sábado, 10 de julho de 1999

1999, NOTAS fotografia

 Carlos Guarita 

Arquivo Fotográfico 

17-07-99

Foto-repórter de carreira inglesa (nasceu em Londres de pais emigrantes, em 1946), Carlos Guarita publicou trabalhos nos grandes magazines internacionais e ganhou em 1995 um primeiro prémio World Photo Press com a série «Teatro de Guerra», sobre os mercados de equipamentos bélicos. Em «Teatro das Estações» apresenta um projecto inédito desenvolvido desde há vários anos em torno das manifestações rituais que assinalam as mudanças das estações e, em especial, a chegada da primavera. Enquadrada por duas fotografias do pôr do sol visto do interior da sala do trono do palácio de Cnossos, em Creta, nos solstícios de Verão e de Inverno (observação de um alinhamento arquitectónico que terá passado despercebido aos arqueólogos), a exp. reúne 40 imagens a preto e branco realizadas principalmente em Inglaterra e Portugal, mas também em diversos outros países europeus, em meios rurais e urbanos, testemunhando cerimónias colectivas e práticas festivas ou ritualizadas, que em geral têm em comum o culto da árvore e a celebração da natureza (cruzes de Maio, ramos bentos, etc). Identificado pelo autor como um «documentário subjectivo» e um projecto de «trabalho sem fim: fotografar a dança da vida», este é também um projecto com interesse antropológico, que foi acompanhado pela edição de um catálogo. (Até 14 Ago.)  



Claude Fauville , Mitra  20-11-99 

«Através da perfeição e da poesia das imagens, confronta-nos, de forma serena e espontânea, com a evidência das imagens», assegura o prefaciador João Soares, que acumula a função com as de presidente da Câmara e conselheiro de Estado. Expõem-se quase duas centenas de provas a preto e branco de pequeno formato, sob o nome «Choréographie du Trouble», todas elas fotografias de nu, feminino, garantidamente artísticas por efeitos de panejamentos e lamas, desfocagens, projectores de estúdio e trucagens de laboratório, poses de escultura antiga ou contorções esforçadas dos modelos (com um volumoso catálogo, ed. CML). O autor é belga e não se destacou por qualquer contribuição original feita a um género particularmente frequente (e, por isso mesmo, exigente), pelo que não se entendem as prioridades da Divisão de Equipamentos Culturais, para além da conveniência de «animar» uma galeria bissexta. Mas a promoção camarária diz que «C.F. oferece matéria visual para uma reflexão sociológica sobre o panorama da arte actual, propondo várias leituras sobre a nudez e a consciência do corpo». Falta referir uma série de fotografias um pouco mais «ousadas», feitas em planos aproximados talvez de inspiração médica, editada em livro numa colecção especializada: são as «Pisseuses», revisitação de um tema que já motivara Rembrandt e Picasso, e que Emmet Gowin e Sally Mann tinham tratado de um modo não voyeurista. (Até 2 Jan.)  


Eva Besnyo 

Cadeia da Relação, Porto 

16-10.99

Húngara como tantos outros grandes fotógrafos, instalada em Amsterdão desde 1932, não é um nome conhecido, mas descobre-se com imenso prazer e proveito, graças a José Manuel Rodrigues, vindo da Holanda e que algo lhe ficou a dever (como Ed Van der Elsken, exposto há tempos). O empenhamento do seu olhar não cabe nas classificações estilísticas (modernismo, construtivismo, humanismo...) e alimenta-se sempre de uma emocionante intimidade com os modelos, como se tudo passasse pelo seu quotidiano pessoal. Os retratos são admiráveis (foi amiga da grande pintora Charley Toorop) e as fotografias de crianças estão no topo do «género»; o catálogo é uma excelente edição. (Até dom.)


Gérard Castello-Lopes 

Casa Fernando Pessoa 

04-12-1999

 Em 1991, para a Europália, Castello-Lopes retratou Vasco Graça Moura procurando aproximar-se fotograficamente da sua poesia - a transcrição dos versos «o mundo não aguenta a narração de mais nada» e a exibição do livro Mimesis de Erich Auerbach foram dois momentos centrais do trabalho então publicado em A Imagem das Palavras (ed. Contexto), um projecto de Eduardo Prado Coelho prefaciado por João Pinharanda. Anos depois foi o poeta que escreveu «onze poemas de circunstância e um labirinto sobre imagens de Gérard Castello-Lopes», escolhidas por ele e em vários casos de muito recente realização. As duas exposições apresentam-se em dois pisos da Casa, «Em demanda de Moura» (referindo o poeta e não a vila alentejana) e «Giraldomachias» (invocando Gérard), a segunda instalando fotografias e poemas no mesmo espaço, e ambas reunidas, em textos e imagens, com posfácios inéditos dos dois autores, deram origem a um livro único de título e autoria duplos, que teve péssima realização editorial da Quetzal, esperando-se que uma noção mínima de dignidade profissional determine uma imediata segunda tiragem. Às exposições se terá de voltar.  



Gil Bensmana 

ImagoLucis, Porto 

27-05.99

Um fotógrafo francês de origem argelina apresenta um conjunto de trabalhos em que a presença da luz com que a película é impressionada surge apenas assegurada pelo uso de uma gambiarra eléctrica que envolve os corpos, sendo por vezes igualmente incorporada na prova impressa em exposição. Noutra série (os dípticos Iconografia da Alma), à iluminação do corpo pelo mesmo sistema, do qual resulta um desenho de manchas quase reduzidas aos contornos, sucede-se a manifestação do seu rasto luminoso, como o registo de uma aura, uma presença ausente. Mais do que um exercício tecnicista e uma «reflexão» sobre o processo fotográfico, é a intensidade erótica das imagens que assim se afirma, no primeiro caso citando explicitamente a sensorialidade barroca dos efeitos de luz do Êxtase de Santa Teresa de Bernini. Note-se ainda a coerência material das relações entre os suportes fotográficos e as caixas-objectos que os incluem. (Até 8 Jun.)


Keil do Amaral 

Museu da Cidade 

14-04-99

Em 1954 e 55, as 8ª e 9ª Exposições Gerais de Artes Plásticas incluíram secções de fotografia, em que K.A. participou ao lado de Victor Palla, Bento d'Almeida, Augusto Cabrita e outros. O facto, que não consta da cronologia publicada no volume que a Câmara Municipal de Lisboa dedicou ao arquitecto mas é referido na recente história de António Sena, desmente um texto anónimo de parede que abre a presente mostra, onde se faz suceder à participação no Inquérito à Arquitectura Regional a «vontade de se dedicar à fotografia, entendida, acima de tudo, como passatempo». Keil do Amaral não poderá ser visto como um grande fotógrafo desconhecido, mas «passatempo» (algo menos que «hobby») é uma palavra inadequada para caracterizar uma prática que integrou o processo subterrâneo e disperso de renovação da fotografia nos anos 50, interessado em conhecer o país e em contrariar a imagem oficial da propaganda e dos salões. Apresentam-se 56 fotografias do arquivo da família - por uma vez, mostram-se provas originais, e não reimpressões, que escolhem e reinterpretam mais ou menos arbitrariamente acervos de negativos -, embora tenham faltado a investigação e o catálogo. A um núcleo de imagens do Porto, centradas na Ribeira e na Sé, mas também com estudos de árvores da Boavista, segue-se um outro conjunto situado nas Beiras, associado ao Inquérito e à origem beirã de K.A., e um terceiro conjunto, do Algarve, Lisboa e praias de Sintra. Três retratos do filho, de 1950-51 (dois com sobreposições de paredes de pedra ou de canas por dupla exposição e outro de costas em frente ao mar), são impressionantes testemunhos da inquietação de um tempo politicamente aprisionado. (Até 24)



Maria Bleda/José Maria Rosa 

Gal. Pedro Oliveira  

06-11-99

Dois jovens artistas- fotógrafos espanhóis apresentam sob o título comum «Espacios Silentes» duas séries de trabalhos que desenvolvem em conjunto: «Campos de futebol» são as imagens desertas e silenciosas de espaços desportivos suburbanos, fotografados com a austera disciplina escolar dos inventários de Bernd e Hilla Becher; «Campos de batalha» é a revisitação de antigos lugares de guerras famosas, através do encontro com as respectivas paisagens actuais (regiões de montanha, terrenos agrícolas ou margem de estradas), sempre despovoadas. Cada uma delas é mostrada em dípticos de imagens sequenciais, a cores, que são acompanhadas por uma legenda impressa com a identificação do episódio histórico. Este é um roteiro de curioso interesse documental sustentado num jogo «conceptual» em que o espaço e o tempo remetem sempre para uma outra realidade ausente. (Até 12)


Mariano Piçarra 

Arquivo Fotográfico 

18-09-99 

A galeria é ocupada por 18 dípticos (quase dípticos, aliás), cada um deles constituído por uma folha original manuscrita e muito rasurada dos aforismos de José Marinho (Aforismos Sobre o que Mais Importa, Imprensa Nacional, 1994), e uma fotografia oculta sob uma portada de madeira que o observador deverá abrir e que se voltará a fechar sozinha pela força de um peso pendente. Assim exposta a escrita quase ilegível, é para a fotografia escondida que se convoca uma «leitura» demorada, atenta à delicadeza da impressão dos jogos de luz e sombra, à decifração das aparências e dos seus sentidos, à interpretação da possível conformidade com o texto junto - o qual se transcreve no catálogo e em folhas facultadas ao visitante. Datadas de 1987 a 96, localizadas de Mértola a Freixo-de-Espada-à-Cinta, estas imagens dão sequência a uma já conhecida «reflexão» sobre como se confundem no registo fotográfico as coisas e as suas sombras, prolongada pela observação da matéria em movimento, na configuração magmática de um relevo pedregoso, na ondulação de um solo vegetal ou na textura viva de uma parede, onde se inscrevem os sinais de um tempo vivido como morte e ressurreição, enquanto outras fotografias surpreendem a manifestação directa da luz, como poder de revelação (a janela fechada, o caminho entre o arvoredo) ou possibilidade da ilusão. Apreciado o trabalho anterior de M.P. («Carneiro» e «Cenotáfio», em 1993; «Obraçon», no Museu do Chiado, em 1996, ou as fotografias da Guiné, nos Encontros de Coimbra também de 96, ambos numa outra direcção documental), poderá observar-se que o presente projecto - intitulado «Grave» - faz coincidir uma insistente atracção formalista com os limites previsíveis da ambição especulativa, num processo que corre o risco de ficar ensimesmado sobre a sua retórica. O interesse do filósofo ou pensador tomado por referência será matéria controversa, mas a concepção artificiosa e rebuscada da instalação, e também do catálogo que a acompanha, carrega sobre a relação texto-imagem (e em especial sobre as fotografias) um constante efeito de sobre-design, distante da eficácia imaginativa de outras montagens do mesmo autor. (Até 16 Out.)  


Marc Riboud 

Culturgest 

 9-01-99

 Ao longo de mais de 40 anos, Riboud percorreu a China. Foi um dos primeiros fotógrafos ocidentais autorizado a visitá-la, logo em 1956, e foi construindo o mais vasto registo da sua constante transformação. Associando imagens com décadas de distância, dos rigores da construção do socialismo à recente atracção pelo mercado e os modelos ocidentais, a exp. é uma longa marcha onde a atenção inteligente aos pequenos indícios escreve a história através do quotidiano e do individual, guiada pelas legendas com os comentários do autor. Documento e interpretação, os «momentos decisivos» de M.R. não acompanham a cronologia da revolução chinesa ou a história das convulsões do regime, mas são um testemunho magnífico, um olhar interessado e crítico sobre o gigante do outro lado do mundo. É uma grande exp. que foi inaugurada em Paris em 1996, mostrada em Pequim e entrou a seguir em digressão internacional, onde está presente a melhor tradição do fotojornalismo elevado ao plano do ensaio fotográfico. (Até 21 Mar.)


Rita Barros 

111, Lisboa 

04-12-1999

 Lugar mítico e mediático, o actual Chelsea Hotel de Nova Iorque é um sobrevivente dos tempos em que o «underground» não coincidia com a superfície mais ou menos mundana do presente. Fundado em 1905, por lá passaram Mark Twain, O'Henry, Bette Davies, Pollock, Nabokov, Tenessee Williams. Rita Barros, que mora no quarto onde Arthur C. Clarke escreveu 2001, fotografa-o há 15 anos e reuniu os retratos dos vizinhos e as memórias pessoais em exposição e livro (que a CML editou, congregando apoios vários). Já publicadas algumas, as imagens mostram-se em formatos variados e repetidos, com a necessária identificação das personagens. O livro, 15 Anos no Chelsea Hotel, alarga a colecção e surge brevemente pré e pós-faciado por João Soares, Gerard Schneider, a autora, José Gil, Arnold Weinstein («poeta de teatro», biógrafo do pintor Larry Rivers), Gerard Malanga (actor de Andy Warhol, fotógrafo) e Taylord Mead («Sperstar. Arts drifter»). O inventário inclui Bon Jovi, Courtney Love e Arthur Miller, ainda a preto e branco, depois Henry Geldzahler, Barry Flanagan, Gregory Corso, James Brown, Jean Baudrillard, Don Cherrye muitos outros. É um documento. (Até 31) 


Rodchenko 

Centro Cultural de Belém 

4.9.99

Rodchenko pintou as «últimas pinturas» em 1921 e declarou extinta a pintura de cavalete (mas regressaria em 1935, com quadros de uma estranha temática circense). No contexto revolucionário da URSS, foi um dos promotores do produtivismo, que visou implicar a prática artística com a construção da nova sociedade, e passou a dedicar-se à comunicação publicitária, ao mobiliário e à cenografia. A sua actividade foi decisiva para a renovação radical que então conheceu o grafismo e a fotografia, incorporando contribuições das pesquisas sobre o espaço que tinham caracterizado o construtivismo.A exp. «A Nova Moscovo», antes inaugurada na Cadeia da Relação, no Porto, apresenta uma colecção de cerca de 90 fotografias que fizeram parte do projecto de um livro encomendado em 1933 por um instituto estatal, com paginação da sua sua mulher, Varvara Stepanova. Aí comparecem algumas das imagens mais emblemáticas das pesquisas fotográficas de Rodchenko, com as suas perspectivas vertiginosas, pontos de vista oblíquos, contrastes de luz e sombra, a composição inesperada assimétrica, e em especial algumas montagens surpreendentes, mas também outras fotos de reportagem muito mais convencionais, que parecem já satisfazer os objectivos da propaganda tal como os defensores da «fotografia proletária» a entendiam, em oposição aos desvios esquerdistas do «formalismo». Os primeiros anos da década de 30 são marcados por uma viva querela ideológica e 1933 é a data da proibição dos grupos independentes de artistas; Rodchenko estava no centro das polémicas estéticas e este projecto de livro é um evidente reflexo de tensões que assumiam então uma extrema violência.

 25.9.99

Quinze dias depois da inauguração, continuava a ler-se à entrada da exp.: «As fotografias da secção de chapas foram reproduzidas a partir de provas fotográficas originais», deficiente tradução da versão inglesa igualmente afixada: «The photos in the plate section were reproduced...» A frase foi retirada do catálogo (onde, aliás, consta «secção de ilustrações» e não de «chapas»), no qual se publicam reproduções, enquanto a exp. mostra de facto provas originais. É uma espantosa demonstração da ignorância e despreocupação dos responsáveis pelas galerias do CCB. Acresce que esta é uma deficiente representação da fotografia de Rodchenko, cujo trabalho já era então vítima (e cúmplice) da repressão estalinista, e é uma manobra promocional de uma colecção posta à venda depois da derrocada do regime soviético. O projecto de livro a publicar em 1933 sucede à expulsão do grupo Outubro, ao esmagamento da esquerda formalista e à proibição das associações de artistas. Nesse ano, R. fotografou a construção do Canal do Mar Branco, onde morreram mais de cem mil prisioneiros (os que as imagens escondem), para uma edição da «URSS em Construção». «A Nova Moscovo» é um produto híbrido e de compromisso, onde as pesquisas construtivas (os pontos de vistas elevados, etc.) se vão tornando um mero sistema de composição, onde o distanciamento (ou estranhamento, «ostranenie») teorizado por Shkovski, rompendo com a percepção habitual (o reconhecimento), dá lugar à ficção da transparência documental, onde o culto da máquina e do progresso técnico vai cedendo terreno à apologia dos «heróis do trabalho». (Até 24 Out.)  


Wim Wenders 

Instituto Alemão e FNAC 

27-02-99

Duas exp. de um grande viajante, a primeira («Foto-Jarra», em itinerância pelos Goethe Institut desde 1995) concentrada na Austrália e usando apenas o formato panorâmico; a segunda, diversa nos meios, a cor ou preto- -e-branco, e nos caminhos, com passagem por Portugal, é um «diário de bordo» («Too Shot Pictures») que faz o circuito das FNAC desde 94. A atracção pela extensão dos espaços naturais, que já se conhecera em «Written in the West» (Coimbra, 1987), prolonga-se nestas imagens do deserto australiano, semeado de escombros da civilização que a natureza irá reabsorver, por entre estranhas paisagens vindas do fundo do mar e a massa imponente do Ayers Rock, a montanha sagrada dos aborígenes. Os negativos de 6 x 17 cm devolvem-nos a magnificência da linha de horizonte e o sentido da marcha, enquanto o calor do deserto domina a cor das provas. A notar ainda o «design» original do catálogo. (Até 15 e 10 Mar.)



Lisboa Anos 90 

Arquivo Fotográfico

18-12-99 

O Arquivo Municipal retoma as encomendas a fotógrafos contemporâneos, como fizera em décadas recuadas, de modo a actualizar o seu espólio e os seus serviços com documentos actuais e novos olhares qualificados. O projecto ver-se-á em três exposições, mostrando a primeira trabalhos de António Pedro Ferreira, Michel Waldmann e Paula Ferreira, num conjunto diversificado e de grande qualidade. (Até 8 Jan.) Hoje às 18h inaugura a participação de Eurico Lino do Vale (retratos) no Convento do Salvador - Centro Magalhães Lima, ao Miradouro de Santa Luzia (Alfama).


Livro de Viagem 

Cadeia da Relação, Porto 

20-03-99

Organizada para Frankfurt 97 por Tereza Siza e já mostrada também no CCB, é uma antologia da fotografia portuguesa conduzida pelo tema da diáspora ultramarina e em geral pela ideia de viagem, tomando embora largas liberdades com tal programa de modo a incluir itinerários históricos cumpridos no interior do país (de Frederick Flower aos «pioneiros» dos anos 50/60 - mas sem Benoliel e Castello Lopes) e também autores contemporâneos alheados da observação do mundo e dos outros. A nova montagem, revista na sua sequência e algo ampliada, atribui toda uma enxovia da Cadeia à edição de Lisboa Cidade Triste e Alegre, trocando a ordem dos autores para Costa Martins/Victor Palla, sem razão compreensível, e reúne algumas páginas da maqueta original a provas oriundas de diversas colecções, mostradas sem as suas datas de reimpressão - o mesmo se passa com Fernando Lemos, embora já nos casos de Paz dos Reis e de Orlando Ribeiro se proceda à correcta datação e atribuição das novas tiragens. Entretanto, assinale-se a identificação de Agostiniano de Oliveira como autor da colecção do Museu do Dundo, antes anónima. Outra sala é atribuída a Carlos Calvet e a Paulo Nozolino, este com uma vasta selecção de 20 anos de trabalho, entrada na colecção do Centro Nacional de Fotografia sob o título «Los Angeles-Tokyo», e mais uma a Fernando Lemos e Jorge Molder, sob a epígrafe «Percursos em torno do objecto fotográfico». O gosto pelas classificações sem sentido prossegue no capítulo «Inventar um signo, revisitar uma ideia», que inclui José M. Rodrigues (portfolio «Viagem», 1997) ao lado de Helena Almeida e Valente Alves, enquanto outro espaço é intitulado «Viagens» e apresenta Aurélio Paz dos Reis, Domingos Alvão (com o trabalho no Douro para o Instituto do Vinho do Porto), Orlando Ribeiro e Albano Silva Pereira - estabelecendo também neste caso a amálgama entre projectos totalmente distintos. Do mesmo modo, «O Labirinto da Saudade» será uma designação improcedente para apresentar António Leitão Marques, António Júlio Duarte e Mariano Piçarra, com que se completa aqui a selecção contemporânea. Importa, aliás, notar o carácter sempre vago e arbitrário dos textos que acompanham os autores ou os tópicos em que se incluem, trocando a informação necessária por comentários supostamente literários (exemplo: «Inquieto e inquietante, Paulo Nozolino carrega, como aquele Fernão de Magalhães que não chegou a dar a volta ao mundo, o inconformismo com o país, a história, a claridade»). O levantamento das imagens coloniais, iniciada nos Encontros de Coimbra, é uma linha de trabalho que mereceria ser continuada. (Até 3 Abr.)  


VI Bienal de Fotografia 

Celeiro da Patriarcal, Vila Franca de Xira 

30.10.99

A difícil conjuntura política local terá favorecido uma edição defensiva, voltada para a manutenção das aquisições anteriores, sem se projectar o concurso para um nível superior de ambição, o que teria de passar pela afirmação prévia de um júri claramente prestigiado, mobilizador de participações já credenciadas ou de candidatos credenciáveis (a participação de Teresa Siza, em representação do Centro Português de Fotografia, vai no sentido da concentração e dependência face ao poder, mesmo que possa ser positiva a sua acção). Entretanto, notar-se-á um maior rigor selectivo nas admissões (42 em 102 concorrentes), que não poderia atenuar o carácter mediano e conformista da generalidade das entregas – destacando-se, além do premiado Valter Vinagre, representante da SNBA, com fotografias de uma operação cirúrgica (num p/b velado que lhes confere uma estranha densidade matérica), o brasileiro Marcelo Buainain, com um notável conjunto de imagens da Índia, e ainda João Mariano, vencedor na edição anterior. O programa prossegue com mostras locais (João Mariano e José A. Chambel, na Quinta da Piedade, a abrir hoje às 16h) e extensões a outras entidades. (Até 28 Nov.)


 

sábado, 26 de junho de 1999

1999, Madrid, PHotoEspaña 99, «Sangre Caliente»

 Sangue quente em Madrid 

26-06-1999



Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)


 

 LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até 18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz: www.photoes.com.


 «Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação»«pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.


 Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.


 


Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944


 

 Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.


 A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.


 


André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926


 

 Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.


 Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.


 Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.


 Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.


 Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.


 Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.


 Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.


 A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)

sábado, 5 de junho de 1999

1999, Serralves: Circa 1968

 Expresso 5 Jun. 99

"Expor um paradigma"

A arte contemporânea começa em 68 ? O Museu de Serralves oferece obras e argumentos para o debate

«COM 'Circa 1968', a exposição inaugural do museu, apresenta-se um projecto museológico, uma filosofia de colecção e um conjunto de experiências artísticas que se definem pela superação dos limites de qualquer programa que as pretenda caracterizar e condicionar».
É assim que Vicente Todolí e João Fernandes definem sem definir, caracterizam sem caracterizar, a abertura das actividades do Museu de Serralves, num texto de introdução ao catálogo tão breve como conceptualmente fugidio.
O que seria uma biblioteca limitada a experiências literárias, uma temporada de concertos que só apresentasse experiências musicais? Felizmente, se os «experimentalismos» abundam no percurso da exposição inaugural – tantas vezes como vestígios de interrogações datadas, de contestações já descontextualizadas ou de tentativas de «superações de limites» –, há também algumas obras oferecidas ao olhar do visitante, algumas descobertas que se propõem à sua experiência sensível e intelectual, essa sim decisiva.

Ao fetichismo do experimental, que parece transferir para a criação artística o método das ciências, Picasso respondeu em 1923: «Tenho dificuldade em compreender a importância atribuída à palavra pesquisa (recherche) quando se trata de pintura moderna. Parece-me que procurar (chercher) não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar (...) Quando pinto, o meu objectivo é mostrar o que encontrei e não aquilo de que estou à procura.» Não era só de pintura, obviamente, que Picasso falava.

Ter-se-á passado, entretanto, da arte moderna à arte contemporânea, como sucedeu ao nome do museu do Porto? Essa questão de mudança de eras tem-se posto com frequência, em torno de sucessivas datas, mas, sem o recuo do tempo, fazer história de arte a quente tem mais a ver com a vontade de administrar o presente do que com o rigor historiográfico ou crítico. Lembre-se que já se chamou Museu de Arte Contemporânea ao acervo quase só oitocentista que deu lugar ao Museu do Chiado.

O projecto actual de Serralves assenta na intenção de fazer vingar no campo das artes plásticas a teses de uma linha divisória «circa 1968», que não decorreria das turbulências políticas dos anos 60 – a contestação à guerra do Vietname, a Grande Revolução Cultural Proletária, as crises estudantis, etc – mas que de algum modo as acompanhou e simbolicamente reflectiu num processo de retorno ao activismo das vanguardas históricas dos anos 10 e de busca de diferentes modalidades de criação que não fossem recuperáveis pelo mercado e o museu (burgueses).
Foram anos de rápida sucessão de movimentos programáticos – arte minimal e pós-minimal, conceptual, «process art», «arte povera», «land art», «body art», etc –, em que a reactivação da ideia de vanguarda se identificou com estratégias ditas de anti-arte e não-arte: «o 'quase nada' do ascetismo abstracto, último reduto da essência da pintura, e o 'não importa o quê', herdeiro de Dada, última paródia da arte» (Raymonde Moulin, L'Artiste, L'Institution et le Marché, 1992).
Algumas grandes exposições, especialmente «Quando as Atitudes se Tornam Formas», dirigida por Harald Szeemann, em 1969 (em Berna, Krefeld e Londres), serviriam para marcar a ruptura contemporânea – e também uma das suas características decisivas, o predomínio do nome do comissário sobre os dos artistas e até mesmo dos estilos ou movimentos.

Dizem os directores de Serralves: «A partir da segunda metade da década de 60 questiona-se a autonomia e a 'essência' da obra de arte» (mas essas nunca foram noções fixas e sempre os artistas, ou alguns artistas, as questionaram nas suas obras); «assiste-se então à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento de géneros formais, ao uso do filme, da fotografia e do texto como suportes de projectos conceptuais, a uma pesquisa das relações entre arte e vida que acompanham a agitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de moldura (...)» (só recobrindo a história anterior com o manto de uma mítica imobilidade da «tradição» é que alguma destas atitudes pode ser apresentada como alteração decisória); «o conceito de vanguarda torna-se globalizador, fazendo emergir na experiência artística aspectos globais da vida» (mas a vanguarda, que não é o mesmo que inovação, foi sempre globalizadora e em geral até totalitária).

Os comissários procuram tornar credível uma «mudança de paradigma», mas este termo tem de ser observado com radical desconfiança. É possível situar outras rupturas ou mudanças de paradigma nos anos 45-50, com a generalização da ideia de modernidade como encadeamento de inovações técnicas e estilísticas, e outra vez nos inícios de 60, com a internacionalização plena do campo artístico e o início da institucionalização da «tradição do novo» a cargo do Estado providência cultural.
A seguir a 68, logo outro paradigma surgiu nos finais dos anos 70, com a rejeição pósmoderna da visão teleológica das vanguardas e, depois dos «experimentalismos», a revalorização das disciplinas tradicionais.
No final do século revê-se a sua história sabendo que os grandes artistas participaram (ou não) nos movimentos de vanguarda mas conseguiram sempre escapar-lhes, construindo obras próprias que lhes são irredutíveis; revalorizam-se os períodos tardios e as carreiras solitárias, contrárias ao historicismo vanguardista e exteriores à actual academização das «linguagens experimentais», que é simétrica ao conservadorismo dos Salões do século anterior. A arte mais viva do presente segue outros caminhos e os museus centrais já não o ignoram.

O que importa nesse limiar proposto «circa 68» é o ritmo actual da rotação dos revivalismos, que recuperam e fetichizam como tradição o que a quis contestar. É também o peso das limitações dos meios financeiros postos à disposição da colecção, demasiado exíguos para disputar no mercado peças de períodos anteriores, mesmo do início dos anos 60 (todos os outros «paradigmas» são mais caros). E é, em especial, espelhando em 1968 os gostos institucionais de 1999, o propósito de usar o museu como pólo administrativo da criação.
Cite-se outra vez Raymonde Moulin, que é uma socióloga incontestada e não um crítico panfletário da «arte contemporânea»: «A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, a da arte e a do mercado. Intelectual e hermética, é sustentada à partida pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. Sobretudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museus, um termo de grande ambiguidade» (op. cit., pág 68).

Seria oportuno, entretanto, analisar detidamente o afirmado programa de «diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional», para notar como se utilisa a abstracção «arte internacional» (existe uma literatura ou um cinema internacionais?). A mitificação do internacional, tomando um regime de circulação como fórmula de valoração de artistas, certificada por uma rede de «especialistas» também internacionais, sustenta a antiga lógica do evolucionismo vanguardista mas nos moldes de uma degenerescência burocrática e faz ignorar quer a complexidade das relações entre centros e periferias quer o carácter local que marca a generalidade das dinâmicas criativas (os internacionais alemães são localizáveis em Dusseldorf ou em Berlim, entre os americanos distinguem-se os de Nova Iorque e os da costa Oeste, por exemplo).

Mas há aspectos positivos que devem ser realçados: uma ideia de colecção que não se interessa (exclusivamente) por «obras que sejam meras ilustrações de teorias», a escolha de algumas obras «mais íntimas» que divergem dos estereótipos e imagens de marca dos estilos, uma montagem que se distancia de «uma exposição de movimentos», através de salas que procuram uma lógica própria – segundo Todolí, a relação com a fotografia, o interesse pela paisagem, o espírito abstracto dos materiais, o paisagismo como auto-retrato, a redefinição da pintura, etc. Por outro lado, deverá notar-se a inclusão de obras que não se integram na lógica dominante do período de 1965-75, como são, no final, as notáveis pinturas de Georg Baselitz, Susan Rothemberg, A. R. Penck e Neil Jenney, artistas que já então subvertiam a tese da «mudança de paradigma», trabalhando sobre mais decisivas linhas de continuidade que atravessam todo o século.

II


Expresso 19-06-1999
Na inauguração do Museu de Serralves


"Despojos da luta e da festa"
As contestações dos anos 60 (e as modas dos 70) não resistem no espaço do museu. Os outros rebeldes menos efémeros foram excluídos

CIRCA 1968
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto (Até 29 de Agosto)

«NÃO TENHO nada contra os objectos de arte, simplesmente não tenho vontade de os fazer», dizia Lawrence Weiner, em 1969. Essa atitude de desqualificação da arte pode ter sido um exemplo particular, vivido em Nova Iorque, da ética cultural libertária do final dos anos 60, mas, três décadas depois, encontrar escrita na parede do museu a frase "Ao dobrar da esquina" / "Around the blend" é uma situação muito pouco estimulante.
Desacompanhada de informações sobre o contexto histórico e programático da arte conceptual, a «obra» é ilegível; integrada nesse contexto é uma mera informação sobre uma atitude, é um episódio anedótico e datado de um momento crítico da arte e da sociedade ocidental. Os slogans e cartazes de Maio de 68, ou de outras lutas da época, não se vêem nos museus de arte contemporânea, que são fiéis zeladores da autonomia e ensimesmamento da arte, ao contrário do que apregoam. Mas as «proposições» de Weiner encontram-se sempre em qualquer museu periférico e servem para os situar, aos olhos dos entendidos, numa rede de estabelecimentos elegantes que coleccionam «obras reveladoras de elementos de niilismo».


Lê-se no «Roteiro» oferecido aos visitantes de «Circa 1968»: «A montagem da exposição e os circuitos que nela são possíveis permitem ao visitante o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados que sublinham o carácter disruptivo das obras que nela se apresentam».
Carácter disruptivo? Diz a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora que o termo, em electrotecnia, refere o «salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade»; do latim «diruptio», «fractura, ruptura». O comissário Vicente Todolí parece usar a metáfora da faísca quando pretende que «as obras falam directamente ao espectador», o que justificará quer a exiguidade da informação disponível sobre a sua exposição – apenas uma lista de artistas por sala e um breve enunciado programático, pouco mais desenvolvido no catálogo – , quer a aparente arbitrariedade das escolhas e soluções de montagem. Se o visitante não notar a faísca (a aura dos objectos fetichizados), se não «ouvir» as obras expostos, sempre ficará a saber pelo folheto que «a exposição resulta das interrogações que cada obra suscita».

Quanto a rupturas, não há museu mais avançado que o do Porto. Procure-se em qualquer capital, Londres, Paris, Madrid, Nova Iorque, etc, e não se encontra uma tal dinâmica de «superação de ideias pré-estabelecidas e de preconceitos». Os grandes museus centrais ainda não dividiram o século XX em moderno e contemporâneo (pós-moderno?), nem deram conta da «mudança de paradigma» que ocorreu «circa 68», o que, pelo menos, lhes permitiria resolver o grave problemas das reservas superlotadas. Parece que ainda «pensam o museu como uma realidade estática», mas em Serralves já se sabe que «a arte é a busca ou o ultrapassar dos limites» e que o museu é «um novo fórum, um lugar de discussão e de superação dos limites dos indivíduos que nele coincidem» (cat.). Nunca se usaram as palavras de modo mais displicentemente terrorista para justificar os limites de uma visão restritiva da arte contemporânea.

O Centro Pompidou expõe Hockney e Robert Delaunay?, o Rainha Sofia mostra Roberto Matta e a arte cicládica?, a Tate Gallery revê Pollock e o círculo de Bloomsbury? Não se trata de um permanente reexame de fronteiras e valores, mas de meras concessões ao gosto do público e de sobrevivências das convenções estéticas e técnicas da tradição da arte (moderna). Em Serralves, a palavra-chave é «superação dos limites» e as obras que interessam são as que se caracterizam como «linguagens experimentais», revelam «elementos de niilismo», traduzem «uma subjectividade radicalmente livre» (a que se chamarão «obras idiossincráticas»), ou as que representam uma «traição estética» («até nos artistas mais conceptuais»).

O resultado global é um panorama onde, afinal, não há lugar para «o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados», preenchido por uma produção em grande parte academizada no seu vanguardismo escolar e exangue, fechada sobre problemáticas que não são de modo algum contextualizadas, concentrada sobre os mesmos nomes de sempre (com três ou quatro desconhecidos que são irrelevantes), tantas vezes visível como a sacralização do quase nada, da banalidade e da insignificância, em oposição aos espaços criados por Álvaro Siza – sem faísca possível.
Um acervo árido, desvitalizado, autista e triste (o humor e a ironia, tal como o prazer, quase sempre foram banidos) em que quase nada faz reviver a agitação frenética, as lutas e as festas, dos anos 60. Uma selecção estereotipada e censória (as grandes alternativas do tempo estão ausentes), onde a arte se aplica em representar a sua desaparição, antecipando «a banalidade, o desperdício, a mediocridade como valor e como ideologia», para citar Baudrillard («Le Complot de l'Art», 1998).

No interior do terreno institucional da arte contemporânea, o museu, tudo é igualmente consagrado como arte e não resta ao espectador qualquer espaço livre «para questionar os limites do que poderá ou não ser considerado como arte», ao contrário do que se diz ser a proposta de «Circa 1968». A questão, aliás, é um logro, como Duchamp demonstrou de uma vez por todas. O que importa não é distinguir os objectos entre arte e não-arte, mas sim, num panorama em que tudo se equivale desde que cooptado pela área profissional da arte, experimentar e ajuizar a diferença de intensidades formais e significantes, de densidades estéticas e qualidades objectuais. Se tal distinção não pode ser universalmente provada, ela deve ser argumentável, ainda que o programa desta exposição vise destituir as condições possíveis de debate. Mas num dos textos do catálogo, Robert Pincus-Witten, o desencantado autor da etiqueta «pós-minimalismo», nota que, «ironicamente, quando a arte pós-moderna alcança alguma importância, a linguagem usada para a louvar é decalcada no discurso da pintura e da escultura – qualidade, beleza, originalidade, significado, termos de um género de facto proscrito à partida pelo debate pós-moderno».

Por vezes, consultando os escassos elementos disponíveis, parece sugerir-se uma sustentação teórica das escolhas na tese de uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 68, demonstrando as obras históricas da década de 65-75 uma ruptura substancial com que começaria o período da arte contemporânea. Mas Todolí corrige: não se trata de «a» história da arte que começa em torno de 68, mas de «uma história», a sua, «uma visão subjectiva e pessoal», estabelecida pelo comissário-artista: «nem a colecção nem a exposição inaugural têm a intenção de contar o que se passou – isso seria repetir a história ortodoxa ou fazer uma arqueologia» («El País»).

De facto, em «Circa 1968», proposta como «exposição-manifesto», «o ponto de partida é mais ou menos 1968, mas aquela época considerada do ponto de vista de agora»; «a base da selecção é a época de 60 vista a partir de hoje»; «as obras desta colecção, embora tenham sido feitas nesse período parecem feitas hoje». Para além da banalidade (uma história actual do impressionismo é feita a partir de hoje, necessariamente, revendo as histórias feitas antes) e do equívoco (são algumas obras de hoje que retomam as estratégias anteriores), trata-se de gerir uma rede ora idiossincrática ora institucionalmente consensual de exclusões e cooptações, através de uma selecção de objectos feita numa banda muito estreita da criação da época. A etiqueta «arte contemporânea» não é usada como uma marca cronológica em aberto, mas como um critério programático para recortar da pluralidade das práticas e das concepções artísticas de uma década anterior um segmento específico, quase sempre a sua área mais pobre e menos significante. Um segmento que é, no momento presente, tacticamente reciclado pelos gostos dominantes e oferecido à escassez de recursos do mercado institucional periférico, em oposição a outras e mais fortes realidades.

Quando Todolí diz da exposição e do museu que «não é uma colecção sobre movimentos» («a mim não me interessam os movimentos», etc), inviabiliza o entendimento das obras de um tempo que se caracterizou, de facto, pela emergência continuada e concorrencial de movimentos, e em que as obras, associadas a uma derradeira reactivação de lógicas vanguardistas, estiveram sempre intrinsecamente ligadas a tendências e teorias, quase sempre capitaneadas por críticos-ideólogos e apresentadas sob novas etiquetas estilísticas, com o seu cortejo de interditos e de formulários impositivos.

No contexto do decénio 65-75, grande parte da produção artística que se pretendeu de vanguarda sustentou-se numa intenção de prevalência da teoria sobre o objecto (opondo-se ao que seria, na «arte tradicional», a predominância do objecto sobre a teoria). Ao pretender, hoje, que as obras que escolheu «não são ilustrações de teorias», «não representam tendências», Todolí procede a uma operação radical de descontextualização que as transforma em objectos arbitrários e põe em prática uma concepção instrumental de fetichização de vestígios que é apenas uma lógica de administração do poder.

Sucede, porém, que a afirmação não é verdadeira e que «Circa 1968», no seu sector «internacional», é quase totalmente uma exposição de movimentos – de alguns movimentos –, estando ausentes os artistas exteriores a essa lógica da sucessão das tendências.

São «imagens de marca» ilustrativas da «arte povera» italiana as obras de Kounellis, Merz, Anselmo e Zorio, colocadas na sala central. Tal como são obras exemplares, quanto ao conglomerado «eccentric abstraction», «anti-form» ou «process art» que reage ao formalismo minimalista, as peças de Eva Hesse, Robert Morris, Bruce Nauman, Richard Serra e Barry Le Va. Mas, nas proximidades desta área norte-americana teriam uma densidade mais do que experimental obras de Louise Bourgeois, Kienholz ou Robert Ryman, e a oposição ao reducionismo ascético ou a implicação nas contestações políticas do tempo («circa 68») deveriam passar por Mark di Suvero, Kitaj, Peter Saul, Leon Golub e Nancy Spero, se não se preferisse o ensimesmamento à conflitualidade estética que mais radicalmente «questionou a autonomia e a 'essência' da obra de arte».

São ilustrações da arte conceptual mais anti-objectualista as presenças de Weiner e Mel Bochner, excluindo todavia a componente mais política do movimento (Victor Burgin e Art & Language, por exemplo) ou mais «linguística» (Kosuth). O mesmo sucede com as obras da «land art» e «arte ecológica», de Oppenheim e Smithson, Long e Fulton e suas variações regionais, com que se continua a percorrer um quadro arqueológico da época.

A alegada fuga às «imagens de marca» e a distância face aos movimentos é, de facto, tacticamente distribuída. Encontra-se no apagamento da arte Pop (e das suas sequelas «funk», «psicadelic», hiper-realismo), então dominante embora invisível na exposição, apesar da presença de Warhol e de Rosenquist (com um «ambiente» que é uma experiência exaltante, mas distanciada da matriz Pop). De Oldenburg, as peças compradas para a colecção são irrelevantes; de Rauschenberg, também anterior à Pop e um dos grandes artistas das rupturas pioneiras da década de 50 (com Cage e Merce Cunningham, Kaprow e Jim Dine, etc) mostram-se duas das mais fortes obras da exposição, na antiga Casa, onde a presença literal dos detritos se estrutura com a energia de uma disposição formal que não os anula enquanto objectos recuperados (é uma «traição estética»). Estão ausentes os realismos que se pretendiam críticos, a arte Op (MoMA, «The Responsive Eye», em 65), o cinetismo e em especial a arte minimal («Primary Structures», Jewis Museum, e «Systemic Painting», Guggenheim, N.I., 66), embora muitas das obras mostradas sejam apenas o seu negativo. Se a contestação radical do accionismo vienense não é evocada, o carácter extremo do «happening», «performance» e «body art» dilui-se em vestígios autistas ou é remetido para ciclos de vídeo; Fluxus, sem Nam June Paik e Wolff Vostell, com um Beuys funerário, perde o seu sentido interventivo. Muito do que os anos 60 tiveram de marcante assumiu com coerência o seu carácter efémero e só sobreviveu como informação; essa energia questionadora da arte e do mundo declinou com o final da década e fechou-se depois sobre a interrogação conceptual da natureza da arte ou a afirmação da subjectividade narcísica. Desapareceu a inquietação e a alegria desse tempo nos objectos congelados pelo museu.

Igualmente decisivo é observar como a atenção prestada ao uso da fotografia, numa sala própria, está presa a uma visão essencialista do uso dos «media», enquanto desqualificação e sucedâneo da pintura, nunca como abertura sobre os recursos da imagem e a presença do real, persistindo assim a fronteira aristocrática que sempre exclui a fotografia que não se reivindica da condição artística e do espaço da arte. É também por isso que a sala dedicada à «redefinição da pintura» não é muito mais que uma reconstituição do formalismo reducionista (embora se sigam Susan Rothenberg e Georg Baselitz).

Outro ponto marcante é a recuperação normalizadora do que foi a originalidade radical das duas exposições comissariadas por Harald Szeemann («Quando as Atitudes se Tornam Forma», em 69, e Documenta VII, em 72), que já então tinham carácter retrospectivo. Na segunda, aberta a obras «representantes de todas as imagens do mundo», compareciam «a arte conceptual e o hiper-realismo enquanto direcções apresentadas segundo pontos de vista formais», a par da linha das «mitologias individuais enquanto campos da criação subjectiva dos mitos», onde cabiam, justamente, mas com escândalo, as obras de doentes mentais e a arte religiosa popular.

Sobre o decénio em causa, dizia Szeemann, em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998).

Uma diferente história de rebeldes, com Picasso (até 72), Balthus, Freud e Hockney e tantos outros fica por contar, e poderia ter em Philip Guston uma figura paradigmática, porque o seu regresso à figuração em 1966 foi um dos maiores choques do decénio, enfrentando com duradouras consequências o consenso vanguardista.

No início da década de 80, constatava-se que «a sobreacentuação da ideia de autonomia em arte que provocou o minimalismo e a sua consequência extrema, a arte conceptual, estava votada à esterilidade. Rapidamente, a vanguarda dos anos 70, com a sua concepção puritana, rígida, desprovida de qualquer alegria sensual, perdeu o seu impulso criativo e começou a estagnar», escrevia Christos M. Joachimides, ao apresentar a exposição «Um Novo Espírito da Pintura», em 1981.

A ocultação de obras e de memórias permite duvidosas operações. Mas talvez haja, de facto, uma perspectiva teórica subjacente à exposição, que pode ter a sua chave numa breve referência a um «conceito de vanguarda»: a selecção das obras realizadas em torno de 68 que parecem feitas hoje seriam as que «reapropriam interpretações particulares dos momentos euforizantes das experiências de vanguarda sucedidas entre meados dos anos 10 e meados dos anos 20». Que calendário é este que, além de tudo o resto, exclui o vanguardismo cubista, futurista, órfico, etc? Exactamente o que teria tido início com o dadaismo (Zurique, 1916), integra o construtivismo soviético, com ou sem o seu destino produtivista, e exclui o surrealismo (Paris, 1924). Desligado do seu contexto histórico, é um exercício de diletantismo pessoal e de arbitrariedade institucional. Soa terrivelmente datada outra frase de Todolí: «O modelo anterior – metafísico, do artista que está no estúdio – foi rejeitado. Os muros do estúdio tornaram-se falsos e a pergunta em questão é: se há limites e onde é que eles estão?» (entrevista ao «DN»).

Há, no entanto, outras situações onde a tese do paradigma e a exposição-manifesto aparecem justificadas por uma razão excessivamente prosaica: a falta de dinheiro para adquirir outras obras, para iniciar a colecção sobre outro «paradigma». «Tomando em conta as possibilidades, hoje, de começar uma colecção neste país, com um orçamento modesto em termos internacionais, percebemos à partida que ainda se podiam comprar coisas desta época – dos anos 60 – bastante em conta», diz Todolí («City»). De facto, uma tela de Lucian Freud (o retrato da mãe do pintor, de 1982) custou perto de 600 mil contos num leilão de 18 de Maio, o que equivale à verba total de três dos cinco anos de aquisições previstos para o museu do Porto.

O orçamento disponível e o programa do museu mantêm o círculo vicioso que desde sempre domina Serralves: sem meios financeiros e vontade política não há um programa museológico credível, e sem este (sem um projecto pluralista, não sectário, comunicativo e socialmente implantado, sustentado na possibilidade de fundamentar juízos de valor estético) nunca existirão os meios necessários, nem se justifica, aliás, que eles surjam.

EM PORTUGUÊS

A PRESENÇA portuguesa em «Circa 1968» deveria ter uma análise cuidada se não fosse por demais evidente que ela resulta em grande medida de uma mera gestão de compromissos e conveniências: por um lado excessiva – 37 para 70 estrangeiros –; por outro, em grande parte exterior ao tópico orientador da exposição, a tese da mudança de paradigma. Que fazem Fernando Lanhas, Paula Rego, Júlio Pomar, Jorge Martins, António Sena e outros em «Circa 1968», senão prosseguirem o que Todolí chama «a 'pintura de cavalete' não problematizada», quando «as obras começam a a sair para fora da tela» e tem lugar «a ruptura do conceito de moldura, o qual dá lugar à invasão do espaço interior e, por vezes, exterior...» (roteiro)?

Porque não estão representados Menez (que terá colaborado com João Vieira no quadro O Gato, de 67), João Cutileiro, Costa Pinheiro («Os Reis», em 1966; os projectos ambientais lúdicos de «Citymobil – arte-projecto», em 67-75) ou Eduardo Luís? Não importa. É bem melhor estarem ausentes, denunciando-se a arbitrariedade das escolhas, do que depositados numa cave mal iluminada e de acesso tortuoso, a sala nacional da exposição, porque não foi possível, disse-se, estabelecer pontos de diálogo com outros artistas – o que só significa que os grandes contemporâneos estrangeiros foram eliminados.

Entretanto, oferece-se a feliz oportunidade de observar como em tantos casos os artistas portugueses colocados em situação de «diálogo» internacional ficam tragicamente remetidos à situação de intérpretes menores do ar do tempo, de epígonos amaneirados de problemáticas alheias ou de «introdutores» em Portugal de qualquer estilo ou moda (desde os anos 50 que a crítica nacional foi assegurando esse método de avaliação e promoção de artistas, sempre de efeitos devastadores).

Não é esse o caso de Lourdes Castro, René Bertholo e Eduardo Batarda, a quem cabe, com o admirável e inclassificável Oyvind Fahlstrom (1928-1976), a representação exclusiva de um largo campo de trabalho em torno dos poderes e ilusões da imagem (chamou-se-lhe na altura neo-figuração, figuração narrativa, mitologias quotidianas, etc) que atravessou a década de 60.

Note-se ainda, por último, a aberrante representação da crítica portuguesa no catálogo, fazendo emparceirar os dois textos de protagonistas da época, Germano Celant e Robert Pincus-Witten, ou o estudo de Antje von Gravenitz sobre «O mito de '1968' na Alemanha», muito útil para entender o contexto regional dos alunos de Beuys, com uma prosa esforçadamente escolar de alguém que só podia ter um contacto indirecto com a época em causa e que a comenta com os piores vícios do academismo vanguardista.