanto Jean Clair também seleccionou López Garcia e Saura. A França (através de Catherine Millet) designou César, que realizará uma obra projectada em 1960; a Grã-Bretanha, o pintor Leon Kossoff; os Estados Unidos, o video-artista Bill Viola; a Grécia, Lucas Samaras, de carreira americana; a Alemanha, Katharina Fritch, Martin Honnert e Thomas Ruff; a Suiça, a dupla Peter Fieschli e David Weiss.
A Bienal, que decorrerá até 15 de Outubro, inclui também uma grande mostra de arquitectura, dirigida por Hans Holein.

sábado, 20 de setembro de 2025

EDUARDO BATARDA, 1998, Retrospectiva no CAM

 Falar de pintura pintando

09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25


No fim da retrospectiva de Eduardo Batarda


«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar», escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta, antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento?

Ao chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal». Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves, censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs, que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito israelita-parisiense.

Por outro lado, é significativo que se considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década («Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras). Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade ou «conhecimento».


Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
 
Outro ponto interessante da mesma introdução assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for». Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas, etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente, apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a pintura.

Existia no primeiro período da obra de Batarda a possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se entender «o discurso pictórico como realidade linguística» (na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para «ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era) sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o quê». 

\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»? Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!»

Entretanto, também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma transcendência para além da representação do real visível ou de uma interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo, manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 - com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado) que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de 1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?).
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu.

Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura» -, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo, diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.

Interior, 1992, 130 x 95 cm


Duas notas

7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira  retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das  circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».

01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.