quarta-feira, 1 de outubro de 2025
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José Veloso de Castro, major; Fotógrafo de Angola 1904-1914 (II)
É, sem dúvida, um grande fotógrafo, com uma prática diversificada, em cenas de acção e guerra, na observação de nativos e retratos, lugares e cenas de trabalho, com um notável sentido da composição e enquadramento no espaço natural, com um forte interesse sociológico que parece respeitador dos seus modelos, e um gosto pelo auto-rertrato que o identifica como fotógrafo consciente.
Um grande fotógrafo de ou em Angola, fotógrafo militar e colonial, antes de Elmano Cunha e Costa (1935-1939). Foi editor de séries de postais, revistas e livros, mas certamente não expôs em vida.
Curadoria: Carlos Pedro Reigadas. Impressões de Roberto Santandreu (colaboração da Galeria Arte Periférica)
"Actual rei do Congo" - 1914
terça-feira, 30 de setembro de 2025
José Veloso de Castro, major; Fotógrafo de Angola 1904-1914
O Pedro Reigadas dá a conhecer um grande fotógrafo no Museu Militar: “José Veloso de Castro. A Revelação de um Artista” até 31 de dezembro.
Veneza 1995: Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes / Jean Clair (I)
Portugal regressou à Bienal de Veneza em 1995 (depois de uma pausa desde 1988), com Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes, apresentados pelo comissário José Monterroso Teixeira, então director do Centro de Exposições do CCB - ao tempo da SEC de Santana Lopes.
Por
essa altura, já Álvaro Siza fora indigitado para projectar um falado
pavilhão de Portugal nos Giardini, mas nunca chegou a ser
disponibilizado espaço para a construção. Álvaro Siza voltaria a ser
"anunciado" em 1997 e em anos seguintes.
Nesse mesmo ano de 1995
chegou a ser convidada Paula Rego, que terá preferido aguardar por uma
situação mais sólida e pelo pavilhão de Siza.
Também em 1995 João Fernandes foi o comissário nacional na 1ª Bienal de Joanesburgo.
"Três em Veneza"
Expresso/Cartaz de 03-06-95 - II
Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes
Portugal volta a estar presente na Bienal de Veneza — que se inaugura no próximo dia 11 —, depois de uma ausência que se arrastava desde 1988. A falta de um pavilhão próprio, que numa primeira fase pareceu comprometer ainda a possibilidade da participação nacional, acabou por ser resolvida com o aluguer de uma galeria de exposições situada na Praça de São Marcos, que se manterá aberta durante os dois primeiros meses da Bienal (a decorrer até 10 de Outubro).
Os escultores Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes foram os artistas escolhidos para integrarem a representação portuguesa, de que é comissário José de Monterroso Teixeira, também director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém. Trata-se de uma selecção que merecerá certamente um alargado consenso, uma vez que as obras dos três artistas têm assegurado um notório dinamismo recente da escultura portuguesa e já conquistaram significativos níveis de circulação e reconhecimento internacional. Sabe-se, porém, que numa primeira fase foi ensaiada a hipótese de um convite a Paula Rego — que, aliás, já representou a Grã-Bretanha na Bienal de São Paulo —, acabando os artistas depois escolhidos por terem um papel activo no encontro da referida galeria.
A comparência de Portugal na Bienal de Veneza, que partilha com a Documenta de Kassel (de quatro em quatro anos) a máxima notoriedade entre as grandes manifestações artísticas mundiais, é entendida como uma condição indispensável para assegurar uma plena visibilidade internacional dos artistas portugueses. No entanto, essa participação não ficará condignamente assegurada sem a construção de um pavilhão próprio na área dos Giardini di Castello.
Já em 1994, a SEC convidou Siza Vieira para vir a ser o autor do projecto desse pavilhão, para o qual, no entanto, não está ainda atribuida uma localização precisa, condição prévia para o seu estudo arquitectónico. Será um investimento de grande vulto, cuja hipótese de concretização, ainda algo nebulosa, terá de ser equacionada nos próximos orçamentos do Estado...
Note-se que foi sempre precária a presença portuguesa na Bienal de Veneza, que este ano comemora um século de existência. Depois de participações esporádicas em 1950 e 1960, que colocaram sempre em confronto o regime político anterior com a generalidade dos artistas plásticos, Portugal esteve presente em 1976, 1978, 1980, 1982, 1984 e 1986, podendo dispor nas primeiras edições do Pavilhão Alvar Aalto, libertado pela Finlândia, que decidira juntar-se aos outros países nórdicos.
Para a edição do centenário, a Bienal foi confiada pela primeira vez a um director não italiano, o francês Jean Clair, crítico e director do Museu Picasso. A grande atracção deste ano será a gigantesca exposição, realizada em colaboração com o Palácio Grassi, da Fundação Fiat, em que Jean Clair que se propõe reexaminar a arte do século XX sob o ângulo da representação do corpo humano.
"Veneza e Joanesburgo: bienais"
Expresso/Cartaz de 18-02-95 - I
Portugal não deverá estar presente na
próxima edição da Bienal de Veneza, que se inaugura a 11 de Junho
festejando o seu centenário. Depois de uma interrupção de quatro anos da
participação nacional, Santana Lopes nomeara no início de 1994 José
Monterroso Teixeira, director do Módulo de Exposições do Centro Cultural
de Belém, para comissariar a representação deste ano e para desenvolver
o projecto de construção de um pavilhão nacional permanente em Veneza.
No
entanto, a Bienal acabaria por comunicar «a impossibilidade de conceder
espaços expositivos adequados às necessidades de todos os países que
não dispõem de pavilhão permanente», segundo os termos da resposta
oficial à candidatura portuguesa.
As participações <nos Giardini> ficariam assim reduzidas a 29 países.
Entretanto, terá surgido nos últimos dias uma tentativa de solução de compromisso com os países não admitidos, através da procura de espaços alternativos em colaboração com a Comuna de Veneza, eventualmente nos antigos armazéns de sal, as Zattere, que a Bienal costuma também ocupar. Segundo José Teixeira, «estão a ser desenvolvidos esforços diplomáticos e outros 'lobbings' para acolher as obras de artistas de países sem pavilhão».
Por outro lado, Siza Vieira foi já escolhido para realizar o projecto do pavilhão português na área da Bienal, os Giardini. Aceite o convite, o arquitecto aguarda «a afectação do espaço pelas autoridades venezianas» para iniciar o seu estudo.
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Enquanto se aguarda uma informação final sobre a ida a Veneza, foi ontem apresentado no Museu do Chiado o projecto da representação nacional na 1ª Bienal Internacional de Joanesburgo, que se inaugura já no dia 28. Por iniciativa do Instituto Português de Museus, a quem compete agora a responsabilidade da divulgação da arte portuguesa, foi nomeado comissário para esta exposição o director das Jornadas de Arte Contemporânea do Porto, João Fernandes, que seleccionou obras de Ana Jotta, Ângela Ferreira, Luís Campos e Roger Meintjes, um sul-africano radicado em Portugal. A representação terá o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto Camões, Fundação Gulbenkian, Banif e Fundação Horácio Roque.
Na África do Sul deverão estar presentes artistas de cerca de 60 países, numa bienal que definiu a sua orientação segundo dois temas: «Alianças voláteis», sobre «as diferenças culturais e a marginalização por motivos de sexo, raça, nacionalismo, religião, etc»; e «Descolonizando as ideias», sobre «a identidade e os efeitos da colonização nas comunidades culturais através do mundo».
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Em Veneza, por seu turno, o tema «Identidade e Alteridade» presidirá a uma grande exposição retrospectiva sobre a representação do corpo e em especial sobre o retrato ao longo do século XX — desde Degas, Rodin e Thomas Eakins (1895/1905: «a era do positivismo»), até Lucian Freud, Auerbach, Bill Viola, Bruce Nauman, Louise Bourgeois, Helmut Newton, Mapplethorpe, Andres Serrano e outros (1980/1995). O projecto é da autoria do comissário geral da Bienal, que pela primeira vez não é um italiano: Gérard Régnier, director do Museu Picasso e crítico de arte sob o nome de Jean Clair.
Trata-se, certamente, de uma das figuras
mais polémicas do universo da arte contemporânea, e a mais odiada desde
que publicou em 1983 o livro-manifesto "Considérations sur l'état des
beaux-arts. Critique de la modernité" («Les Éssais», Gallimard).
Especialista em Duchamp (foi o responsável pela sua retrospectiva que
inaugurou o Centro Compidou), comissário de «Viena 1900» e da recente
«L'Âme au corps», Jean Clair conseguiu fazer aceitar pela Bienal, por
ocasião do seu centenário, o projecto de uma exposição gigantesca de
mais de 400 obras, dividida pelo Palazzo Grassi, cedido pela Fiat, e
pelo pavilhão central dos Giardini, a qual se substituiu às diversas
actividades paralelas incluidas no programa habitual, nomeadamento à
secção «Aperto», dedicada a jovens artistas.
A exposição
apresenta-se como uma «história da arte do nosso século em oito
capítulos», equacionada em relação com os progressos da ciência e com a
evolução da noção de identidade pessoal (comemorando os cem anos da
introdução do bilhete de identidade) e também social, de classe, de
nação e de origem étnica. «A história do rosto humano» e «a fatalidade
da anatomia na era da modernidade» são dois subtítulos do projecto, em
que colaboraram Hans Belting, Gabriella Belli, Maurizio Calvesi, Gillo
Dorfles e Giulio Macchi.
Nas representações nacionais, a Espanha
far-se-á representar por Eduardo Arroyo e pelo escultor Andreu Alfaro
(Valência, 1927), enquanto Jean Clair também seleccionou López Garcia e
Saura. A França (através de Catherine Millet) designou César, que
realizará uma obra projectada em 1960; a Grã-Bretanha, o pintor Leon
Kossoff; os Estados Unidos, o video-artista Bill Viola; a Grécia, Lucas
Samaras, de carreira americana; a Alemanha, Katharina Fritch, Martin
Honnert e Thomas Ruff; a Suiça, a dupla Peter Fieschli e David Weiss.
A Bienal, que decorrerá até 15 de Outubro, inclui também uma grande mostra de arquitectura, dirigida por Hans Holein.
Tags: Bienal de Veneza, José Monterroso Teixeira, José Pedro Croft, João Fernandes, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes, Álvaro Siza
sábado, 20 de setembro de 2025
EDUARDO BATARDA, 1998, Retrospectiva no CAM
Falar de pintura pintando
09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25
«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar»,
escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta,
antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda
parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o
olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento?
Ao
chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de
introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada
como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal».
Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras
maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a
circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves,
censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores
artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor
desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o
próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs,
que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian
defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o
encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso
de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito
israelita-parisiense.
Por outro lado, é significativo que se
considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números
de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre
particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à
colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma
cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do
público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do
catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente
de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década
(«Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois
de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras).
Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas
públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade
ou «conhecimento».
Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
Outro ponto interessante da mesma introdução
assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa
síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com
referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira
importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for».
Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as
inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas
dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus
textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas,
etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do
que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente,
apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a
pintura.
Existia no primeiro período da obra de Batarda a
possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se
entender «o discurso pictórico como realidade linguística»
(na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para
«ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era)
sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com
o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a
linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o
quê».
\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»?
Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos
apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e
Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o
prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!»
Entretanto,
também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma
transcendência para além da representação do real visível ou de uma
interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica
inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de
leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os
quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo,
manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 -
com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a
palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado)
que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de
1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?).
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu.
Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura»
-, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência
do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo,
diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.
Interior, 1992, 130 x 95 cm
Duas notas
7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».
01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.
EDUARDO BATARDA Galeria 111, 2000: "Quadro a quadro"
"Quadro a quadro"
Galeria 111 , "Pintura" (Até 29 Abril)
Expresso, 19-03-2000
BATARDA regressa à 111 - por sinal, inaugurando o seu novo espaço - oito anos depois da anterior individual na galeria, dois anos depois da retrospectiva que o CAM lhe dedicou. Aí mostrara 17 novas telas que preenchiam o hiato, escassamente (em quantidade); agora expõe 16 quadros, dois deles vindos já da retrospectiva. Alguns outros, muito poucos, tinham surgido isoladamente, em ocasiões colectivas, sem desmentirem a raridade da produção recente, mesmo se esta foi retomada com maior regularidade.
Não admira que toda a exposição estivesse vendida na véspera, e também não importa agora questionar o quase silêncio que Batarda manteve ao longo dos anos 90. Aliás, tratou-se em grande medida de uma situação de ocultação, porque cerca de dois anos os tinha passado na concepção de um grande projecto de arte pública para a estação de Metro de Telheiras, até hoje sujeito a vicissitudes diversas e graves. Esse projecto, com 337 desenhos diferentes exaustivamente estudados para o espaço previsto, a que dedicou um grau de investimento muito raro, é (será ainda?) um trabalho marcante no seu itinerário e ficaria (ficará?) a sê-lo também entre os escassos itinerários da arte pública lisboeta. Mas outras ocultações existiram, por via dos que administraram as visibilidades da década.
Na retrospectiva, as obras em estreia respondiam à expectativa gerada pelo silêncio sem evidenciarem uma situação de viragem ou de afirmação de novas séries - Batarda não é um pintor de ciclos ou séries, como se preferisse a acumulação e sedimentação em cada quadro de todo o trabalho feito antes (e feito antes dele também) ao possível efeito breve de surpresa de uma qualquer mutação programada. Nesses quadros observava-se a exploração de linhas simultâneas de trabalho, onde a reconsideração de propostas ensaiadas em momentos diferentes do seu trabalho anterior se abria em novas pistas, aparentemente divergentes. «Porno-romanos», radiografias, letrismos reciclavam «fases» e sentidos anteriores com diferentes soluções.
Agora, essa diversidade de direcções persiste, frustrando a expectativa de um programa, via única, estratégia, que facilitassem uma leitura condensada do trabalho de Batarda. Em vez de um conjunto traduzível numa fórmula comum, em vez de uma exposição identificável por um enunciado sintético de «interrogações» ou por um estilo, o observador depara com a realidade manifesta da diversidade dos 16 quadros expostos, decerto agrupáveis por subconjuntos, temas, formatos, esquemas formais de composição, valores cromáticos, etc, mas sem convergirem numa síntese cómoda.
Não é de dispersão que se trata, menos ainda de desorientação. Desse aparente desencontro de direcções é a afirmação da identidade de cada quadro que sobressai como uma questão sempre em aberto (para o pintor e para o observador), como um desafio sucessivamente tentado e posto à prova na realidade material de cada tela, o qual importa reconhecer e avaliar em cada uma, diferentemente. Cada quadro coloca a questão decisiva de saber o que é um quadro conseguido (não é possível escrever um quadro perfeito). O que, entre meados de 80 e início dos anos 90, era, em cada quadro-soma, acumulação de referências, evocações e sentidos, sobrepostas como camadas e dispostos como peças de um «puzzle» talvez indecifrável, o que os transformava numa afirmação de virtuosismo e erudição extremos, é agora mais directo, mais claro, mais seco.
À «série» «Hispania Romana», com que retornara a um discurso abertamente figurativo, próximo das antigas aguarelas na junção da referência erudita à expressão vernacular, acrescentam-se dois novos quadros, o último reintegrando a malha dos saios dos centuriões numa estrutura central elíptica, na qual se encerra ou oculta o sentido mais descritivo dos anteriores. O formato paisagem desse nº 5 parece ditar as suas condições formais e a narração anedótica (porque não?) fecha-se num processo de encobrimentos e ocultações deixadas bem visíveis na tela.
Aliás, as questões de formatos e escalas parecem ter aqui uma intensidade muito marcada, patente nas quatro telas ao alto que retomam as construções em espiral, convertidas em irregulares linhas serpentinadas, as quais parecem prescindir do apelo a uma massa acumulada de referências ou «reflexões» sobre precedentes históricos e sentidos sobrepostos (cabeça, urna, elmo, capitel, etc) para explorarem o domínio das formas, o gosto das texturas, a riqueza das cores, a ilusão dos volumes, a imagem sem figura.
Esta reentra nas «radiografias» do conjunto «Doctor B, C, G, Dr.», onde a representação do corpo, mais internamente sentido que visto, dá também lugar a sobrepostas segundas leituras brincadamente figurativas, usando com mestria a ocultação a negro. Outros corpo e rosto surgem em "Love Handles (pregas de amor)" e "Say Cheese", num jogo de figuração-desfiguração que toma uma nova expressão formal no seu trabalho.
Refiram-se ainda as duas telas em que reutiliza com auto-ironia o turbilhão elíptico, aqui mais ou menos desarrumado e com um sentido críptico que só com ajuda se decifra. Os «Espelho's» têm a ver com a estranha coincidência (?) entre a pintura de Batarda e alguns quadros recentes de Terry Winters, sugerido no título ("Outono") de uma tela e no W central de outra. Não é a posse de uma chave (nem a existência de uma fórmula, de um programa) que asseguram que se está diante de um quadro conseguido. É o facto de ela atrair e sustentar o olhar, de se impor como um objecto que resiste, que interpela, que se abre a leituras continuadas e divergentes, que nos fixa. Como aqui sucede por 16 vezes.
Catálogo com texto de João Miguel Fernandes Jorge. 16 reproduções.
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Entrevista de Eduardo Batarda (1998): «Custa-me deitar fora o pouco que sei»
Foi uma das poucas capas do Cartaz do Expresso dedicada a uma exposição: a 14 de Março de 1998, por ocasião da retrospectiva no CAM. Sempre achei que raramente se justificava uma tal escolha, mesmo que as outras secções procurassem promover "obras primas" todos os meses.
«Custa-me deitar fora o pouco que sei»
Expresso Cartaz, 14 de Março de 1998
Na capa: Eduardo Batarda, Obras (in)completas
CAM, 3 de março a 10 de maio de 1998
Comissário (e texto do catálogo): Alexandre Melo
pp. 18/20: entrevista: «Custa-me deitar fora o pouco que sei» + «A pintura não é programável» (e também o texto crítico de José Luís Porfírio: “O olhar devorador”, esquecido na bibliografia do catálogo editado por Serralves em 2012)
Com uma entrada comum: "O percurso vertiginoso de uma obra que desde os primeiros trabalhos, nos anos 60, ocupa uma posição destacada e sempre polémica no panorama nacional. Eduardo Batarda, a pintura e a palavra"
A entrevista não vem incluída na Bibliografia passiva ("Publicações periódicas e monográficas"), pp. 357-359 do catálogo, mas aparece referida numa "Bibliografia - selecção" que antecede a "Lista de Obras", nas pp. 329-330. Não se percebe o critério, mas adiante.
BATARDA faz a primeira
retrospectiva com 33 anos de pintura, à beira de fazer 55 de idade. Na
década anterior fez exposições quase anuais e esteve no centro das
atenções de quem produzia ou acompanhava a mudança do panorama das
artes, ou, melhor, era um eixo maior das transformações que pareciam
suceder-se.
Depois, em torno da exposição de 1992 <Galeria 111>, fez-se um
estranho silêncio e os poderes emergentes prescindiram da sua obra nos
eventos com que se celebraram. O intervalo até à retrospectiva só tornou
mais esmagador o trabalho que agora se mostra com a coerência e
originalidade da sua inteira continuidade.
Sempre o considerei um
dos três ou quatro artistas mais significativos, na conveniente
destrinça entre excepções e praticantes regulares ou agentes hábeis. A
obra não é amável nem facilita o seu êxito pelas regras dos circuitos
dominantes e a entrevista demonstra que a palavra - abreviada para o
lugar disponível - também é sempre demasiado informada, reflectida,
sibilina e inoportuna. A retrospectiva, que alguns consideram
«excessiva», aí está. Batarda fornece algumas pistas para quem a quiser
ver.
Estão na moda as antologias em vez das
retrospectivas, e a montagem carregada da exposição infringiria o bom
gosto das instalações feitas nos museus.
E.B. - Nunca
ninguém me disse que era suposto ser outra coisa que não uma
retrospectiva e 33 anos de trabalho não pode ser pouca coisa. Apareceram
muitos trabalhos, que podem dar uma ideia razoável do que foi a minha
produção, mas também faltam alguns outros e não é porque tenha tentado
escamoteá-los. Eu julgava que uma retrospectiva é não esconder coisas. O
CAM não pode inventar mais espaço e, portanto, a minha retrospectiva,
feita com o que apareceu e que tinha, em princípio, de ir para a parede,
tem falta de espaço, o que não é assacável a ninguém. Mas eu não
funciono só por reflexos condicionados e pelo que vejo serem as normas
de certos museus: não se trata de ver os espaços entre e de os comentar
em termos de fica bem ou fica mal. Não partilho o entendimento de toda e
qualquer exposição como instalação, nem pretendi aplicar outras regras
que não sejam a hipótese de olhar para os quadros um a um; os trabalhos
sobre papel, pressupõem uma relação de continuidade de leitura, de
páginas e de texto, com o espectador à distância de dois palmos, e não
exigem os tais espaços de parede. Vi com algum gozo a possibilidade de a
montagem ser interpretada como contestação - contestação inofensiva, a
não ser para mim, mas paciência... Pode ser um pouco fora de moda, mas
eu continuaria a perguntar: a pintura, o trabalho, vale alguma coisa,
serviu para alguma coisa?
Há, desde as primeiras obras, linhas de continuidade que atravessam as diferentes fases. A presença da palavra, por exemplo...
-
Como qualquer outra pessoa, estou constantemente a reciclar o que me
entra cá por cima e essa reciclagem não pode excluir aquilo que fiz: há
coisas que são autocitacionais, depois há outras que penso serem
ideossincráticas, que não posso evitar. Suponho que os factores mais
contínuos são os de autonegação, auto-ironia, autocontestação, ou seja,
de qualquer coisa encontrar sempre o seu outro lado, a sua ironia ou
caricatura, mesmo a caricatura da caricatura, que é como quem diz: um
lado absolutamente insincero no qual eu sou completamente sincero. Desde
a adolescência, não se tratava já, entre amigos, de falar sinceramente,
mas de ter consciência que estávamos sempre a citar alguma coisa ou
alguém, ou a caricaturar as hipóteses possíveis em relação a cada
situação.
O que significa fazer arte sobre a arte, o que é, aliás, próprio da produção artística, pelo menos nos últimos séculos.
-
Não diria que a minha arte é sobre a arte: é sobre a minha (arte),
inevitavelmente, e muitas vezes sobre generalidades da arte. Estava
mesmo a falar sobre a possibilidade da sinceridade, e por tabela da
sinceridade em arte, o que desde o princípio tinha a ver com a negação
da grandiloquência, da pesporrência ou do «interessanting» artístico,
que já era, à partida, uma coisa aviada. Quanto à arte sobre a arte, é
evidentemente uma coisa que anda a girar há séculos e suponho que o séc.
XX não é o mais educado, nem o mais sofisticado ou o mais complexo.
No
seu trabalho existe também a relação com as conjunturas. Começou no
ambiente Pop e nos finais de 60 a sua produção figurativa estava já em
oposição ao clima conceptual-minimal.
- Põe-se o problema
do fazer a seguir, ou do fazer antes, ou do fazer ao mesmo tempo, ou do
comentário. Tudo isso é verdade ao mesmo tempo. Há coisas em que
qualquer pessoa - e porque não eu? - se antecipa, nem que seja um décimo
de segundo; há coisas em que estamos sempre a seguir e há coisas em que
julgamos antecipar-nos e estamos apenas a pensar que inventámos a
pólvora. Quanto às aguarelas, convém lembrar os "Great Moments in
Conceptual Projects" (nº 50), que era sobre papel e sobre o papel do
papel. Era óbvio que eu estava ao contrário e era tudo tão ao contrário
que parecia um programa. Mas a arte conceptual é uma arte de papel, vive
de documentos e memórias de papel, e é também com isso que eu brinco,
no papel milimétrico desenhado por mim...
É uma das situações em que o seu trabalho está contra ou à margem...
-
Francamente não sei. Toda a gente se sente original e inventor, e muita
gente se sente à margem, o que é uma situação curiosa, hoje em dia, já
que a instituição, o «stablishment», o circuito, o «art world», etc.,
coordena as actuações de uma quantidade de pessoas que, ao ouvi-las,
gostariam de continuar a fazer-se passar por marginais, quando são de
facto a instituição. O estatuto de marginalidade, de contra, de
subversão, é hoje muito difícil de analisar, e seria apressado demais
defini-lo num sistema de convergência ou conflito de interesses em que a
pose de marginal se faz confundir com o conformismo mais radical. A
actuação das pessoas em termos de reflexos condicionados está patente em
todas as exposições, em termos do que se faz e não se faz, nos
preceitos habitualmente aplicados às exposições, etc.
Nos
anos 70 atravessou a vaga de rejeição da pintura e em finais de 80,
outro aparente fim da pintura, está presente nos seus quadros uma ideia
da morte que tanto é a morte física como a morte da pintura, ou da arte.
- Maria vai com as outras, ou não. Há coisas que estão
sempre presentes e a que não se foge, uma delas é a morte. Outra é a de
que a morte é mais comum como tema a partir de uma certa idade. Outra
coisa ainda é que a morte foi diferente nos anos 80: o tema da morte, a
morte das pessoas e a de artistas, esteve sempre presente e veio a par
com o tema da morte da arte. Chame-lhe folclore, mas é um facto. Se me
põem a funcionar apenas como mais um dos que usou, explorou e abusou do
tema da morte - da pintura e da arte, da crise da sida, etc. - é
evidente... sou capaz de ter caído nesse oportunismo, mas há coisas que
nos preocupam mesmo e a que, por muito que a pose seja de cinismo, não
conseguimos fugir. Muitos quadros têm o tema da morte, a ideia de
terminal, e a ideia do trocadilho (por muito mau gosto...) não foi só
minha. Suponho que os clichés à volta da morte e da arte podem também
andar à volta do cliché principal, que é saber se existe alguma coisa
para além de..., isto é, existe pintura depois da pintura? Para além
disso, não posso negar que a depressão, a ausência, o não aparecer, o
fugir a aparecer têm a ver com o medo, e o medo com o medo da morte -
tudo isso estava muito ligado, nas peças dos anos 80-90. Eu não tenho
grandes esperanças no regresso da pintura. Repare que, desde as
primeiras coisas, há uma dúvida muitíssimo forte, senão mesmo uma
certeza, sobre a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e
da arte...
As aguarelas, que parecem histórias e
acontecimentos da actualidade, já eram um exercício irónico sobre a
impossibilidade da arte mudar o mundo.
- Mas não sobre a
impossibilidade de eu os absorver e os comentar. Intervir é uma coisa,
intervir mudando o mundo é outra. Falar deles, poder exercitar sobre
eles aquilo que serão as minhas capacidades, é um assunto completamente
diferente: é a possibilidade de que um, ou uma, entre alguns entendidos
ou amigos, me possa entender num exercício gratuito de - como se diz nas
escolas - complexidade gradualmente aumentada. A ideia talvez seja
essa: um exercício individual de educação, de aprendizagem, de estudo e
de superação. O que está dito está dito, mas isto, que é a mesma coisa,
que parece a mesma coisa, por que é que não é a mesma coisa? Um homem
chamado Weininger Otto W., 1880 -1903, que De Chirico citou, disse que o
único crime é a repetição. A questão é essa: a repetição e a mudança, o
dizer a mesma coisa ou o dizer diferente através daquilo que parece a
mesma coisa. Se se puder repetir o mesmo sem ser uma segunda via...
possivelmente estamos a dizer outra coisa.
As aguarelas
dão passagem a um mais evidente tratamento de questões formais. As
mesmas formas elípticas são sucessivamente coisas diferentes: a
incerteza de um gesto, as águas do Monet, vórtices e abismos...
-
... ou pias baptismais, ou bandejas, com a cabeça de São João... Aquilo
que eu, em última análise ou último destino, quero dizer, francamente
não sei. Sei que as aguarelas começaram por ser muito mais obviamente
inocentes, mais perto de um jogo improvisativo, de um surrealismo de
carregar pela boca, mais ou menos bem dispostas, como quando se faz uma
ilustração, para passarem a ser mais ambiciosas e informadas, o que tem a
ver com o meu processo de educação e com estar em Londres, mas não
concordo que tenham ganho só em proficiência técnica. Primeiro eram mais
próximas de um «bluff» sobre arte, com o estudo e a perda de algumas
inocências passam de uma forma mais autêntica a ser comentários sobre
arte. As formas que se vão aproximando das elipses nas últimas aguarelas
e as tais elipses nos primeiros acrílicos dos anos 80 têm a ver com
outra coisa, se calhar muito saloia. São uma espécie de demonstração de
conhecimentos. Se havia alguma ambição de comentário estético e
sociológico sobre o mundo das artes, havia também a necessidade de
comprovar o meu conhecimento, daí que usasse de forma muito visível as
analogias formais e as alusões, literárias ou não, a coisas de
iconografia. A elipse, que tinha a ver com o jogo e o trajecto, com o
jogo da glória e o mapa do tesouro, depois com as iconografias altas e
baixas, era o uso multiforme do mesmo objecto: o que servia para um halo
ou para a luz ao fundo do túnel é também bandeja, sinal da
desorientação, turbilhão ou pedrada no charco - literalmente: quantas
vezes as minhas primeiras exposições foram comentadas como pedradas no
charco -, é símbolo de luz, e é sempre a mesma coisa....
É uma abordagem mais formalista, a exploração de tópicos formais?
-
É mostrar a versatilidade da minha interpretação, pretensiosamente:
vejam como eu sei todas as conotações desta forma tão simples - e se
calhar não sei, ou só sei 0,001 por cento... -, vejam como eu me esforço
por saber o máximo, vejam como este tipo que sabe tanto, aparentando
que não sabe nada, faz sabatinas sobre elipses, sobre estrelas,
caneluras, colunas, fustes, sobre impressionismo, em quadros que
transportam imagens de tanques ou barcos blindados armados com canhões
sem recuo, sobrepostos ao punhal de um chinês, com o cabo, além,
agarrado na mão, mais um tripé com alguma coisa e a estrela
internacional...
Mas estes quadros supõem a decifração e o reconhecimento por parte do espectador?
-
Suponho que tudo é reconhecível, está lá tudo e está muito à vista. A
única coisa que eu peço às pessoas é aquilo que elas só dão se quiserem,
tempo: dê-me dois minutos do seu tempo...
As palavras pintadas e títulos são uma ajuda ao observador?
-
Às vezes são imediatamente descritivas, às vezes são metafóricas, ou
são títulos encontrados na véspera da exposição, a situação varia
muitíssimo. Mas são sempre ajudas, mesmo quando são absurdas ou quando
são manifestamente a etiqueta para uma figuração que não está lá. Alguém
pode procurar o que está e o que não está, com tempo, dois minutos, vá
lá, dez minutos... A pintura é para olhar, depois é para falar, antes
disso é para escrever. Parece uma máxima, mas foi dito por acaso.
Na última exposição, a cabeça, que era também urna, carlinga, etc., parecia remeter para a ideia ou o projecto do retrato.
-
Sempre apareceram cabeças, já nas aguarelas, sobrepostas a uma
quantidade de outras coisas, e nos primeiros acrílicos, a cabeça de cão.
Qualquer pessoa que faça quadros parte de um capital de conhecimentos,
conhece o Géricault, o Alien, o filme, as cabeças pré-colombianas, com
aquele «mosaico» de jade. Aqui ("Morto em 1998, 2") há relações com um
batráquio, com desenhos do Alfred Kubin, com a decomposição das
superfícies do Klint: é uma cabeça e o dispositivo é parecido com o de
duas salas antes, é um capitel, mas é também a luz... mas talvez
convenha não emprestar à coisa tanto símbolo. A cabeça, elmo, urna, ou
armadura de sado-masoquistas, gaiola de torturas, carlinga, são
herdeiros das histórias dos capitéis, das colunas, que já eram os
cubismos e as cabeças de cão, etc., mas há quem só veja em tudo a Vieira
da Silva. Eu faço isto com a educação que tenho, não sou culto nem
deixo de ser, faço o que posso, mas custa-me muito deitar fora as poucas
coisas que sei.
A cabeça é também o retrato como género da tradição da pintura? Os romanos são pintura de história, o «grande género»?
-
O título «Candieiros, Cubismos, Cães e Colunas» exposição de 1982 espelhava já
isso: é sobre os géneros, e daí ter metido os cubismos como se fosse um
objecto, tanto como um candieiro ou uma coluna, ou tão reconhecível
como um cão, sabendo que as imagens de uns e outros se interpenetravam
ou, quase sistematicamente, eram a mesma imagem podendo ser interpretada
como uma coisa à cubista, que era um cão mas era uma coluna, etc., etc.
Portanto, o reconhecimento dos géneros, dos estilos, das histórias, das
formas recorrentes está também aqui. Verifico, identifico, registo e
confirmo: estes tipos existem. Se a pergunta é se eu algum dia seria
capaz de vir a fazer um retrato, suponho que não; hoje em dia, há alguns
retratistas admissíveis no largo espectro da arte contemporânea, mas
são muito poucos. Os romanos são uma alusão à pintura de história, à
história, à treta... é um contar coisas.
+
«A pintura não é programável»
FRAGMENTOS de declarações de Eduardo Batarda, à passagem pelas suas obras mais recentes:
«Depois
de um certo sucesso de esperanças da exposição de 1992 e de um longo
processo de depressão, que tem a ver com o conhecimento de que o meu
trabalho não é aprovado, estimado, apreciado - e quando isso acontece é
muitas vezes por equívoco, ou equivocamente por gente equívoca -, a
parte bem disposta do trabalho para o Metropolitano permitiu-me sair de
uma coisa um bocado tumba, que foram os meus pouquíssimos trabalhos de
94-95. Eram já coisas mesmo pretas, invisíveis, carregadas de verniz,
sem sinais, em que tudo era tapado, tapado e tapado.
Volto a
pintar no fim de 96. Muito prosaicamente, percebi que não tinha nada a
perder. Despreocupei-me, incorporei uma certa descontracção, que foi
renovada talvez pelos desenhos do Metropolitano. A pintura que eu faço
agora também é improvisada, e é improgramável porque eu não consigo
programá-la, ou seja, a pintura não é um processo susceptível de grandes
planeamentos estratégicos. Por muito que eu quisesse, não seria capaz
de programar a pintura para fazer uma exposição cujo processo de
lançamento ou cujo êxito pudessem ser previsíveis, e ter logo a segunda e
a terceira exposições programadas. Sobretudo, fazendo coincidir isso
com um esvaziamento das coisas que eu posso pôr em cada quadro,
incluindo o divertimento. Tomara eu, gostava muito, até podia mandar
fazer os quadros a assistentes. Mas não percebo o que ganhava com isso.
Não
me importo de ter géneros, entre aspas, ainda mais divergentes ou ainda
mais desconchavados do que em exposições anteriores. Desde os romanos
aos trabalhos autoderrogativos, às radiografias, mapas de batalhas,
quadros letristas, etc., mas isto não são só reciclagens de coisas
anteriores. É evidente que são e não são. A primeira coisa que eu fiz já
reciclava coisas, e também já tinha feito romanos - basta ver o
Longinus lá em cima, com o saio de centurião que aparece aqui.
Mas
os hábitos invisuais estão fortemente enraizados, e há quem os
interprete como regressos irremediáveis, dizendo que nada disto inventa
seja o que for. O Doctor B ou o No Name Boys seriam ampliações de coisas anteriores, aquela espécie de estrada de montanha [Talvez Sim (Straight & Narrow)]
seria um tema que vem dos anos 80 - se calhar confundem-na com as
elipses -, os romanos são as aguarelas dos anos 70 outra vez, o Nothing
Really e Début du Siècle são iguais aos dos princípios dos anos 80, com a
coluna ao centro. Seriam a mesma coisa antes de eu os pintar com aquele
branco translúcido e depois os transformar, por cima do branco
translúcido, em coisas monocromáticas. O que eu digo é exactamente isso:
muitos dos quadros anteriores tiveram aquele aspecto, mais ou menos
acabado, com imagens mais ou menos definidas, e eram depois encobertos, e
o preto e as cores escuras iam buscar, reinventar ou descobrir, fazer o
mapa, com exclusões ou com novas descobertas, do que estava por baixo.
Só o facto de eu não encobrir isto - lá porque eram as coisas que
estavam por baixo e eram eventualmente semelhantes a coisas que eu fazia
(mas eu fazia-as como parte do trabalho...) -, se agora não cubro de
branco e o trabalho não continua a ser depois reencoberto, então é
porque isto é diferente... Estes [(Nunca Fui) Art. Pop, 1 e 2] são simples, porque são feitos com as letras do título, são trabalhos letristas...»