sábado, 11 de janeiro de 1992

1992, Casa de Serralves, BPA: "A função do museu"

 “A função do museu”


Expresso revista 11 01 1992, pp. 33-35



Entrada comum (1): 

A exposição que se apresenta na Casa de Serralves (*) é um ponto de partida posasível para pensar o programa do Museu de Arte Contemporânea do Porto e para definir o que é uma colecção institucional, coerente e apresentável, de arte portuguesa e internacional. Trata-se agora de apostar na contemporaneidade contra o anacronismo. E também de aprofundar o debate sobre a função do Museu e sobre o que é ser contemporâneo


"Há um minuto do mundo que passa”

Casa de Serralves


1. A EXPOSIÇÃO comissariada por BernardoPinto de Almeida, critico e membro dacomissão de compras de Serralves, é, além de uma interessante exposição, uma proposta de acção para o futuro Museu do Porto (a primeira de uma serie anunciada). Nesse sentido, ela é também uma resposta prática a todo o debate internacional em curso sobre a relação entre a arte actual e o Museu, sobre o conceito de Museu de Arte Moderna e as dificuldades que atravessam algumas instituições assim chamadas, sobre a alternativa funcional Museu / Centro de Arte, sobre o que é, ou parece ser, a arte contemporânea. Mais concretamente, é também uma resposta em acto aos circunstancialismos nacionais e locais que pesam sobre qualquer projecto museológico no campo da arte moderna.

No «Jornal da Exposição» Fernando Pernes preconiza liminarmente a associação entre o Museu e a arte que está a fazer-se, sob «a imagem dinâmica de 'work in progress’». B.P.A. é mais preciso: «Um museu, hoje em dia, é um laboratório de imagens, é a procura de uma actualidade. (...) A função do museu não é mais, já nunca mais poderá ser, provavelmente, apenas a da conservação de uma espécie de memória patrimonial, mas antes a de uma experiência laboratorial».

No entanto, essa ligação do Museu à arte do presente não é, ao contrário do que pode supor-se, uma prática nova. Em 1818 inaugurou-se em Paris o Museu dos artistas vivos (a partir de 1886, Museu do Lu-xemburgo), onde o Estado francês reunia as obras que comprava nos Salões. Baluarte do academismo, o Museu (lugar de depósito e não «labo-ratório», é certo) vivia então à margem da arte moderna.

Mas B.P.A. clarifica ainda mais nitidamente os objectivos desta exposição temporária /programa museológico em que se propõe vincular a instituição Serralves a uma contemporaneidade entendida como trânsito internacional e como ritmo curto do temporário: «Escolhi preferencialmente linguagens frias, porque creio que aquilo que de principal acontece na arte contemporânea tem a ver com (o) esfriamento das linguagens. Isso não quer dizer que não haja imensa pertinência em obras de outras 'famílias' de artistas que se continuam...»

O que está certíssimo como desafio crítico de uma mostra temporária, mas é errado, e perigoso, enquanto paradigma de uma acção museológica.


Por mim, suponho que o que de principal acontece é a possibilidade de sabermos cada vez melhor que «a arte não existe, só existem os artistas», como Gombrich escreveu há muito tempo no início da sua história da arte. E podermos hoje, finalmente, usufruir de uma situação de confronto permanente e provocante entre o passado e o presente da criação das imagens - entre a tradição (todas as tradições, mesmo a tradição do novo) e os modos diversos de o artista com ela se relacionar (a continuidade, o pequeno deslocamento, a ruptura, a tábua rasa, a reapropriação ou citação da tradição, etc). Ou, ainda, é a libertação da criação e do uso das imagens dos critérios simplistas da anterioridade e da originalidade, do «entrave da história» (Catherine Grenier, Pierre Klossowski, La Difference, 1990).


A possibilidade daqueles confrontos — por exemplo, entre o que agora será frio e há dez anos era quente; entre o que é frio e as outras «famílias» reconhecidamente pertinentes; entre a actual dinâmica de rotação quente-frio e o que estava em jogo quando a ideologia da arte moderna tinha curso; entre os diversos ritmos e circuitos da arte do presente - deve ser permanentemente assegurada pela existência do Museu como entidade distinta e distanciada das outras instâncias de circulação, exposição e mercado da arte que são as colecções privadas, os centros de arte contemporânea (Kunsthalle), as mega-exposições internacionais (Metropolis 91, Documenta 92, etc.) e as galerias.


O entendimento restritivo do Museu como lugar de «conservação de uma espécie de memória patrimonial» é uma falácia: nenhum museu vivo, mesmo de arqueologia ou de história natural, é só isso. Dizer que «um museu, hoje em dia,... é a procura de uma actualidade» é só meia verdade: ele é a procura permanente de um entendimento actual sobre o passado e o presente — e o futuro. Anular a distância entre a instituição Museu e as outras instituições referidas - vincular directamente o Museu à dinâmica das «revela-ções», à rotação das gerações e das décadas - é uniformizar as condições próprias da criação e da conservação, da produção e da investigação, da visibilidade imediata e da revisão histórica, sob a ameaça de um novo academismo chamado «arte contemporânea», num reino dirigista de «unicidade museal» e sob as regras dominantes do espectáculo e das indústrias culturais.


Se a Fundação de Serralves optar por aquele entendimento do Museu (onde a manutenção do nome encobre uma prática de Centro de Arte), é o próprio lugar que caberia ao projecto que esteve na sua base dentro da rede museológica portuguesa, de acordo com o que foi programado pela SEC no momento da aquisição da Quinta de Serralves, que precisa de ser inteiramente repensado.


2

A EXPOSIÇÃO de B.P.A. possui, por outro lado, uma qualidade raramente presente em exposições portuguesas: é portadora de um discurso próprio expresso no plano da exploração visual dos objectos eleitos e também suficientemente rico em termos teóricos para justificar ser tomado como pólo de interrogações produtivas. Esse discurso contém algumas implicações que importa analisar.

Uma delas diz respeito ao modo de entender o horizonte temporal que a exposição define (para si mesma e decerto para o Museu de Serralves) entre inícios de 60 e o presente — já que ela, embora o possa parecer ao observador desprevenido, não é apenas uma escolha de obras contemporâneas que traduzem uma problemática e uma sensibilidade actuais. De facto, ela articula dois tempos da criação artística totalmente diferenciados: procede a uma valorização de propostas actuais no quadro de uma relação com o passado recente, e parece reintroduzir a história das «novidades» como grelha ou razão do presente. Um presente que é de diferenças individuais, muito mais do que de rupturas e «retornos».


No seu primeiro tempo (anos 60-75...), inclui objectos que se exibem como sinais evocativos de dois criadores históricos (Warhol e Beuys colocados na «antecâmara»; Beuys certamente evocando ainda Duchamp), enquanto outros trabalhos são testemunhos (com muito diferentes condições de representatividade) de propostas feitas na década de 60 - são em grande medida obras com data, que precisam de ser entendidas na sua situação temporal efectiva, tanto mais que não é a sua eficácia ou presença objectual que nelas especialmente importa.


Os dois nomes fundadores, as presenças igualmente apenas simbólicas de Judd e Flavin (este porque é destruido pelos efeitos da sala que ocupa), os trabalhos de Kosuth e Darboven, ou mesmo as notáveis obras de Polke e Zorio - e outro ainda é o caso de Oppenheim, que surje «travestido» em versão «anos 80» - explicitam um itinerário preciso que representa o termo da ideologia evolucionista da arte moderna, desde logo sob o efeito perverso da sua aceleração.

A sinalização intencional de um percurso que vai da Arte Pop, Fluxus, minimalismo, «arte povera» e arte conceptual até ao pluralismo posterior a 1975 (pós-moderno, se se quiser) — o qual se exemplifica nas presenças de Merz, Sherman, Cragg, Gober e Muñoz, ou de Sarmento, Biberstein, Croft e Cabrita Reis, por exemplo - parece reactivar uma atitude tardo-vanguardista, de facto nominalista e historicista, que atravessaria metade da exposição.


Nessa atitude, pela recriação que se faz de um sentido finalista da evolução da arte, procede-se à recuperação de uma ideologia do modernismo cuja negação crítica é precisamente essencial ao entendimento eficaz das obras posteriores. Porque elas não são de facto legíveis sem a presentificação do que é exterior (paralelo e contraditório) a essa mesma concepção vanguardista da arte de que aqueles outros autores são alguns dos exemplos terminais.


É certo que as obras de Polke, de Ângelo de Sousa e de Paula Rego (A Grande Seca) podem funcionar como exemplos parciais desse universo exterior, mas o uso que delas se faz na exposição anula quase todas as hipóteses de serem vistas como tal, por efeito da sua dispersão e de algumas localizações menos felizes: Polke «arrumado» numa sala subordinada a efeitos de padronização (Darboven e Muñoz), Paula Rego isolada no seu «gheto».


3

COMO ESTAMOS num (futuro) Museu, deverá notar-se que o discurso teórico explícito  que acompanha a exposição é mantido como um discurso hermético, dirigido ao que se costuma chamar «o mundo da arte». Com efeito, se considerarmos os instrumentos de divulgação produzidos, de que dispõe o visitante para o auxiliar a entender o que vê, para além de um curto e denso prefácio de catálogo (parcialmente clarificado na entrevista publicada no «Jornal»)? Роder-se-ía exigir um guia que comentasse didaticamente os objectos expostos, mas nem mesmo se encontra uma referência biográfica mínima sobre artistas que o público conhece certamente pela primeira vez — e que em grande parte são expostos precisamente enquanto balizas de um itinerário histórico e geográfico.

E, num Museu, pedem-se 4500$00 por apenas 78 páginas! De facto, o catálogo - português-inglês — é entendido só como um instrumento luxuoso de representação externa.

Dir-se-á que, tal como na opção por uma montagem não cronológica, se pretendeu contrariar a abordagem historicista dos objectos artísticos, começando, pedagogicamente, por priviligiar em absoluto a pura relação perceptiva e emocional com a arte. Mas, para dar um único exemplo, alguém que não seja um especialista pode entender o sentido de uma peça de Donald Judd que lhe surge datada de 1989 e que é o prolongamento rotineiro de uma atitude radicalmente tomada em 1965/75, num formato doméstico que desmente, aliás, o efeito de ruptura que representou?


1 artigo de Alexandre Melo. “Serralves. Expectativaas contemporâneas”


* crítica de José Luis Porfirio, 21 dez 1991. AM é membro da comissão de compras de Serralves