sábado, 28 de agosto de 1993

1993 João Cutileiro D. Sebastião 1973-93, 20 anos depiois

"Vinte anos depois"

Para comemorar os 20 anos do monumento a D. Sebastião, que derrubou as regras da estatuária do Estado Novo poucos meses antes do 25 de Abril, o Centro Cultural de Lagos reuniu em exposição as maquetas feitas por João Cutileiro para esculturas a instalar em espaços públicos. O escândalo já foi esquecido, mas a idade não lhe pesa

«D. Sebastião, 1973-1993”, João Cutileiro
Centro Cultural de Lagos


EXPRESSO/Revista 28 Agosto 1993, pp. 26-27


LAGOS celebra o aniversário do D. Sebastião de João Cutileiro que se ergue na Praça Gil Eanes com uma exposição de «maquetas de esculturas para espaços públicos», em companhia de fotografias das obras executadas, quando o foram. Apresenta-se no Centro Cultural da cidade, que, por coincidência, acolhe também uma segunda mostra comemorativa de outros 20 anos, os do Expresso.

Para Cutileiro, a simultaneidade das exposições faz algum sentido. «Não é por acaso que nelas se celebram os 20 anos do D. Sebastião e do Expresso - nós somos ambos precursores do 25 de Abril. Eu costumo dizer por graça que o MFA, em 73, veio ter comigo e pediu-me: 'fazes uma estátua controversa, pões na praça de Lagos e, ao fim de seis meses, se ainda lá estiver, é porque isto já está podre e nós podemos entrar'. Embora seja uma graça, também é a realidade: tenho a impressão de que, cinco anos antes, aparecia uma grua e aquilo vinha abaixo.»

Vinte anos depois, o D. Sebastião não é só uma estátua duplamente histórica, é também um exemplo de como a «Situação» e a «Oposição» se enfrentavam em todos os domínios da sociedade. E era sob o primado da política que se opunham, em torno desse preciso monumento, o modelo institucional da estatuária e a possibilidade da inovação na escultura portuguesa.

Estava-se em 1973, em Setembro de 1973, e era a presença de Américo Thomaz que devia assinalar, entre a multidão saída à rua, o centenário de Lagos. Instalada por iniciativa da Câmara, graças à relativa autonomia de decisões que o marcelismo permitia, a obra de Cutileiro era «um dos melhores monumentos portugueses, por razões plásticas e intelectuais também» e uma «ruptura escandalosa» com as regras vigentes, como escrevia José-Augusto França, aparecido em sua defesa no «Diário de Lisboa» e na «Colóquio-Artes», antes de que se avolumassem as pressões apostadas no derrube da estátua irreverente.

Tratava-se, de facto, de uma peça realizada à margem dos cânones com que a estatuária do Estado Novo trocara as pobres tradições naturalistas vindas de Oitocentos pela procura de uma pretensa austeridade neoclássica, bem representados por um Infante D. Henrique hieraticamente sentado em bronze logo a cerca de 500 metros, com a assinatura de Leopoldo de Almeida e data de 1960.

A inovação (e não estilização decorativa de volumes, essa tolerada) era imediatamente visível na construção articulada com mármores de cores diferentes, em vez do talhe de um bloco único, no corte mecânico deixando à vista as marcas dos instrumentos, em lugar do «bom acabamento» obrigatório, e na ausência do pedestal que respeitosamente elevasse a figura acima dos comuns mortais. Mais grave ainda era a figura ambígua de menino com que o rei se retratava miticamente, imberbe e inseguro, entre o sonho e o susto, anti-herói desengonçado, com as mão perdidas nos guantes e o elmo desmesurado caído aos pés.

Era a representação de um rei, mesmo se de um rei vencido, e a sua presença devia ser autoritária e institucional. Não é. E tocava-se então em coisas sérias ao revisitar o seu mito.

«O D. Sebastião era o símbolo da derrota de África. Essa era uma das razões por que eu mais gostei da ideia de fazer o D. Sebastião. Se fosse outro rei qualquer, tinha de me informar historicamente, de fazer pesquisas... O D. Sebastião era já um mito, era um misto de derrota e de esperança.»


JOÃO Cutileiro vivia então em Lagos, desde 1970 em permanência (e estivera desde 1959 «em 'navette'» entre Londres e Portugal, onde descobrira «um pequeno paraíso na terra»). Já vinha de longe a ideia de fazer uma escultura para aquele local, e três maquetas para um Pescador, de 1969, estão na exposição a prová-lo: «Pensei que seria uma bonita maneira de ocupar aquele espaço, que estava mesmo a pedir estátua, sem ser um Leopoldo de Almeida, ou um monumento ao Tenreiro, ou qualquer coisa do género. Aquela praçazinha tinha-a debaixo de olho, e ofendia-me que fossem lá meter o trabalho de outro escultor.»

Foi então que surgiu a oportunidade da comemoração dos 400 anos da cidade e o convite do presidente da Câmara, José Figueiredo Luís, marcelista e amigo pessoal, para fazer uma medalha. Desta se passou à estátua, por insistência de Cutileiro, que praticamente a ofereceu, pagando-se apenas do material e horas de trabalho.

Os anos que se seguiram não envolvem ainda o D. Sebastião na imobilidade de algo já visto, integrado pela aceitação reverente do peso da história. A surpresa pública mantém-se perante aquele corpo insólito em figura de boneca articulada, talvez «parecido», talvez impróprio de um rei ou de uma estátua, que ao mesmo tempo marca fisicamente um espaço e cumpre-desafia a antiga função segurizante e sacralizadora associada à ideia de monumento - no qual a grandeza da escala faz parte de um mesmo sistema simbólico, ligando a imagem e o discurso numa ostensiva relação conceptual com o sítio (Rosalind Krauss).

Adivinha-se, por outro lado, que para a crítica do tempo, que assistia com uma distância incomodada à consagração pelos coleccionadores de uma carreira realizada à margem das «correntes», o enfrentamento político terá permitido ultrapassar os conflitos teóricos que se situavam no seu próprio terreno, a respeito da invenção em escultura ou na arte em geral. Embora J.-A. França tivesse admitido a possibilidade de «uma nova monumentalidade figurativa», a impressão que hoje se tem é de que, em geral, se despejava a criança com a água do banho. Ou seja, com aquele monumento único, tratar-se-ia apenas de pôr termo ao academismo da estatuária do Estado Novo, sem que se entendesse o renovar da tradição moderna da escultura ou a singularidade de toda uma obra. Cutileiro viria a declarar, por provocação, o seu abandono da criação artística, passando a identificar-se como «produtor de objectos decorativos para a burguesia intelectual».

Pesava sobre o entendimento crítico de então, quando se não falava ainda de pós-modernismos, uma longa sequência de interditos que constituíam a suposta evolução modernista na escultura: a figuração, o corpo, a semelhança, a verticalidade, a marca do fabrico, a prática artesanal, a expressão, o objecto construído, ou simplesmente «o escultural», cujo apagamento pode passar por ser o destino decisivo da escultura, numa história de impossibilidades crescentes.

«Eram interditos para uma crítica talvez muito intelectual a que eu nunca liguei. Nunca achei que fossem interditos, não os sentia na pele. Para mim, havia coisas interditas, por exemplo, em relação à estatuária do Estado Novo, pelo lado ideológico e formal, aquelas formas que se usavam na estatuária. Havia umas pessoas mais benévolas que diziam que o [Francisco] Franco era bom e os outros é que eram maus, e que faziam umas hierarquias dentro daquela porcaria toda; mas, para mim, eram todos muito maus, não havia nada de aproveitar. Nem o Martins Correia, nem o António Duarte... Quando jovens, certamente que uns eram mais talentosos do que outros, mas como tinham todos optado por fazer aquele frete...»

Se a obra de Cutileiro retomava a tradição da estatuária, centrada na representação do corpo, a seu modo prolongando investigações de Brancusi e de Moore, mas já sem nostalgias de um qualquer passado arcaico de formas ideais ou aspirações a um classicismo intemporal de «serena espiritualidade» (Margit Rowell), uma observação mais ideológica que atenta aos objectos não permitiria reconhecer o que de inovador surgira com os meios mecânicos de corte da pedra. De facto, ao inventar um outro processo de talhe directo, com recurso às serras eléctricas, e de construção por montagem de fragmentos, Cutileiro reencontrava-se com toda a problemática da colagem e da «assemblage», transferindo-a para a pedra e para a figuração, ao mesmo tempo que inaugurava um modo de produzir escultura que substituía técnicas condenadas pelos seus excessivos custos (a passagem do gesso a bronze, o talhe do bloco único). Assim se viabilizava uma nova prática da escultura e, desde logo, a sua própria sobrevivência como escultor - facto inédito, na sua independência do ensino e da encomenda oficial. E também um escândalo perante certas fatalidades portuguesas.

«A própria encomenda estava vedada aos artistas. A palavra encomenda já trazia uma conotação chata: era o emprego. As pessoas em Portugal não podem gostar do trabalho de que se ganha dinheiro, faz muito parte da cultura e da mentalidade portuguesa. Ganhar dinheiro era uma chatice, nós devíamos ser todos artistas e livres... Mas nunca me fez confusão ganhar dinheiro e gostar dos trabalhos que fazia.»


ENTRETANTO, a celebração do aniversário, promovida por outro escultor, Xana, de novo com o apoio da Câmara, é também a oportunidade para observar que o D. Sebastião teve escassíssima descendência. Foram muito poucos os monumentos erguidos entretanto por João Cutileiro, como se, em questões de gosto oficial e de encomenda de escultura pública, decorativa e/ou comemorativa, rapidamente se tivesse voltado à mesma vontade de celebrar o passado com a reverência do conservadorismo estético, se impusesse a mesma marcação autoritária de espaços (e o formalismo abstraccionista pode fazê-lo diligentemente), ou, pura e simplesmente, como se nada mudasse no que era mais simplesmente a incultura artística. Como se comprova em Lagos, mesmo que a exposição não seja exaustiva, as encomendas foram raras entre 73 e 93, embora Cutileiro multiplicasse as suas peças monumentais em espaços privados e públicos.

«Ofereci aquela, mas não poderia oferecer muitas mais. Eu não me mexo para as encomendas, mas o certo é que as estátuas, os monumentos públicos, aparecem feitos. Se calhar, em todas as sociedades é assim; se lermos a autobiografia do Cellini, vemos que na Renascença aqueles meninos se envenenavam uns aos outros para sacar a encomenda. A mim, talvez por uma herança de passado antifascista, como se diz, repugna-me andar a esfregar os ombros com o poder para sacar as estátuas. Há pessoas responsáveis com quem tenho o maior dos prazeres em lidar, há outras que não, e eu transmito, um pouco como os cães, um cheiro que diz às pessoas que não gosto delas, e eles não me encomendam. De facto, as grandes coisas nunca vêm para mim.»

Em Lagos, são em número de 19 as maquetas apresentadas, ou 14 se se descontarem as variantes de um mesmo projecto, mas em apenas oito casos se verifica a passagem à execução, documentada em fotografias. E isto apesar da cronologia da exposição começar muito antes do D. Sebastião, logo em 1962, apontando com as peças iniciais duas direcções constantes da obra de Cutileiro.

A primeira maqueta, ainda em bronze, é de uma estátua equestre pensada para o alto do Parque Eduardo VII. Trata-se do exemplo inicial de uma longa série de cavaleiros, que, como se viu na retrospectiva de 1990, continuaram em cimento fundido e em «polyester», primeiro, em mármore, depois, a partir de 67, e mais insistentemente em 89-90, como foi a seguir mostrado em Almancil, sob o título «Homenagem a Paolo Uccello». Na presente antologia, o tema só regressa num Monumento a D. Afonso Henriques, já de 92, mas o certo é que a designação «maqueta para estátua equestre» foi insistentemente usada em pequenas obras com destinos privados, expressando assim a vontade de enfrentrar um dos desafios superiores da estatuária clássica.

Com a segunda das obras expostas, uma mulher reclinada, em maqueta de 68 para o Hotel do Alvor, onde o modelo clássico é violentamente sujeito às fragmentações da «assemblage», abre-se a via para uma outra longa série de esculturas desenvolvidas sem necessidade de projecto prévio. O mesmo, aliás, sucederá com os «Guerreiros», peças monumentais também insistentemente exercitadas, de que não se mostram maquetas em Lagos.


DE FACTO, esta exposição confirma que a maqueta, imposta pela encomenda, não faz parte dos processos de trabalho preferidos pelo escultor. As suas peças, na generalidade dos casos, surgem directamente em dimensão monumental sem estudos feitos em miniatura.

«A manufactura da maqueta é uma limitação horrenda. Quando um tipo tem a maqueta aprovada dá muito gozo, mas depois sinto-me um mero lacaio de mim próprio.» É possível sempre alterar o projecto em andamento, mas Cutileiro entende a solução como «uma quebra de compromisso»: «Se aqueles senhores exigiram uma maqueta, eu tenho a obrigação moral - não digo artística, mas moral - de apresentar uma coisa minimamente conforme a maqueta. Já me aconteceu, durante a execução, pensar que talvez outra solução seja melhor, e então páro a execução, faço uma nova maqueta e vou apresentá-la. Mas repete-se o problema. Uma vez aprovada, estou tão limitado como antes.»

Outra constatação: a figura histórica só existe na obra de Cutileiro associada à encomenda, e por isso é rara. Descontando um ou outro retrato, contam-se apenas o D. Sebastião e um Camões de 1980, encomendado para Cascais no tempo de Vasco Pulido Valente, mais um Monumento a D. Sancho, já de 1990, em Torres Novas, e o Monumento a José Fontana, do mesmo ano, no jardim do mesmo nome, em Lisboa, onde um retrato gravado marca um feixe de colunas de sugestão vegetal. Em maqueta ficou o referido D. Afonso Henriques, de 92, e a exposição termina com uma Inês de Castro já de 93, que é outra magnífica interpretação de um mito nacional. E também um curiosíssimo exemplo da transformação que ocorre entre a maqueta e a obra terminada, quando nenhum compromisso prende o escultor: o volume inteiro do corpo ou manto real, onde, na falta de rosto, a coroa vem a assentar directamente na larga gola, acaba por dar lugar a uma «assemblage» de volumes articulados na peça construída.

Pelo caminho estão os projectos para duas fontes monumentais, de 87 e 88, a segunda instalada na sede da Bonança, em Lisboa, obras decorativas e «abstractas», tal como o são três pórticos para Macau, de 89, não executados (título: Macau), e também o Monumento a Mértola, de 91, instalado. Peça original e única é um Dragão, de 90, previsto para o Jardim do Canal dos Patos, em Macau, uma divertida figura de animal construída em grosseiros blocos encaixados, sobre duas bases desiguais que surgem integradas no movimento da peça.

Por mostrar, por agora, ficou uma obra pensada para a nova sede da CGD sob a forma de um friso decorativo, que viria a ser cancelada em fase de corte orçamental no edifício; em alternativa surgiu a hipótese de uma peça monumental para o exterior do edifício, mas o desenho prévio não foi aprovado. Cutileiro insistiu em executar o projecto, por sua conta e risco; com os seus 5,5 metros, ficou a ser a sua maior peça de sempre.

«Um escultor gosta de fazer coisas grandes. Como eu ganho muito dinheiro e tenho boas condições de trabalho, posso-me permitir fazer coisas grandes sem ter de estar à espera da encomenda. Faço-as e depois vendo-as. Estão prontas, são grandes, são aptas para um lugar público, são monumentais, e quando me vêm encomendar uma peça eu digo: 'Encomendar para quê? Está aqui esta, que serve perfeitamente'.»

Vinte anos depois, o novo regime não tornou Cutileiro um escultor institucional.

 

sábado, 17 de julho de 1993

1993, Abbas e François Hébel, entrevista. «Magnum no Leste»

Abbas/Hébel «Fórmula Magnum»


 entrevista com António Pedro Ferreira


Expresso Revista 17 Julho


45 ANOS DE reportagem na Europa de Leste por 45 fotógrafos da mais mítica das agências apresentam-se na Estufa Fria, numa sumptuosa montagem ainda integrada no «Mês da Fotografia» promovido pela Câmara de Lisboa. Abbas e François Hébel foram os representantes da Magnum presentes na inauguração e é com eles que se faz adiante uma viagem ao interior da cooperativa criada em 1947 por Robert Capa, David Saymour, George Rodger e Henri Cartier-Bresson, à procura das razões por que, tantas décadas depois, os seus fotógrafos continuam a estar na primeira linha.




Abbas, iraniano nascido em 1944, é fotógrafo da Magnum desde 1981 e o actual vice-presidente da agência de Paris. Publicou três livros, sobre o Zaire, o Irão e o México, e apresentará no próximo ano, em exposição itinerante e em livro, o resultado de seis anos de reportagem sobre o Islão. François Hébel é director da Magnum de Paris desde 1987, depois de ter dirigido os Encontros Internacionais de Arles; é também o responsável principal pelo projecto «À l'Est, de Magnum», em colaboração com o fotógrafo René Burri, que assegurou a direcção artística.

Depois da exposição «Magnum no Leste», em circulação mundial desde 1990, Lisboa verá em Outubro, na nova sede da Caixa Geral de Depósitos, a grande retrospectiva dos 45 anos da agência Magnum, criada em 1989, por ocasião das celebrações dos 150 anos da divulgação da fotografia. É a ocasião de um acerto de contas com a história do mundo e da fotografia.





EXPRESSO — O que distingue a Magnum das outras agências?

ABBAS — A diferença é que a agência pertence aos fotógrafos. Eu trabalhei na Sipa, na Gamma e depois na Magnum... Quando estava na Sipa, era o caos. Se saía em reportagem, era eu que tinha de comprar o bilhete do avião, de arranjar os filmes, tudo. Depois fui para a Gamma. Quando partia, davam-me um cartão para o telex, o dinheiro, o bilhete do avião, a lista dos voos nos quais era possível enviar os filmes, etc. Tudo estava organizado, tudo era perfeito. Vou para a Magnum, e é o caos total outra vez. Mas há uma diferença: dão-nos a chave da agência. A Magnum é uma cooperativa de fotógrafos, pertence aos fotógrafos e eles têm o controle político, digamos, sobre a agência — são eles que definem as grandes linhas, e depois há um «staff» que gere o dia a dia. A outra grande diferença é que na Magnum os fotógrafos são sempre os donos e senhores do seu trabalho, e todos os negativos continuam a pertencer-lhes. Cada fotógrafo paga os seus filmes e as suas revelações. E a Magnum é uma agência que não pode ser comprada pelos bancos ou pelos grandes grupos industriais, como sucede com as outras.

EXP. — Também não é uma empresa que só quer conseguir o maior «chiffre d'affaires»?...

A. — Não, é até um pouco o contrário. Há alguns anos, quando a agência começou a ganhar dinheiro, todos andavam nervosos... enfim, eram «os antigos» que estavam nervosos. Agora, a filosofia já mudou um pouco, mas a ideia essencial é que é a agência que deve servir os fotógrafos no seu trabalho e não o contrário. Ela fornece a logística para que os fotógrafos possam trabalhar.

EXP. — E cada um faz o seu trabalho pessoal?

A. — Não há apenas fotógrafos a trabalhar nas suas histórias pessoais. Há o trabalho pessoal e há igualmente as encomendas para a publicidade, a fotografia industrial, etc. Há as duas coisas.

EXP. — É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo?

A. — A estrutura permite-o.

FRANÇOIS HÉBEL — Há uma diferença essencial em relação às outras agências, que resulta da posição do fotógrafo em relação ao seus «irmãos» da agência. Nas outras, como há um chefe de redação que distribui o trabalho, não há, em geral, dois fotógrafos a trabalhar sobre o mesmo assunto, e, finalmente, há muito pouca emulação entre eles. Tudo é regulamentado, cada um tem o seu compartimento, a sua especialidade. Connosco é a anarquia total. Não existe nenhuma consulta entre os fotógrafos: se um deles pensa num trabalho, e se tem os meios para o fazer, ou se arranja alguém que o compra, arranca para a sua história. Pode acontecer, como foi o caso da Jugoslávia, que durante um ano e meio não tenhamos ninguém numa região e, depois, de repente, há um que resolve lá ficar, outro que parte para lá, etc. Há casos incríveis, como aconteceu com o muro de Berlim: chegámos a ter dez fotógrafos ao mesmo tempo a trabalhar sobre o muro. A Magnum é isto. O que quer dizer que se cria uma emulação entre os fotógrafos que é única. Eles estão, de facto, em competição consigo próprios, em primeiro lugar, em seguida em competição em relação ao grupo e só depois com o mundo exterior, enquanto os fotógrafos das outras agências estão em competição em relação a um mercado. Não temos essa noção. Não estamos em competição com o mercado.

EXP. — Há também o confronto permanente com a história da Magnum.

F.H. — Absolutamente. Quando falo do grupo, é isso: eles sentem essa responsabilidade.

EXP. — É muito pesado viver com o mito Magnum?

A. — Não. Primeiro, o mito é qualquer coisa que se vê mais quando se está de fora. Quando se está lá dentro, é diferente. É certo que existe o peso dos antigos — que pode ser um pouco difícil, quando se tem a responsabilidade da gestão —, mas há sobretudo a história. Essa é outra diferença em relação às restantes agências: temos uma história atrás de nós, temos uma tradição, o que nos permite, quando temos um problema de identidade, ou de ética, ou problemas financeiros, referirmo-nos ao passado. Às vezes, estamos a discutir um problema grave, há um dossier que circula e descobrimos que, 30 anos antes, já se tinham posto as mesmas questões. Então, quando olhamos para o que viveram os antigos, chegamos à conclusão que é exactamente o mesmo que nós estamos a viver, e que a agência sobreviveu, apesar desses problemas.

EXP. — Como é que se escolhem os novos fotógrafos?

A. — É um processo muito longo, que nem sempre é bem compreendido. E é verdade que quando eu estava fora também não percebia porque é que o processo é tão longo. O fotógrafo que quer ser membro da Magnum propõe um portfolio durante o «meeting» anual; ele é visto pelo colectivo dos membros, unicamente pelos membros, e faz-se uma votação por maioria simples. Se é aceite, torna-se  nomeado («nominee»), que é uma associação um pouco fluida. Aprendemos a conhecer-nos mutuamente. É como sucede num par, numa relação entre «boy friend» e «girl friend». O fotógrafo pode conservar os seus clientes exteriores... Ao fim de dois anos, deve apresentar um segundo porfolio para se tornar associado. Aí já é preciso uma maioria de dois terços e, se ele é aceite, é como uma espécie de noivado. Deve dar tudo à Magnum, tudo deve passar pela agência, as suas encomendas, tudo. Depois, para passar a membro há um terceiro voto, em geral dois anos mais tarde — por vezes três ou quatro, mas também há fotógrafos que são associados durante sete e oito anos. Terceiro porfolio e um nova votação por dois terços, e só então é que um fotógrafo se torna membro da Magnum.

EXP. E então é para toda a vida...

A. — É-se membro para toda a vida. Mas eu tenho pena que não haja uma espécie de avaliação permanente do trabalho, um processo de acompanhamento em que todos os fotógrafos se poriam em causa. Ver-se-íam os portfolios dos outros fotografos, nós próprios deveríamos avaliar o nosso trabalho... Há, de facto, alguns que ficam muitos anos e que não produzem grande coisa, ao fim de algum tempo.

EXP. — Como é o «meeting» anual dos fotógrafos da Magnum?

F.H. — Realiza-se todos os anos em Junho, rotativamente em Paris, Nova Iorque e Londres, onde se situam as sedes da Magnum. Há sempre quatro ou cinco que estão em reportagem e não podem ir, mas, em geral, os fotógrafos organizam o ano de trabalho de modo a estarem presentes. É o momento em que eles podem gerir «a loja» colectivamente, em que discutem a entrada de novos fotógrafos, a evolução do mercado ou da técnica. Discute-se tudo durante quatro dias, mas o momento mais forte e que é mais revelador do estado do grupo é a escolha dos novos fotógrafos. Actualmente a Magnum tem 39 membros; na última reunião, em Paris, foram admitidos dois novos membros — Larry Towell, do Canadá, e Steve McCurry, dos Estados Unidos —, que uma semana depois passam a ter os mesmos direitos dos fotógrafos que estão lá desde há 35 anos. Foram aprovados também três novos «nominee», John Vink, belga, Paul Lowe, da Grã Bretanha, e David Harvey, dos Estados Unidos, e um correspondente na China, que usa o pseudónimo de Mr. Mao.

A. — O importante é que cada fotófrafo tem um só voto, qualquer que sejam os seus rendimentos ou a antiguidade. Foi esse o golpe de génio dos fundadores, Capa, Cartier-Bresson, «Chim» (David Saymour) e Rodger: criar uma estrutura muito leve e em que cada um tem o direito a um voto. 

EXP. — A direcção da agência é sempre entregue a um fotógrafo?

A. — A direcção, não. Os directores são profissionais, são uma espécie de primeiro ministro. Os fotógrafos são o «politburo» e eu, como vice-presidente da Magnum de Paris, sou o secretário geral do «politburo»: asseguro que as grandes direcções definidas pela agência no momento da assembleia geral são seguidas pelos directores. E também as orientações aprovadas pelo «board», que é uma espécie de parlamento, com onze pessoas que são eleitas todos os anos, e de que fazem parte o presidente geral, os vice-presidentes, etc. 

F.H. — Durante muito tempo, não houve directores, e o fotógrafo que era vice-presidente devia tomar uma série de decisões que o obrigava, de facto, a aprender uma nova profissão e a suspender em parte o seu trabalho. Desde 1987, já não são os fotógrafos que gerem o dia a dia. 

EXP. — Qual é a relação dos fotógrafos da Magnum com a actualidade?

F.H. — Por vezes acontece que nos cruzamos com ela, mas a Magnum não está equipada para fazer a actualidade — para a actualidade a quente. Claro que se há coisas que nos vêm parar às mãos, como foi o caso, por exemplo, da Praça de Tian-an-Men, ou de Salgado com o atentado contra Reagan, nós sabemos vendê-las depressa, tal como os outros. Mas não é a nossa vocação. Temos o maior «staff» de fotógrafos — temos 50 fotógrafos de «staff» —, enquanto Sipa, Sigma ou Gamma têm uns 25, mas eles dispõem de dois mil correspondentes. Por outro lado, esses 50 fotógrafos da Magnum andam em permanência pelos quatro cantos do mundo e, se acontece qualquer coisa, eles podem sempre escolher se a querem cobrir ou não querem. 

Aconteceu-nos o caso de termos um fotógrafo na União Soviética, durante o putch de Moscovo, o Sebastião Salgado, que estava a fazer uma reportagem sobre as indústrias no Cazaquistão. Perguntámos-lhe se queria ir para Moscovo e disse-nos que não. Para ele, era mais importante, para a História, fazer a indústria no Cazaquistão, que tinha preparado durante dois anos, que é de difícil acesso, etc, porque, no fundo, isso seria também um testemunho do que foi o comunismo. Disse-nos para arranjarmos outro fotógrafo, e felizmente o Georgui Pinkhassov andava por lá. Não existe a obrigação, na Magnum, de fazer a actualidade, mas há na agência fotógrafos que têm essa fibra ou que fazem essa escolha. James Nachtwey, por exemplo, é um tipo que gosta de seguir a actualidade, é esse o seu tipo de expressão: se há borrasca na Somália, é para lá que ele vai, e a seguir parte para a Bósnia. Mas o próprio Nachtwey, depois de entrar para a Magnum, fez a primeira reportagem em profundidade da sua carreira, sobre a poluição na Europa de Leste, onde passou seis meses — uma fantástica reportagem a cores, para a «National Geographic».

EXP. — Fala-se muito da perda de poder da fotografia de imprensa ou do fotojornalismo, mas o vosso trabalho não é uma prova do contrário?

A. — Depende daquilo a que se chama fotojornalismo. Se são as fotografias publicadas nos jornais, muitos de nós, de facto, não somos fotojornalistas. O fotojornalismo para mim é uma ética, ou seja, é uma visão, é interessarmo-nos pelo outro em primeiro lugar, antes do interesse por nós próprios. Mesmo se existe uma mensagem pessoal que se quer fazer passar, é sempre através da visão que se tem sobre os outros. É isso o fotojornalismo: interessar-se pela visão dos grandes acontecimentos que se passam no mundo. Não quer dizer que sejam os acontecimentos a quente, pode ser outra coisa. Quando o Patrick Zachmann se interessa pelos chineses da diáspora, através deles é o problema da emigração que o interessa. Quando Salgado se dedica a fotografar o trabalho manual, é o homem, na sua dignidade, naquilo que vai desaparecer. Eu interesso-me pelo Islão, mas não é só a religião, é a ideologia do Islão, é o ressurgimento do Islão. São fenómenos absolutamento contemporâneos e que tocam não um país só mas o mundo inteiro. 

F.H. — Julgo que existe, de facto, um problema profundo na utilização da fotografia de imprensa. Passou-se de uma época, nos anos 50, em que era o magazine que fazia descobrir o mundo, para outra em que é a televisão, e essa transição ainda não está acabada. Na fase dos anos 70-80, a imprensa pensou que ia resolver o problema passando para a cor, sem nenhuma reflexão; depois, disse-se que o importante era tratar a actualidade através dos personagens, apareceu «The People», e tudo isso trouxe algumas distorsões. Depois surgiram alguns fotógrafos que se puseram a fazer marketing fotográfico, ou seja, a conceber projectos de reportagem de um modo tal que, antes mesmo de tomarem o avião, já sabiam que fotografia íam trazer, e tiveram um êxito louco. Estou a pensar, por exemplo, em «Rois sans Royaume», etc — são verdadeiros produtos de marketing. 

Hoje estamos numa situação em que a fotografia de imprensa não é gerida por ninguém, e em que é preciso encontrar novos gestores, formar os quadros que saibam, agora, ter um resposta que seja um complemento da televisão. Ninguém pode ter a pretensão de bater a tv em velocidade. Isso está resolvido, acabou. Nós sabemo-lo desde há dez anos, os jornais descobriram-no com a Guerra do Golfo, e agora interrogam-se sobre o que hão de fazer. Nós temos quase vontade de lhes dizer: é melhor assim, publiquem depois da televisão. Pela memória. As pessoas são alertadas pela tv, de fugida, mas depois vão comprar o jornal e vão olhar com outra distância, com tempo, vão aprender outras coisas. É aí que está o nosso papel. 

Por acaso, e não por marketing, a Magnum radicaliza-se nessa direcção. Nos casos em que, há dez anos, os fotógrafos da Magnum faziam reportagens de três meses, hoje fazem reportagens de três anos, ou de seis anos. Como Abbas sobre o Islão, Eugene Richards e a América social, Salgado e o trabalho, Zachmann e os chineses. Se fôssemos uma empresa que pensa no marketing teríamos feito a mesma coisa, mas foi por acaso, sem haver uma decisão prévia. A Magnum radicaliza-se face ao mercado actual. Estamos na crista da onda: as pessoas procuram os valores, procuram uma redefinição do fotojornalismo e nós já lá estamos... 

EXP. — Há ainda os circuitos das exposições, dos livros... 

F.H. — Há cada vez mais..., e essa é uma direcção importante. Veja-se o caso de Lisboa, onde temos três ou quatro exposições ao mesmo tempo. Esta exposição, «À L'Est, de Magnum», é acompanhada por um audiovisual que foi criado para o Festival de Arles e ambos deram a volta à Europa, desde a Andaluzia até à Suécia, passando pela festa do «Unita», em Itália. Chegamos com 130 fotografias, ou 700 no audiovisual, e encontramo-nos directamente com o público — e isso a imprensa não pode fazer, não tem esse espaço. Neste caso, a imprensa serve de correia de transmissão, para trazer o público às nossas exposições. E há, de facto, a emergência de um efeito camaleónico da fotografia que talvez nos permita, amanhã, fazer «dazibaos» para afixar na cidade. Cartazes fotográficos com um texto, porque não? Mas a imprensa toca milhões de pessoas ao mesmo tempo, é esse o lugar real, aquele onde é mais necessário tentar convencer, onde é preciso ter um espaço e tentar respeitar a tonalidade dada pelos fotógrafos. É essa a via principal.  

A. — É também da Imprensa que vem o dinheiro, porque não são os livros e as exposições que nos permitem viver. São mais operações de prestígio que, em seguida, nos permitem publicar fotografias nas revistas e, apesar de tudo, o fotojornalismo é o que nos permite viver.

EXP. — Mas cada vez as reportagens são mais longas e, portanto, mais caras. Isso não agudiza as dificuldades do fotojornalismo?

A. — Quanto a isso, cada fotógrafo tem a sua resposta pessoal. Por vezes são as bolsas que asseguram esse tipo de trabalho, e depois são as revistas que permitem continuar...

F.H. — Há mais do que uma fonte de financiamento. Há evidentemente a Imprensa, as bolsas, o «sponsoring», e há também outros tipos de trabalho, ou seja, um fotógrafo faz dois ou três dias de publicidade e ganha tanto dinheiro que depois o pode investir em dois ou três meses de reportagem. Outra resposta, que estamos a tentar organizar cada vez melhor, são os arquivos. Veja-se o caso de um fotógrafo com 20 anos de carreira. Se tem os arquivos bem organizados, acessíveis numa quinzena de países, nomeadamente com a chegada de todo o arsenal electrónico, com a imagem sobre foto-cd, esse fotógrafo vai poder dispor de uma  fantástica almofada de rendimentos.

O exemplo de Sebastião Salgado foi-nos muito útil porque nos serviu para perceber que não nos podemos contentar com uma única fonte de rendimento, que era a imprensa, para viabilizar as reportagens de longo curso. É preciso multiplicar os recursos, é preciso capitalizar os arquivos. Mas primeiro que tudo são os fotógrafos que correm riscos financeiros. Há um determinado momento em que eles decidem que têm um pequeno financiamento e resolvem avançar. É o espírito de «free lancer», o espírito de risco, e essa é uma diferença em relação às outras agências: é preciso que a reportagem seja boa, porque é o dinheiro deles que está em jogo. E quando trazem uma história, depois a coisa arranca, porque tem qualidade.

EXP. — Esse é o espírito da Magum. E qual é o estilo da Magnum?

A. — Há uma tradição, que noutros tempos era o preto e branco e uma fotografia... não direi humanista, porque a palavra está gasta, mas o interesse pelo homem. São os dois princípios do início. Mas não há um estilo Magnum. Eu sou muito diferente, por exemplo, de um fotógrafo como Harry Gruyaert, que trabalha a cor de um modo muito pessoal, e agrada-me muito que ele também esteja na Magnum.

EXP. — Mas pode falar-se numa ideologia Magnum? 

A. — Não sinto que haja um estilo Magnum, ou uma ideologia Magnum. Há, sim, uma perspectiva Magnum, que é o interesse pelo que se passa à nossa volta, a curiosidade pelo Homem, o interesse em mostrar essas imagens. Mas os estilos são de tal modo diferentes que...

F.H. — O que eles têm em comum é a curiosidade pelo Homem, mas isso não tem nada a ver com a fotografia. Pegue-se nos fotógrafos da Magnum um a um e ver-se-á que têm todos estilos muito diferentes, no que diz respeito à própria construção das histórias. As aproximações aos temas são muito diferentes. Podem tirar-se conclusões pelo tema, não pelo estilo.

Esta exposição é o exemplo, mais uma vez. Porque é que uma agência ía arrastar os pés para um país num momento em que não ele interessava a ninguém? É uma exposição que é feita de tempos fortes e de tempos fracos. Há Praga 68, Budapeste 56, a construção e a destruição do Muro, mas isso tem valor porque há uma fidelidade que faz com que, hoje, se possam ver também os «kolkhozes» — eles desapareceram, já não se sabe o que é, mas reencontram-se aqui. Há a vida quotidiana, que não é feita de gente que andava sempre com algemas, era mais complicado que isso. De um país para outro, o comunismo não era o mesmo. Esse testemunho, no total, é feito de tempos fracos e fortes, e é ligado por uma curiosidade comum de Magnum, qualquer coisa que é algo abstracto, mas que circulava. Hoje somos os únicos a ser capazes de apresentar um testemunho como este, devido, precisamente, a essa circulação de curiosidades, pelas correntes de pensamento e pelas grandes regiões, a China, a Europa de Leste, a América, naturalmente. Os estilos fotográficos são muito diferentes, e na exposição também se vê isso muito bem — Carl de Keyser, Harry Gruyaert, Abbas, Salgado, ou Cartier-Bresson, são todos eles fotógrafos que trabalham de modo diferente e que dão testemunhos diferentes.

EXP.  Há resistência em aceitar os novos membros que têm estilos fotográficos totalmente diferentes, do ponto de vista gráfico?

A. —  Há uma preocupação pela estética que é única na nossa agência. Mas não é uma imposição da agência, são os próprios fotógrafos que têm uma preocupação estética, ao mesmo tempo que ética, ideológica ou política, e é isso que diferencia a Magnum. Não há um estilo, há estilos. Posso dar um exemplo: não é um segredo para ninguém que Martin Parr foi um caso muito controverso no seio da Magnum, e houve uma resistência muito forte de alguns fotógrafos à sua entrada, quer no momento em que foi votado como nomeado, quer, em seguida, como associado.

F.H. — ...E também houve uma resistência muito forte para que ele não saísse.

A. — Exactamente. Porque se achou que é interessante não ter sempre a mesma imagem da Magnun, o mesmo interesse pelos 35 mm, o preto e branco... a tradição histórica da Magnum. É bom haver um fotógrafo que tem os mesmos interesses que nós, que se interessa pela sociedade à sua volta, como todos os outros, mas que a trata de modo diferente. 

EXP. — Mas Parr ainda não passou a membro...

A. — Não. É associado, 

EXP. — Está ainda no purgartório?

A. — Não é um purgatório, é uma iniciação.


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A L'Est de Magnum1945-1990 - Quarante'cinq ans de reportage derrière le rideau de fer


A exposição «Magnum no Leste» é apenas a terça parte de um projecto que inclui também um espectáculo audiovisual itinerante e um livro. Mesmo que a exposição tenha encontrado em Lisboa excepcionais condições de montagem, numa insólita galeria a que Abbas e François Hébel não deixaram de atribuir uma aparência estalinista adequada ao seu tema, a falta dos outros dois componentes continua a ser grave. 


A exposição foi criada em 1990 para o festival «L'Aventure de l'Information», em Istres, e o diaporama estreou-se nos Encontros de Arles do mesmo ano. Desde então, tem sido constante a sua circulação conjunta - e não é de um mero efeito de acumulação que se trata. Expostas, projectadas em grande ecrã, publicadas em livro, as imagens atravessam diferentes condições de eficácia e confirmam «o efeito camaleónico» da fotografia de que fala François Hébel, na entrevista ao lado. Mas não é a exposição, como se deve saber, o melhor veículo para fazer circular a fotografia.


Entretanto, o livro-catálogo editado na sua versão original pela Arthaud, Paris - A L'Est de Magnum. 1945-1990 - Quarante'cinq ans de reportage derrière le rideau de fer -, foi traduzido em várias línguas. Ele é o suporte de muitas mais que as 130 fotografias expostas e, em especial, de uma intervenção escrita que, desde a dedicatória «às gerações que não conheceram a última guerra, o marxismo e as suas esperanças, nem os kolkhozes, nem os tanques», se articula com a imagem e a prolonga. 


Para comentar as diferentes etapas do período coberto pelos fotógrafos da Magnum, os editores convidaram sete editorialistas da Imprensa nascida com a derrocada do poder soviético, de Moscovo, Budapeste, Berlim e Varsóvia. São, assim, testemunhos vindos do interior que se confrontam com as imagens colhidas quase sempre pelos observadores exteriores que eram os fotógrafos da agência. E será ainda curioso observar como, face à conturbada evolução do Leste europeu, esses textos de 1990 nos parecem hoje tão datados, tão tragicamente desarmados.


De Werner Bischof, Robert Capa, David Seymour, Cartier-Bresson, George Rodger, Ernst Haas ou Elliott Erwitt, até Susan Meiselas, Raymond Depardon, Sebastião Salgado, Martin Parr, Alex Webb e James Nachtwey… 

sábado, 19 de junho de 1993

 1993  Mês da Fotografia   


"O fim de século como epopeia"


Sebastião Salgado


Na inauguração do CCB

EXPRESSO Revista 19 Junho 1993


A AMBIÇÃO e o gigantismo do trabalho de Sebastião Salgado têm alguns (raros) precedentes, mas há um facto inédito na exposição que o Centro Cultural de Belém acolheu por iniciativa do Mês da Fotografia. É a primeira vez que em Portugal é possível ver uma obra de tal importância no momento exacto da sua divulgação mundial.

São 250 imagens em exibição e mais do dobro projectadas em dois diaporamas — uma das quatro edições (mais uma quinta abreviada) da exposição «Trabalho» (ou «Workers / La Main de l'Homme / Trabajadores», etc) em circulação simultânea por vários continentes. E ainda um livro publicado em português pela Caminho, com 395 fotografias e a excepcional qualidade de impressão assegurada pela co-edição internacional em oito versões nas oficinas de Jean Guenoud, na Suiça (Trabalho — uma Arqueologia da Era Industrial, 400 págs + separata de legendas com 24 págs., 19 950$00).

Tudo, nesta aventura de Sebastião Salgado, se afigura desmesurado: a década que decorreu desde a sua concepção, em 1982-84; os seis anos de deambulação por vários continentes, entre 1986 e 91; a difusão mundial das diferentes reportagens disputada por revistas e jornais de inúmeros países, incluindo o EXPRESSO, que as publicou em destacáveis da «Revista» entre 26 de Outubro e 7 de Dezembro de 1991; a mobilização das maiores instituições dededicadas à fotografia, a Magnum, a Kodak, a Fundação Aperture, de Nova Iorque, o Centre National de la Photographie, de Paris (sem esquecer a sua mulher, Lélia Wanick Salgado, a imprescindível directora de toda a operação); e, por último, o êxito de público que acompanha esta exposição (mais de 25 mil pessoas em Paris, nas primeiras três semanas). 

Mas esta superprodução fotográfica não é construída apenas sobre um efeito de quantidade, mesmo que esta lhe seja essencial: Salgado quis estabelecer um panorama do estado do mundo à beira do fim do século — «Estas imagens, estas fotografias, são o registo de uma era, uma espécie de arqueologia de um tempo que a história conhece pelo nome de Revolução Industrial. Um tempo no qual o eixo central do mundo estava naquilo que estas imagens registam: o trabalhador, a mão do homem» — e propor uma resposta para a situação que documentou — «Criar um mundo novo, revelar a nova vida, recordar que existe um limite, uma fronteira para tudo, excepto para o sonho humano. Moldar com as mãos o mundo, revelar com os olhos a vida, recordar nos sonhos aquilo que virá». 


O INVENTÁRIO, aqui, é também epopeia, o inquérito é também manifesto, mas exaustivamente fundamentado pela formação de economista de Sebastião Salgado (nasceu em Aimores, Minas Gerais, em 1944; estudou direito durante um ano e depois economia; fez o mestrado nas Universidades de São Paulo e Vanderbilt, USA, 1968, e o doutoramento em economia agrária pela U. de Paris, 69-71; trabalhou em Londres para a Organização Internacional do Café, 71-73, antes de enveredar pelo foto-jornalismo e de fazer em Portugal, em 1975, a «escola de fotojornalismo»). A sua obra é um último apelo para mudar o planeta: é um discurso globalizador sobre um mundo apreendido como um eco-sistema ameaçado. Entre a mão e o sonho, porque «a história do ser humano é a história da perseverança» e porque «não existem sonhos solitários». Dir-se-ía que o Trabalho, título da edição portuguesa, é a revisão necessária de outro livro fundador, O Capital. 

No terreno da fotografia, é a um recentramento da sua história e da sua eficácia que se assiste. A fotografia mostra, é um admirável instrumento de observação do real, desde, por exemplo, o projecto de Edward S. Curtis para fixar o retrato da América índia em extinção, entre 1900 e 1930, ou da campanha para a Farm Secutity Administration, 1935-41 — é, aliás, com os maiores projectos colectivos da história da fotografia que se mede a actividade de Salgado. E deve fazê-lo com a máxima perfeição formal possível para ser a evidência de uma verdade total, em que se inscreve desde logo a vontade da mudança: «Seria um crime apresentar uma fotografia mal composta, era como violar a fortaleza desta gente. A preocupação estética é para se compreender melhor o problema social», dizia na entrevista publicada por Jorge Calado no EXPRESSO de 13/4/90, a propósito de Autres Ameriques (86).

De facto, a todos os discursos sobre o excesso de imagens e a indiferença nascida da simultânea mediatização de todos os lugares, Salgado responde também pelo excesso: de imagens nunca vistas, de visibilidade em cada um dos seus fotogramas, de energia e dignidade das personagens da sua epopeia, de concentração de multidões em movimento nos 35 milímetros de película impressionada a 1/250 de segundo. 

Não é o único caminho da fotografia, mas por vezes, como aqui, é possível reconhecê-lo como o caminho decisivo. Sabendo-se que a sua eficácia reside não na «pureza» do meio (a ideia de «fotografia pura» é um vestígio de debates de outros tempos), mas na determinação, no saber e na emoção de um olhar. E na solidez de um projecto maduramente concebido («Para ele não há momentos decisivos, apenas vidas decisivas e por isso fotografa 'com toda a sua cultura e toda a sua ideologia'», J. Calado, EXPRESSO, 26/10/91).


É TODO um atlas da sobrevivência do trabalho manual no mundo de hoje que Salgado estabelece: as agriculturas extensivas da cana-de-açucar no Brasil e em Cuba, do chá no Ruanda, do tabaco em Cuba e dos perfumes na ilha francesa da Reunião; depois, a pesca tradicional, na Galiza e na Sicília (o atum), e um matadouro no Dakota do Sul; a seguir, mais largamente, as indústrias, com os têxteis no Bengladesh e no Casaquistão, as bicicletas na China, motoretas e motos na Índia, automóveis na Ucrânia, Rússia, Índia e China (onde são ainda os homens que trabalham e não robots como nas fábricas dos países mais desenvolvidos), os estaleiros da Polónia e da França, logo seguidos pelo seu oposto grotesco, o desmantelamento de navios nas praias do Bengladesh, e as indústrias extractivas, titânio e magnésio no Cazaquistão, aço em França e na Ucrânia, com uma deriva pelos caminhos-de-ferro em França, e ainda o minério de ferro, novamente no Cazaquistão. E a viagem continua com as descidas aos infernos do carvão na Índia, do enxofre na Indonésia, do ouro na Serra Pelada, Brasil. Depois é o mundo do petróleo, com as plataformas marítimas de Baku e a operação de controlo dos poços do Kuwait, no final da guerra. Por último, os grandes desafios que mudam a superfície da terra, o Eurotúnel da Mancha, a barragem de Sandor Sarovar e o canal Rajasthan, ambos na Índia.

Cada um destes tópicos conta uma história e condensa um filme no tempo necessário: dos planos gerais da paisagem alterada passamos ao plano aproximado das mãos que trabalham, conhecemos os gestos repetidos, o esforço e o descanso de homens, mulheres e crianças. Há retratos que se destacam, de olhos nos olhos, e há grupos que se formam, talvez para a despedida do fotógrafo que viveu demoradamente com os trabalhadores em cada um dos lugares visitados. Num dos diaporamas pode assistir-se ao mais empolgante desfile de retratos que recordo, fixando aceleradamente os rostos, os corpos e os grupos de gente de todas as raças — é a humanidade que Salgado fotografa no que julgamos, à distância, ser apenas trabalho desumanizado e exploração (é também a mítica exposição «The Family of Man», de 1956, que Salgado refaz sozinho, mas sem as marcas do humanismo idealista que Barthes criticou nas Mythologies: é a história, a história do trabalho e da «perseverança», que está «no fundo» destas fotografias e não «a natureza, as suas 'leis' e os seus 'limites'».)


SEBASTIÃO Salgado não podia saber que o tempo do seu trabalho (86-91) ía ser o mesmo da derrocada dos «socialismos reais». No entanto, a obra que construíu, sobre as supostas fronteiras políticas, a Leste e a Oeste, é, agora, a mais formidável resposta de esquerda ao desabar das esperanças de largos sectores das classes trabalhadoras e, num mesmo processo convergente, das concepções políticas libertadoras que assentavam nas condições do trabalho nascidas com a Revolução industrial.

A classe operária clássica, cujas condições de exploração teriam proporcionado a tomada de consciência do seu poder colectivo, dissolve-se, na Europa, num processo de terciarização crescente das economias mais desenvolvidas. Os poderes que se ergueram em seu nome, usurpando-o como miragem messiânica ou ficção despótica, desmoronaram-se por toda a parte. O que resta do trabalho? O que fotografa Sebastião Salgado. A dignidade, a força física, a vontade de resistir, o sonho.

A seu modo, ele refaz uma última Internacional («neste fim de século, que viu desmoronar o marxismo de estado, Salgado realiza fotograficamente o impossível: a reunião, pela última vez, dos proletários de todo o mundo», escreveu Jorge Calado, EXPRESSO, 26/10/91), irmanando os trabalhores ocupados nas mono-culturas que alimentam o Primeiro e o segundo Mundo, com os das grandes unidades industriais que utilizam a mão-de-obra intensivo do Terceiro Mundo (a transferência das indústrias pesadas e poluentes para fora dos países desenvolvidos) ou com as empresas faraónicas votadas à conquista da sobrevivência, como a construção dos canais de irrigação na Índia.

Salgado fotografa a permanência de práticas produtivas inalteradas desde há séculos (o açucar, as pescas), que sobreviveram às concepções simplistas do progresso, mas não descrê da mudança: para ele, «a crescente automatização de indústrias no mundo superdesenvolvido reflecte a materialização do conhecimento da espécie humana como um todo e de sua evolução». 

Por outro lado, as suas fotografias são, num território cultural habitado pela ideia de catástrofe de fim de século, um olhar apostado no futuro. A produção artística que ocupa actualmente o lugar mais visível, na cena americana ou na recém-inaugurada Bienal de Veneza, por exemplo, toma como ideia central a crise económica, a ameaça da doença (a sida), um terror sem identidade ou explicitamente resultante do recrudescimento dos confrontos com a pobreza, com as minorias étnicas, com os novos autoritarismos; e nessa amálgama imprecisa de ocasiões terminais é também a reedição da ideia do fim da arte que em simultâneo se exercita no interior fechado do «mundo da arte».

Sebastião Salgado trabalha contra a corrente. O retrato global que estabelece é, também, o de um mundo ameaçado, pela exploração desenfreada e o desilíbrio fatal entre os que têm acesso ao consumo e os que sobrevivem cada vez mais perigosamente («O Planeta dividido, sempre. O Norte em uma nova crise: a do excesso. O Sul, cada vez mais mergulhado na de sempre: a carência»). Mas ele mostra-nos que ainda há tempo, que ainda há lutas possíveis, e estabelece, nas suas fotografias e nos seus textos, direcções necessárias — a leitura paralela das suas longas legendas informativas é essencial. Com uma visão ecológica da História («a trajectória do bicho-homem, o que se adapta, o que sobrevive, o que crê. O que resiste, se preserva»), ele aposta nas mãos que trabalham e nos efeitos libertadores da desaparição do trabalho manual explorado. E nas possibilidades de regeneração do planeta («o cio da terra, o mais fecundo»). 


SALGADO mudou a natureza do foto-jornalismo, ou criou um outro modelo de intervenção, mais amplo ainda do que o ensaio fotográfico como o praticava W. Eugene Smith (1918-1978). Evitando as armadilhas do espectacular e do moralismo, e em especial mudando o conceito de tempo («desenvolveu-se na imprensa um conceito terrível que é o do imediato, e com a televisão o de super-imediato», dizia numa entrevista de 1986, Patrick Roegiers, «Le Monde»). 

Cada reportagem de Salgado significa entre quatro semanas e quatro meses de permanência num mesmo local. «Para realizar uma fotografia preciso de tempo, de conviver com as pessoas. Chega o momento um que você já não incomoda ninguém. A fotografia muda de sentido e passa a ser parte da vida. É essa a riqueza. A câmara é um instrumento de relações humanas» (EXPRESSO, 13/4/90).

Depois de Trabalho, Sebastião Salgado já tem planos para um nova epopeia — o que não o impediu de ter cumprido há poucas semanas a encomenda para, durante alguns dias, retratar a cores o presidente Clinton. As grandes deslocações da população do globo, nas regiões áridas de África, do Leste europeu para Ocidente e do Sul para a Europa desenvolvida, nas fronteiras do México, na Ásia, serão o tema desse projecto igualmente desmesurado, com o nome provisório de «A Travessia» ou «O Homem da Travessia».