terça-feira, 26 de janeiro de 1993

1993, 1994, 1995, 1996, Culturgest, Rui Vilar, Fernando Calhau, Colecção CGD, Egon Schiele

 ARQUIVO EXPRESSO: A CRIAÇÃO DA CULTURGEST em 1993 (há 30 ANOS) - I

A criação da Culturgest em 1993

DOSSIER EXPRESSO 26 Jun.1993, pp. 68-71

1 entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos

2. “Cultura sociedade anónima”

3. entrevista  de Rui Vilar

 1.

“Entrar nos circuitos”, entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos

 

«A CULTURGEST é uma empresa privada e comercial que assegura a animação dos espaços culturais da nova sede da CGD», diz o seu principal responsável, Manuel José Vaz. A utilização de tais espaços constituía, inicialmente, um projecto interno à CGD, dirigido para os seus empregados e para actividades de representação ligadas à natureza própria de um banco. Foi Rui Vilar, presidente da CGD, quem, entretanto, resolveu «voltar também para o exterior a utilização do edifício, abrindo-o à cidade e procurando assim suavizar o impacto negativo de uma tão grande concentração de serviços» numa única zona da cidade, decidida de acordo com concepções de gestão que hoje já não são pacíficas.
Abrir a fortaleza a diferentes usos, com novas circulações de público e horários mais flutuantes, implicou algumas alterações na obra e a revisão de condições de segurança. Mas reconheceu-se que o gigantismo da sede veio, de facto, alterar as características ambientais de uma área densamente povoada, sujeitando-a, para além de outros efeitos secundários, a uma nova vocação de serviços e ao peso do fluxo regular dos seus milhares de empregados. Toda a zona sofreria rapidamente, sem o projecto de animação cultural, um processo de desertificação no período posterior ao encerramento do banco semelhante ao que ocorre na Baixa pombalina.
Entretanto, se o mecenato cultural se tornou, para a generalidade das grandes empresas, um processo de adquirir um renovado prestígio através da ideia de uma espécie de retorno de benefícios, a animação do edifício, em especial na sua fachada volta ao Arco do Cego, corresponde também a uma contrapartida oferecida aos moradores das áreas limítrofes, depois de anos de perturbação causado pelo mastodôntico estaleiro da Caixa.
Mas as atribuições da Culturgest voltam-se ainda para o aproveitamento de algumas das potencialidades do edifício na perspectiva da sua rentabilização (congressos, reuniões, etc), actuando como «interface» entre o público e os equipamentos que se integram na estrutura da Caixa. É o caso da biblioteca da CGD, que, além da sua componente mais técnica e especializada, dedicada à economia, finanças e direito, desenvolverá uma nova vertente com criação de um Centro de Documentação Europeia, em colaboração com o Centro Jean Monet, com acesso a bases de dados internacionais. Paralelamente, outro polo reunirá documentação especializada no domínio das artes plásticas, em articulação com a própria colecção de arte da Caixa, e também no campo das artes do espectáculo.

EM TERMOS de estrutura interna, a Culturgest é uma empresa muito leve, que conta apenas com o núcleo formado pela administração, um assessor artístico, António Pinto Ribeiro, e um director técnico, Eugénio Sena, mais um secretariado de duas pessoas. Não terá estruturas artísticas residentes e, em termos práticos, irá socorrer-se da contratação temporária de serviços especializados, embora conte com a disponibilidade das equipas técnicas que pertencem aos quadros da própria CGD.
Entretanto, a natureza própria dos seus «serviços» levou a Culturgest a constituir um Conselho Consultivo, que já reuniu no dia 15 para apreciar a programação prevista e os princípios gerais que enformam o seu plano de actividades. Actualmente preenchido por 12 elementos, num total previsto de 15, o Conselho elegeu, nessa primeira reunião, Rui Vilar como seu presidente e Rui Machete (FLAD) e Yvette K. Centeno como vice-presidentes, sendo os restantes titulares Eduardo Lourenço, António Barreto, João Marques Pinto (presidente da Fundação de Serralves), Isabel Silveira Godinho, Ruy Vieira Nery, Gerard Castello Lopes, Paulo Lowndes Marques, José Mariano Gago e Manuel Pinto Barbosa. Sem poderes vinculativos, o Conselho reune duas vezes por ano.

1993 é o ano de abertura da sede da CGD e das actividades culturais da Culturgest, limitado a um trimestre de lançamento. O próximo ano será excessivamente marcado pela dinâmica da capital cultural para se poder considerar exemplar dos propósitos da empresa, justificando-se mesmo alguma preocupação dos seus responsáveis perante os riscos de um previsível excesso de oferta cultural global. É, por isso, só para a temporada de 94/95 que se prevê uma velocidade de cruzeiro e uma exacta caracterização da sua lógica de programação. Entretanto, irá procurar criar um público novo, alargando o público cultural existente, para o que se conta em especial com a população estudantil do eixo Cidade Universitária-Instituto Superior Técnico.
Para o futuro, não se exclui a hipótese de outros espaços culturais, fora de Lisboa, virem a ser incluidos na órbita da Culturgest. Para já, porém, existe uma sede precisa para a sua acção, e uma clara distinção entre os apoios mecenáticos que continuarão a ser da competência da CGD, e são várias vezes superiores ao orçamento da empresa, e o seu próprio plano de actividades. A Culturgest não é uma instituição-mecenas, disponível para distribuir bolsas ou subsidiar projectos alheios.

NÃO É SÓ por se tratar de uma empresa comercial que a Culturgest se quer definir como um projecto original no terreno da cultura. A própria linha de programação adoptada (ver texto de abertura) reveste-se de características inovadoras, e a lógica empresarial que se lhe impõe pretende igualmente reflectir um conhecimento actualizado da realidade internacional das indústrias e dos mercados culturais.
Por um lado, apresenta-se, segundo Fátima Ramos, como «uma empresa privada, que é gerida por princípios estéticos, artísticos e de gosto da sua única responsabilidade». A procura de um perfil próprio entre as instituições culturais passa por um opção resoluta pela actualidade da criação artística e intelectual.
«A área principal de actuação vai basear-se na actualidade e em geral no século XX mas, na medida em que o século XX também já é em grande parte passado, gostávamos de imprimir à nossa programação a perspectiva de um olhar de hoje, e mesmo a marca da leitura que o final do século faz sobre esse passado». Daí até ao projecto de estruturar um programa de reflexão sobre o modo como as artes abordam as angústias do final do século e do milénio vai um pequeno passo que certamente será dado com o «Ciclo Apocalipse».
A programação por ciclos temáticos, e não como soma de acontecimentos desconexos ou avulsos, é, aliás, uma das regras da casa. Inscritos na programação anunciada estão já os ciclos «Multiculturalismo e novas mestiçagens», em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos, «Mediterrâneos», «Dança do século XX», «La Liseuse» (leituras públicas). «A interdisciplinaridade, o multiculturalismo e o diálogo entre o 'antigo' e o 'novo'. o reportório e o experimentalismo deverão favorecer tensões criativas que contribuirão para uma programação atraente e coerente» — pode ler-se num documento interno.
Por outro lado, a intervenção cultural da empresa pretende expressamente apoiar os artistas portugueses e favorecer o seu acesso às redes da circulação internacional de exposições e espectáculos. Com a reserva das suas limitadas possibilidades de intervenção: «Não queremos sobrepor-nos nem às outras instituições que já existem ou estão a ser criadas, nem entrar em competição com elas, tal como não pretendemos substituir-nos ao que são as obrigações das instituições estatais em matéria de cultura», dizem os administradores.
No entanto, Manuel José Vaz e Fátima Ramos definem como seus objectivos «tentar impulsionar a criação e fazer a melhor divulgação que pudermos das obras dos criadores portugueses, ao mesmo tempo que se apresentarão produtos estrangeiros de boa qualidade». Para além das fórmulas abstractas, trata-se de valorizar a noção de rede e de a traduzir pela prática constante da co-produção, entrando desde o início nos circuitos internacionais: uma estreia não deve esgortar-se na sua apresentação isolada, deve circular; a vinda de uma exposição ou de um espectáculo a Portugal é mais útil e mais económica se ela (ou ele) percorrer um itinerário de várias cidades — e a intervenção cultural é mais sólida, e menos passiva, se for possível participar desde o início na definição do seu programa; melhor ainda se a encomenda feita lá fora tiver as contrapartidas de um processo de trocas.
Segundo princípios já correntes de gestão cultural, mas que são raros em Portugal, trata-se de pensar a programação, desde o início, de parceria com outras instituições, assegurando uma maior divulgação, diminuindo os custos e estabelecendo mecanismos de circulação capazes de assegurar que a importação de criações estrangeiras possa ter a contrapartida da apresentação de autores portugueses no exterior.
Mas será preciso encontrar parceiros em locais exteriores à sede lisboeta, e a realidade nacional não é imediatamente favorável: por toda a parte espera-se acolher espectáculos oferecidos, limitando os investimento à cedência de uma sala.
«É patente a ausência de um mercado de produção e de distribuição artística em Portugal», lê-se no documento já citado. Aí se adianta que «as razões fundamentais residem na inexistência e ignorância dos mecanismos de produção, ... das regras de comportamento laboral e de mercado entre todos os agentes intervenientes no processo cultural, dos artistas aos programadores, na desorganização e na falta de planeamento de produção e organização de reportórios e criações».

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2. “Cultura sociedade anónima”

(a Culturgest abre a 10 Out.)

A NOVA sede da Caixa Geral de Depósitos, ao Campo Pequeno, não é só o maior edifício comercial em construção na Europa — é também o lugar de implantação de uma experiência de gestão cultural inédita em Portugal. A CGD, que tem mantido, nos últimos anos, uma larga mas discreta acção de mecenato, vai ter a partir de Outubro a sua própria «fachada cultural», inaugurando no seu faraónico palácio do Campo Pequeno, um centro de espectáculos e exposições com programação regular.
Não se trata de mais uma fundação, embora houvesse neste caso (ao contrário do que sucede em S. Carlos ou no Centro Cultural de Belém) uma rectaguarda financeira sólida assegurada pelo maior banco português. Para gerir aquela programação e os seus espaços próprios, e rentabilizá-los também através da organização de congressos e da venda de serviços, Rui Vilar criou uma empresa, a Culturgest — Gestão de Espaços Culturais, Sociedade Anónima. Os seus capitais pertencem em 90 por cento ao Grupo Caixa (CGD e a sua holding) e os dez por centos restantes são investidos pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. É uma lógica empresarial, mesmo que inevitavelmente sem resultados lucrativos, que presidirá às suas actividades.
Na respectiva administração encontram-se Manuel José Vaz, engenheiro com uma longa ligação ao S. Carlos (fundador do seu grupo de Amigos e durante três anos membro do conselho de administração, declarando-se, em 1991, indisponível para novo mandato), Fátima Ramos (ex-funcionária superior dos quadros da SEC, vice-comissária geral da Europália 91 e, mais recentemente, chefe de Gabinete de Teresa Gouveia na Secretaria de Estado do Ambiente), e ainda Luís Santos Ferro, em representação da FLAD.

É SÓ A 10 ou 11 de Outubro que se abrirão as portas da CGD/Culturgest, com um concerto inaugural e duas exposições simultâneas: a apresentação das obras de arte da colecção da própria Caixa e da grande mostra de fotografia que comemorou os 50 anos da agência Magnum e se encontra em digressão mundial desde 1989 (passou pela Hayward Gallery de Londres, Folkwang Museum de Essen, Stedelijk Museum de Amsterdão, Pallazo delle Expozioni de Roma, Museo Alinari de Florença, Palais de Tokyo de Paris, e está desde a passada segunda-feira no Centro Reina Sofia de Madrid, para citar apenas alguns pontos da viagem da sua «edição» europeia). As 300 fotografias da Magnum, «In Our Time» no seu título inglês, são uma indicação bastante do «fôlego» imprimido a uma programação que corresponde, de facto, à abertura de um novo polo cultural na capital.

Quanto à colecção de arte, mostrada apenas uma vez, em 1989, em instalações do Ministério das Finanças, ela foi entretanto sujeita ao reexame da sua representatividade, confiado a Fernando Calhau, iniciando-se depois um novo programa de aquisições. A colecção surgirá, portanto, já redefinida e ampliada.
Para Dezembro, continuando no capítulo das exposições, a programação promete uma mostra de 22 jovens artistas portugueses seleccionados por Fernando Pernes, «Imagens dos anos 90», em co-produção com a Fundação de Serralves e com passagem também por Chaves, e «Cem aguarelas de Egon Schiele», mostra com origem na colecção Sabasky, de Nova Iorque, organizada para celebrar o centenário do nascimento do grande pintor vienense (1890-1918).

Depois, anuncia-se um panorama da arte belga, «Resistências poéticas», também em colaboração com Serralves; «Máquinas de Cena», com cenários e adereços do grupo de teatro O Bando; uma mostra subordinada ao tema «Arte e dinheiro», paralela a um colóquio organizado no âmbito de Lisboa 94 e comissariada por Alexandre Melo, e, por fim, «Paraísos e outras histórias», novas séries ainda inéditas de pinturas de Júlio Pomar, também no quadro da programação da Capital Cultural.

A MÚSICA, a dança e o teatro serão outras áreas de programação regular, dispondo a sede da Caixa de um Grande Auditório com 700 lugares, plenamente equipado e com fosso de orquestra para 40 músicos, e de um outro mais pequeno com 150 lugares, vocacionado para conferências e espectáculos de cunho experimental. Entretanto, tal como no capítulo das exposições, também na programação da área dos espectáculos há duas constantes que podem ser sublinhadas: a programação a longo prazo (o que é raríssimo nas instituições nacionais) e a opção pelas co-produções, com abertura às circulações nacionais e internacionais (ver texto ao lado).
Significativamente, o segundo concerto previsto será de jazz, com a Big Band do Hot Club e um solista de renome, ficando assim provada desde logo a intenção de não restringir a agenda musical às áreas eruditas, mesmo que não se preveja a concorrência com os empresários do rock. O jazz, aliás, dará lugar imediatamente a um mini-ciclo dedicado à música americana, das raízes autênticas dos espirituais, do gospel ou do dixieland, aos grandes êxitos de Gershwin, Cole Porter, etc, segundo um programa da responsabilidade de Gary Gibbs, que é o animador cultural da Ópera de Houston. Mas os grandes acontecimentos do próximo ano serão a colaboração com a Capital Cultural num «Ciclo de Integrais» (32 concertos, de Janeiro a Novembro, sucessivamente dedicados aos quartetos e quintetos de Beethoven, Mozart, Bartok ou da Segunda Escola de Viena e ainda a obras solísticas de Schubert, Ravel e Bach) e, por outro lado, a divisão com a Fundação Gulbenkian da responsabilidade pelos Encontros de Música Contemporânea, em Maio.
Outros acontecimentos, reduzindo sempre o calendário aos grandes títulos, serão a apresentação em Maio da ópera Orfeu, de Walter Hus, encenada por Jan Lawers e que fez parte do Festival de Ópera Contemporâna de Antuérpia 93; um recital de obras de Rachmaninov por Sequeira Costa, por ocasião do lançamento de um disco gravado com a Royal Philarmonic Orchestra, patrocinado pela CGD, já em Novembro; e, em Outubro de 94, o acolhimento de um Concurso Internacional de Clarinete organizado pela RDP.

MAS a dança terá também um lugar destacado na programação do primeiro ano da Culturgest, a que não é alheia a presença de António Pinto Ribeiro como assessor artístico. Anuncia-se já a estreia mundial de uma coreografia de Vera Mantero (Sob) que inaugura um ciclo intitulado «Mediterrâneos» e irá depois encerrar a programação de dança de Antuérpia 93, numa co-produção com Tejo Trust e Ferme de Buisson. Depois, num outro ciclo dedicado à Dança do Séc. XX, seguir-se-ão espectáculos de solos em homenagem a Isadora Duncan, por Margarida Bettencourt, Miguel Pereira e Allison Green, sob o título genérico Atiro uma flecha pelo ar; mais tarde, um espectáculo de Meg Stuart, No longer ready made, numa alargada co-produção da Culturgest com os festivais de Klapstuk, Springdance, etc; uma Homenagem aos Ballets Russes, pela Companhia de Angelin Preljocaj; uma nova criação de Joana Providência com uma bailarina de Cabo Verde, a integrar num ciclo denominado «Novas mestiçagens»; Corol.la, de Angels Margarit; e, a encerrar o ano, a comemoração do centenário do nascimento de Martha Graham, ainda em coprodução com Lisboa 94.
Passando ao teatro, que terá menor expressão no primeiro ano devido à longa preparação de que necessita, alinhem-se os espectáculos Songo la Rencontre, de Vincent Mombachaka, com encenação de Richard Demarcy e actores da República Centro-Africana (ciclo «Multiculturalismo»); Miscelânia de Garcia de Resende, a encenar por Rogério de Carvalho e com vídeos de Daniel Blaufuks (em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos e no quadro do VI centenário do Infante D. Henrique); um ciclo de três encenações sucessivas da peça de Pirandello Esta Noite Improvisa-se, por Fernando Mora Ramos, Isabel Câmara Pestana e João Brites, em colaboração com Lisboa 94; e ainda «As Novas Marionetas», com o apoio do Théâtre de Marionettes de Paris.
Para além dos «workshops», ateliers de experimentação e colóquios, que acompanharão, por regra, a actividade da Culturgest, deve ainda destacar-se um programa original de leituras em voz alta, com debate final sobre os textos — nomes anunciados desde já são os de José Alberto de Carvalho, Eduardo Prado Coelho, Helena Amaral, Paulo Ferreira de Castro, Isabel Matos Dias, como leitores, e Musil, Joyce, Gertrude Stein, Adorno e Merleau-Ponty. O título geral será «La Liseuse».

3

"Eficácia empresarial", entrevista  de Rui Vilar


Rui Vilar é o mentor do novo projecto cultural da Caixa, mas é ele próprio quem sublinha a independência empresarial e programática dos responsáveis pela Culturgest. As suas respostas a um questionário escrito definem, no seu medido laconismo, o quadro global em que se moverá «este novo tipo de gestão cultural», com a «preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial».

EXPRESSO — Com a inauguração da nova sede, a CGD vai alterar o modo como anteriormente praticou o mecenato cultural, constituindo-se como um dos polos culturais de Lisboa?
RUI VILAR — Não. A CGD não vai alterar no essencial a sua prática de mecenato cultural. Vai, outrossim, complementá-la com outras actividades artísticas e culturais cuja programação será da exclusiva responsabilidade da Culturgest.
EXP. — A criação da Culturgest é significativa de um projecto de gestão empresarial da cultura?
R.V. — A Culturgest foi criada como empresa com o objectivo principal de gerir de forma eficaz e planeada os recursos físicos disponibilizados pela CGD. Este novo tipo de gestão cultural pretende beneficiar directamente a cidade, a comunidade no seio da qual o Grupo CGD está implantado, os seus clientes e também, e de certo modo, os empregados do Grupo.
EXP. — Qual é o horizonte financeiro e qual a orientação predominante, em termos culturais, que lhe atribui?
R.V. — A programação das actividades culturais e artísticas da Culturgest é da responsabilidade do seu Conselho de Administração. A Culturgest é dotada de um subsídio anual que corresponderá a uma determinada percentagem da previsão de custos globais para cada ano e será medido em função do contributo efectivo para os objectivos previamente definidos. Segundo as linhas programáticas da Culturgest elaboradas pelo Conselho de Administração e já apreciadas pelo seu Conselho Consultivo, no horizonte imediato, a Culturgest orientar-se-á para uma programação que privilegia a interdisciplinaridade, o multiculturalismo, a criação portuguesa contemporânea e a reflexão em torno das ciências humanas.
EXP. — Como entende as responsabilidades sociais das grandes empresas e instituições bancárias no domínio da cultura?
R.V. — As empresas têm hoje a responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento, em sentido amplo, das comunidades onde estão inseridas. A preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial não é contraditória com as actividades culturais: uma sociedade informada e criativa terá mais capacidade de entender e de realizar as transformações necessárias, designadamente no campo económico. Mas, como é também evidente, esta acção das empresas não desresponsabiliza, nem se substitui, ao Estado, aos demais agentes culturais, criadores e público.


1993

26 Jun.  pp. 68-71, “Cultura sociedade anónima” (Culturgest abre a 10 Out). / “Entrar nos circuitos”, entr, c/ Manuel José Vaz e Fátima Ramos / Eficácia empresarial, ent. C/ Rui Vilar  (I)

9 out 93 "A modéstia do gigante" (a colecção de Fernando Calhau) - (II)

Colecção da CGD Arte Moderna em Portugal: "Contemporâneos” - 16 out , 6 e 13 nov. notas

(abertura) exp. Magnum 50 Anos, «Janela aberta» 16 Outubro - notas  23 e 30 out

24 Dez. “Schiele, o maldito”, p. 13

Imagens para os anos 90 (dd Serralves): INAUG. 6 dez. - nota 18 dez.


A COLECÇÃO DE FERNANDO CALHAU: "A modéstia do gigante" (uma colecção de tendência) - II

 CULTURGEST 1994 / 96 - ARTISTAS BELGAS, 

GONZALEZ 

COBRA, 

WESSELMANN

NAM JUNE PAIK

CULTURGEST 1995: MODIGLIANI e ENCONTROS AFRICANOS

sábado, 26 de setembro de 1992

1992, Europália'91, orçamentos e custos (tropelias da SEC)

 Europália, os custos do sucesso

Expresso Cartaz, Actual, 26 Setembro 1992, pág. 4


HÁ um ano anunciou-se a reedição das exposições da Europália no Convento de Mafra, logo para Janeíro de 92; estava-se em tempo de capitalizar o êxito do festival belga e em vésperas de eleições. «Janeiropália 92»  era o título do «Independente», a traduzir a leviandade com que a SEC anuncia iniciativas que não prevê cumprir e a ignorância geral sobre o estado daquele monumento e sobre as condições de climatização, segurança e cenografia necessárias às exposições. 

Depois, para dar o conveniente verniz cultural ao semestre da presidência portuguesa da Comunidade, repetiram-se algumas das iniciativas da Europália, mas ficaram por concretizar as promessas feitas de mostrar «Os Mecanismos do Génio» no Palácio de Queluz, «O Triunfo do Barroco» no Centro Cultural de Belém, «Manufacturas» na Cadeia da Relação, no Porto, ou «Tríptico» na Central Tejo. Nestes três últimos casos, tais anúncios eram tão irrealistas como a ideia anterior do Convento de Mafra. 

Note-se, a propósito, que a remontagem das exposições só foi possível graças à promoção de Simoneta Luz Afonso ao lugar de directora do novo Instituto Português dos Museus, uma vez que nenhum mecanismo fora previamente activado para prever a circulação das iniciativas da Europália após o termo do mandato do seu Comissariado. Várias solicitações estrangeiras não tiveram resposta, e só a exposição sobre a arte medieval se deslocou a Madrid. 

Mais recentemente, após a entrega do relatório final do Comissariado da Europália, a SEC esteve na origem de outras notícias sobre o festival, de cariz menos triunfalista. O «Independente» voltou a usar um título imaginativo: «Europálida». O «Público» falou de «Um triste fim de festival», assegurando que Santana Lopes não quer pagar as dívidas da Europália. Em causa estará o esgotamento das verbas do Fundo de Fomento Cultural (que são, entretanto, o tema do mais recente folhetim editado pela SEC) e também uma reacção à transparência e ao estilo frontal usados no relatório do Comissariado.

Nesse documento, a que o Expresso teve acesso, Rui Vilar e a sua equipa esclarecem, pela primeira vez, o difícil contexto administrativo em que a operação Europália foi montada, e não se coíbem de referir, «para além dos constrangimentos financeiros, (...) inúmeras dificuldades e incompreensões» que respeitam, em grande parte, à própria SEC. 


Os ditos constrangimentos iniciaram-se logo em 1989, quando o primeiro orçamento proposto se reduziu de 50.070 contos para 25 mil contos, provenientes do FFC. Em 1990, o projecto de Orçamento Geral do Estado deveria ter incluído a verba de 400 mil contos, mas a saída do Governo de Miguel Cadilhe e Teresa Gouveia acabou por gorar essa previsão; foi então atribuído apenas um subsídio de 150 mil contos, pago, parcelarmente, através do FFC. Entretanto, a emissão de uma moeda comemorativa também não se concretizou. 

Foi só em 1991, o ano do próprio festival, que a Europália ficou incluída no OGE, com uma verba de 520.280 contos, acrescida de uma dotação provisional de cem mil contos. Quanto a 1992, a proposta de orçamento do Comissariado era de 330 mil contos, dos quais foram, num primeiro momento, assegurados apenas 240 mil, acabando por serem autorizados apenas 200 mil contos, com a garantia de transferência do saldo final para o FFC. 


No relatório final, assinala-se a gravidade do desajustamento temporal e quantitativo entre as sucessivas fontes de receita e os programas aprovados pelo Governo e negociados com a Fundação Europália Internacional. «Para além dos cortes sucessivos», aponta-se a falta de disponibilidade orçamental durante quase metade do ano de 1990, o excessivo parcelamento na entrega dos subsídios por parte do FFC e, em especial, «o incumprimento de obrigações assumidas por parte de algumas instituições». Referindo a importância do apoio mecenático, em dinheiro (267 mil contos) e em espécies (atingindo um valor total de 402 mil contos, cerca de 30 por cento dos custos totais da realização do festival), o Comíssariado precisa que «nem sempre encontrou a compreensão e suficiente disponibilidade financeira junto da Administração Pública». 

O Instituto Português do Património Cultural (IPPC) é particularmente visado pela falta de cumprimento de um acordo que garantia o restauro das peças pertencentes às colecções do Estado, daí resultando custos superiores a 66 mil contos. Mas o relatório, neste ponto, é um testemunho essencial sobre a situação do então IPPC e sobre o Instituto José de Figueiredo, e vale a pena citá-lo largamente: «Quase mais importante do que a despesa foi o facto de o Comissariado ter tido de assumir as tarefas relativas à compra de todos os materiais (desde a cera, o álcool e os pincéis até aos produtos mais sofisticados e especializados), às ajudas de custo, às deslocações, à segurança das instalações, às horas extraordinárias do pessoal, às tarefas suplementares, ao registo fotográfico dos vários estádios do restauro das peças, e até à compra de equipamento (ar condicionado, balanças, unidades de desacidificação, jactos abrasivos, humidificadores, prensas, etc.) e às reparações de base nas instalações (esgotos, eanalízações).» A Europália pagou ainda a deslocação, a estadia e os honorários a restauradores estrangeiros que vieram efectuar trabalhos na Biblioteca Nacional, no Instituto José de Figueiredo e no Museu Nacional de Arte Antiga. Q custo totaI elevou-se a 66 mil contos, referente a obras das colecções do Estado, num montante global para restauros de mais de 91 mil contos. 


Outra problema do Comissariado correspondeu à falta de material fotográfico de qualidade, no caso das colecções públicas e nomeadamente das peças apresentadas na XVII Exposição do Conselho da Europa (Lisboa 1983). Os encargos com o trabalho do pessoal do Arquivo Nacional de Fotografia (deslocações, honorários, horas extraordinárias, compra de película e trabalho laboratorial) foram assumidos pela Europália, e os custos globais da operação ultrapassaram os 54 mil contos, ficando cópia de todas as fotografias nas instituições emprestadoras e no referido Arquivo. 


Em embalagens adequadas ao transporte de obras de arte, também inexistentes nas instituições oficiais, a Europália despendeu 67.443 contos, revertendo os materiais adquiridos para as entidades emprestadoras. Só em serviços de escolta e guardaria pagos à PSP e à GNR foram orçamentados 23.660 contos, sem se terem obtido quaisquer reduções de tarifas, que seriam naturais para uma iniciativa oficial. 54.500 contos foi, ainda, o montante somado do IVA e do imposto de selo devidos pelo Comissariado. 

Os responsáveis pela Europália admitem no seu relatório que as previsões globais de custos, feitas em 1990, foram ultrapassadas em cerca de 210 mil contos, mas consideram-nos justificados pelas razões já apontadas. E acrescentam, aliás, que o défice é largamente compensado pelos benefícios directos (91.732 contos em restauros, 53.904 contos em fotografias, 60.994 em equipamentos, 67.443 em embalagens, etc.) e pelas mais-valias que resultaram para as instituições, os artistas e os agentes culturais. 


Mesmo tratando-se de um relatório oficial, várias passagens deixam bem transparecer o «clima» em que a Europália foi organizada - e não se deverá esquecer que o seu Comissariado foi uma das raras equipas sobreviventes da gestão de Teresa Gouveia. Quando se escreve «poderia aproveitar-se a receptividade que o festival criou para facilitar a inserção de instituições portuguesas nos circuitos internacionais, tanto como receptoras como fornecedoras de manifestações culturais», está-se certamente a usar, com a segurança dada pelo êxito alcançado, uma forma diplomática para comentar a gestão da herança da Europália e mesmo a situação geral da política cultural. 

sábado, 2 de maio de 1992

1992, A SEC de Santana Lopes "Cultivar o confronto"

 SEC, Cultivar o confronto


Expresso Revista 2 Maio 1992, pp. 72-73



Quando o debate sobre a actual reestruturação da SEC se afastou das questões técnicas e das orientações estratégicas, Santana Lopes pôde voltar a usar a Cultura como mera trincheira política. A sua arma é a falta de memória


“ A SEC JÁ INICIOU o processo de extinção da Direcção-Geral da Acção Cultural, a qual dará lugar ao Instituto de Artes Cénicas e do Bailado (lACB), anunciou hoje o secretário de Estado da Cultura. Segundo Pedro Santana Lopes, o decreto-lei que regulamenta esta medida será aprovado em Conselho de Ministros até ao final de Maio. O secretário de Estado salientou que a extinção da DGAC se faz com o acordo da directora-geral, Maria Manuel Pinto Barbosa, e que o IACB terá maior autonomia administrativa em relação ao Governo, tal como já acontece com o Instituto Português do Cinema. O IACB terá como principal competência a coordenação e aplicação das políticas governamentais nas áreas do teatro e do bailado. 

Sobre as orquestras, Santana Lopes afirmou que no próximo dia 22 apresentará à subcomissão parlamentar de Cultura um plano nacional para a música. Este plano, afirmou, prevê a inclusão da Orquestra do Teatro Nacional de S. Carlos na Régie Sinfonia - que actualmente só funciona no Porto - para além da criação de, pelo menos, quatro orquestras a nível regional, com descentralização de competências para as autarquias. Santana Lopes explicou que pretende a criação de uma rede nacional de orquestras, sublinhando ainda que, a nível económico, o esforço das autarquias será muitíssimo pequeno.» 


Esta notícia é um despacho da agência Lusa, e as declarações de Santana Lopes foram proferidas após uma reunião com alguns actores de teatro que lhe entregaram uma declaração de apoio à política governamental nesta área. Mas passou-se tudo há praticamente um ano (15 de Maio de 1991).

 

Do Instituto de Artes Cénicas e do Bailado não mais se ouviu falar; a Orquestra do TNSC ainda não tem destino (anunciou-se depois que iria para o Centro Cultural de Belém, a seguir desmentiu.se que tal se tivesse anunciado) e a Régie está mais debilitada que nunca; o plano nacional para a música e a rede nacional de orquestras já foram prometidos várias vezes; Maria Manuel Pinto Barbosa demitiu-se no início de Abril e passou para a Capital Cultural de 94; a DGAC está outra vez em extinção - mas afinal, pelo que se conhece da presente reestruturação da SEC, ela esvazia-se das suas competências principais e perde a prevista autonomia fmanceira para se fundir com a Direcção-Geral dos Espectáculos e Direitos de Autor numa única Direcção-Geral dos Espectáculos e das Artes. 

Há um ano, entre outras promessas feitas e muitas declarações de intenções, este anúncio dos projectos de Santana Lopes não merecera especial atenção, porque se sabe como importam pouco as palavras de alguns políticos. Esperou-se pelos factos e conservou-se o despacho para melhor ocasião: para demonstrar como os projectos que se anunciam raramente se cumprem e como as orientações políticas variam ao sabor de oportunidades e desígnios insondáveis. Como a falta de memória é, paradoxalmente, um estilo de fazer cultura. 


Entre o Instituto das Artes Cénicas e do Bailado de 91 e a Direcção-geral inscrita na reestruturação de 92 vai um abismo que só se explicaria se tivesse mudado o titular da SEC. O teatro, o bailado ou a música, tal como as artes plásticas e a fotografia, continuaram, entretanto, sem orientações que caracterizem uma política coerente e coordenada, capaz de assegurar simultaneamente a eficácia mínima das instituições públicas, o apoio regular à criação, a formação de novos públicos consumidores e, em paralelo, a entrada da produção cultural portuguesa nas redes da circulação internacional, correspondendo a um efectivo alargamento da procura externa. 

Mas não é isso que se tem discutido, quando se polemiza sobre a cultura. Santana Lopes conseguiu sempre situar os adversários no terreno da argumentação generalista e do combate político, porque tem com a cultura apenas uma relação de óbvia instrumentalização: gere na SEC uma carreira de político, especialmente interessado no quadro estreito das guerras de tendências, ou de pessoas, do partido do Governo. Sabe que, para isso, tem de colocar a sua Secretaria de Estado nas primeiras páginas e não ignora que a cultura só é manchete no terreiro das confrontações. Sabe também que os frutos dos projectos agora delineados só acabariam por ser colhidos pelos seus sucessores, como lhe sucedeu com a Torre do Tombo e as bibliotecas regionais, com o Centro Cultural de Belém e a Casa das Artes no Porto, com a Europália... 


A  CHAMADA reestruturação da SEC, contida em sete projectos de decretos-leis, foi apresentada pela primeira vez em conselho de secretários de Estado a 24 de Fevereiro, depois de ter sido agendada com pedido de urgência. O seu conteúdo era em geral desconhecido dos próprios titulares dos institutos e direcções-gerais do sector. Tudo se cozinhara no segredo do gabinete de Santana Lopes, com recurso aos seus assessores jurídicos mas de costas voltadas para os técnicos e os responsáveis pelos serviços da SEC (com excepção do cinema, por estar envolvido num processo de coordenação interministerial). 

Se a conveniência de uma reforma da SEC poderia, noutras condições de preparação, ser facilmente reconhecida, o certo é que se optou por transmitir de imediato, em transparentes declarações «off the record», a perspectiva terrorista de despedimentos generalizados: 900 lugares de efectivos a menos, e entre 400 a 500 funcionários a transferir para o quadro de excedentes - sem que se confrontassem sequer os quadros orgânicos anteriores com os seus efectivos reais, em muitos casos largamente deficitários. 

A completar o mapa das operações foi-se conhecendo a intenção de venda do edifício central da SEC na Avenidada da República, sem se saber de qualquer novo destino para os serviços, bem como da cedência das instalações do IPLivro e da Leitura ao Ministério da Defesa, vagamente a troco da Cordoaria, para onde se poderia transferir o lucrativo Museu dos Coches, sacrificando uma ampliação prevista do Museu da Marinha (ou do Mar). Fez-se ainda constar que a reforma dos serviços corresponderia a uma economia de um milhão de contos para o orçamento da SEC e que o prédio referido valeria três milhões: era uma ratoeira economicista para desviar o debate do que estava realmente em jogo. 


ENTRE AS primeiras reacções à divulgação parcial das reformas destacou-se logo a do presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura ao «Jornal de Letras» (3 de Março): «Está-se a fazer da cultura um ignóbil entulho.» Surpreendentemente, Artur Anselmo, dois meses depois, ainda está no seu cargo. É que o seu passado de homem de direita, a sua competência reconhecida como investigador da história do livro e a razão dos seus argumentos tiveram peso junto do primeiro-ministro e conduziram, em paralelo com outras intervenções públicas, à introdução de numerosas e decisivas alterações aos diplomas. 

Quando o presidente do IPLL veio reagir publicamente à prevista integração deste organismo na Biblioteca Nacional, classificou-a como «uma verdadeira monstruosidade». Disse mais: «Não ponho em causa a necessidade de reestruturação da SEC, mas exijo que ela seja (feita) pelos padrões da Europa culta e não dos paises subdesenvolvidos (... ). Não me demito. Estarei no meu posto até ao fim e, enquanto puder, farei tudo o que estiver ao meu alcance para travar este projecto viciado e atrasado (...). A cultura precisa de ser despoluida e discutida, de uma forma alargada, para que se encontrem consensos sobre as principais linhas do seu desenvolvimento.» 

Tornava-se evidente que a reestruturação do IPLL, asfixiando a rede de leitura pública e a política de apoio à edição, se delineara às escondidas do seu presidente (“Nem sequer mereci um telefonema da directora da Biblioteca Nacional»), tal como a extinção da DGAC se fazia sem a concordância da sua responsável, que já se demitira a 21 de Fevereiro, cinco dias depois da entrevista da subsecretária Maria José Nogueira Pinto ao Expresso, onde se definiam pela primeira vez algumas orientações das reformas então ainda desconhecidas. 


A  OPOSIÇÃO aos projectos avolumou-se com a crítica, assente em intervenções autorizadas de José Mattoso, à decisão de extinguir o Instituto Português de Arquivos e de o dissolver na Torre do Tombo (a qual, pelo contrário deveria ser orientado pelo IPA, mas a lei que definiria a política dos arquivos estava por aprovar desde 1990). A expressão pública da preocupação de Mário Soares veio a seguir ajudar a alargar o debate. 

Em Braga, no Congresso de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, o Presidente considerava que, pelo que lera nos jornais, «há fundados motivos para alarme» e defendia a criação de um «movimento de opinião». O subsecretário Sousa Lara proibira entretanto os funcionários dos serviços que tutela de «prestarem quaisquer declarações que não sejam estritamente técnicas, designadamente as que aludam aos processos de revisão das leis orgânicas respectivas»; Artur Anselmo referiu a proibição como «o caso mais lamentável, mais sujo e mais asqueroso» do congresso, disse que «a democracia passa bem sem a censura», defendeu a rede de leitura pública criada pelo seu antecessor, José Afonso Furtado, e confirmou publicamente que não conseguia ser recebido pelos responsáveis máximos da SEC. 


Santana Lopes passou então pelo que terá sido o pior momento do seu mandato (um alto responsável da SEC comparava-o, em privado, a um aflito aprendiz de feiticeiro; porta-vozes de outros ministérios manifestavam, sempre particularmente, a intenção de o deixar «cair»): em conflito com Fernando Nogueira, foi forçado a pedir o adiamento da discussão dos seus projectos no conselho de secretários de Estado, para ter tempo de reestruturar a sua reestruturação e atender a algumas das críticas. Entretanto, o Ministério das Finanças levantava dificuldades a vários dos projectos, inviabilizando a ideia de uma estranha Inspecção Geral da Cultura e limitando a autonomia financeira de alguns organismos. 

«Sei reconhecer os meus erros», veio então dizer Santana Lopes numa entrevista tranquilizadora (“Público» de 15 de Março), aparentemente destinada a recuperar apoios no seu próprio partido. 

A aprovação dos diplomas revistos em Conselho de Ministros verificou-se finalmente a 2 de Abril, depois da adopção de orientações preconizadas por Artur Anselmo, e desde a passada semana que eles se encontram na Presidência da República para a quase inevitável ratificação. 

PARALELAMENTE, o que fora uma contestação técnica à reestruturação e um princípio de debate público sobre as orientações estratégicas da SEC, com intervenções especializadas de, por exemplo, Vitorino Magalhães Godinho, Manuel Villaverde Cabral, Leonor Machado de Sousa e Maria Vitalina Mendes, antigos e actuais directores da BN, tomava-se uma movimentação «frentista», na qual a argumentação concreta se esbatia na teatralização de uma oposição abstracta e na amálgama proporcionada pelo pretexto fácil da extensão do IVA aos livros. 

Entidades reconhecidamente desprestigiadas, como a APE ou a SNBA, outras inexistentes como a ANAP (Associação Nacional dos Artistas Plásticos!), outras abusivamente arroladas, como a Associação Nacional de Municípios, alinhavam em «defesa da cultura» num cortejo onde surgiam como protagonistas figuras que se especializaram em representar tudo o que de mais patético sobrevive na imagem popular do intelectual, como Natália Correia. Autores e artistas situados em áreas de mais vivo dinamismo cultural abstinham-se visivelmente de participar em alianças onde alinhavam sobrevivências corporativas, oportunismos vários e notórias mediocridades. 

Já situado no terreno que mais lhe convém, Santana Lopes podia então dar largas ao seu estilo próprio e recuperar o terreno perdido: desenterra o velho projecto do Congresso da Imaginação, agora dirigido por Ana Salazar, com espectáculos de teatro às seis da manhã, para os noctígavos que saem das discotecas a essa hora, e «drive-in» na praia, segundo comunicou a «O Independente» (será «Salazar ao poder»). Enquanto os subsecretários se dedicavam a acicatar a baixa polémica, o secretário vai ao Porto com uma arregimentada «corte» cultural de funcionários para anunciar com a devida pompa a compra do Teatro S. João, que estava em preparação há vários anos. Depois convida a Assembleia da República a discutir uma reestruturação da SEC, de que só tardiamente se divulgou o efectivo teor, para tentar repetir o êxito alcançado na interpelação comunista de 1991. É toda uma movimentação hábil que lhe deverá permitir recuperar o protagonismo irrequieto capaz de assegurar a sua sobrevivência à frente da SEC, perante o renovar da ameaça de remodelação ministerial no final da presidência da CE. 


DURANTE DOIS anos Santana Lopes destruiu a frágil estrutura técnica da SEC: o historial de demissões do IPPC e do IPLL, dos Teatros de S. Carlos e D. Maria II, do IPA e da Torre do Tombo, dos Museus de Arte Antiga e Contemporânea, entre muitas outras, foi significando a entrada em funções de uma sucessão de funcionários, gestores ou personalidades cada vez mais anónimos, passivos e incompetentes à frente de institutos, direcções gerais, empresas públicas e departamentos. 

O afastamento de um especialista como José Afonso Furtado, responsável pela rede de bibliotecas que Santana Lopes usa agora como prova da seriedade da sua política, foi um dos episódios mais emblemáticos dessa guerra, até por se situar no interior da área do PSD. O silenciamento da anterior subsecretária de Estado Natália Correia Guedes, no precedente Governo, foi um facto nunca esclarecido. Outro episódio, mas de sentido contrário, é a nomeação de Simonetta Luz Afonso para o Instituto Português de Museus (capitalizando o êxito de uma operação Europália conseguido totalmente à revelia da SEC e tantas vezes contra ela), com vista a obviar, com os significativos fundos comunitários entretanto disponíveis, a uma situação geral de catástrofe neste domínio. 

Entretanto, a situação de indefinição programática de entidades semi-autónomas como a Régie Sinfonia, a Fundação de Serralves ou o Centro Cultural de Belém, ou de projectos como a Cadeia da Relação, não é mais que a oscilação permanente entre o arrastar de casos por resolver e o uso de momentâneos estandartes desinseridos de qualquer estratégia globalizante. 

No interior da SEC, a um nível menos público, portanto, o poder de decisão, os meios financeiros e o controle da informação foram-se concentrando cada vez mais no gabinete de Santana Lopes, num processo geral de desarticulação deliberada de estruturas e de asfixia de serviços técnicos conducente à substituição de funcionários especializados por assessores sem especial qualificação para além das boas relações pessoais com o secretário de Estado. Depois de um processo de indefinição de políticas e de paralização interna, a reestruturação era efectivamente necessária, especialmente num IPPC entregue a funcionários menores e nos esvaziados serviços centrais da Avenida da República. 


 NA PRESENTE reforma orgânica esteve em causa a sobrevivência de dois sectores estratégicos, mas de reduzido impacto mediático, que Santana Lopes herdou da sua antecessora e cuja importância só reconhece nos momentos em que tem de apresentar serviço: o livro e os arquivos. 

Por outro lado, está em causa um departamento como o IPPC, onde a ineficácia burocrática e a carência de recursos técnicos e financeiros se instalou escandalosamente com o termo da gestão de António Lamas: começou por se criar uma entidade paralela, o Conselho Superior de Defesa e Salvaguarda do Património, por suspender os projectos e as obras em curso, por entregar o Instituto a responsáveis sem competência (Antero Ferreira, Margarida Veiga, Eduarda Coelho, etc.) e por travar a operacionalidade das Direcções regionais e Delegações já criadas pela lei orgânica de 1990. Agora, para contrariar a deliberada inoperância dos serviços prevê-se novamente descentralizar (ou será desresponsabilizar?) o novo Instituto Nacional do Património Arquitectónico e Arqueológico, prevendo-se a criação de centros regionais de conservação e restauro, mas o atraso da regionalização e a falta de técnicos pode vir a levantar novos e mais graves problemas. 

Entretanto, a política do património orienta-se para a mera gestão de projectos que contam com apoio comunitário, por via do interesse turístico ou do desenvolvimento local, com desprezo de tudo o que não possa ser candidato aos apoios externos ou à exploração comercial, 

SE A CONTINUIDADE daquelas políticas definidas antes de 1990 está novamente em risco, toda a acção apontada ao apoio da criação artística, no teatro, no bailado, nas artes plásticas e na música, parece ameaçada por uma «filosofia» que se mascara de desestatização da iniciativa cultural para justificar a inactividade pública e a retirada dos magros apoios à ainda sobrevivente actividade particular - em especial, no campo do teatro e da acção externa das galerias de arte.

Oscila-se entre o mais primário liberalismo (o ataque demagógico aos subsídios, como se eles fossem uma originalidade portuguesa e significassem o último vestígio de uma qualquer oficialização da cultura - a ignorância será tanta que nunca se ouviu falar de um National Endowment for the Arts, suporte constitucional da projecção cultural dos Estados Unidos?) e o voluntarismo populista e autoritário (no apelo à descentralização forçada, que não é apoiada por qualquer incremento da regionalização; na escolha de alguns projectos locais ou individuais ao sabor do arbítrio estatal). 


O que está em causa é o reforço de uma política de actos culturais isolados e de fachada (um festival de teatro desligado de qualquer actividade de formação regular de públicos, por isso condenado a manter salas vazias; uma falhada feira de arte, cuja preparação foi largamente paga a um negociante sem porta aberta; um congresso da imaginação...) e, paralelamente, de atribuição descricionária de encomendas oficiais - observem-se as compras de obras de arte para decorar o CCB, sem claros critérios artísticos e pagas através do IPPC; sigam-se os compromissos com La Féria para subsidiar o teatro comercial. Sectorialrnente, nenhuma lógica programática suporta ou dá continuidade às acções desenvolvidas: durante dois anos iniciou-se uma colecção pública de fotografia, depois não se faz circular a sua exposição e interrompem-se as compras; proclama-se um grandioso programa de exposições para o CCB, mas durante dois anos a Galeria Almada Negreiros esteve encerrada, nunca se utilizou o Palácio Foz ou propôs à Gulbenkian coproduzir as retrospectivas que seriam essenciais para a formação de uma cultura visual; através da Europália patrocinou-se a afirmação de uma nova geração de coreógrafos, mas, terminado o festival, nenhuma perspectiva de continuidade se define no momento preciso em que se abre a possibilidade da sua circulação internacional; provocou-se o afastamento de um Ricardo Pais do Teatro Nacional para depois recuperar a sua competência técnica num projecto exemplar de «capital» do teatro. 

Será de uma chamada Divisão de Sistemas e Programas de Incentivos (notável nome!), a criar sobre os restos da ex-DGAC, que vai nascer, num radioso futuro próximo, a definição das políticas nacionais para o teatro, a dança e as artes plásticas. Mas terá ainda a cultura alguma coisa a ver com a SEC?