sábado, 14 de maio de 2005

2005, LisboaPhoto, Helmar Lerski

 

LisboaPhoto 2005


Helmar Lerski

"As verdades do retrato"

 Expresso/Actual de 11 Junho 2005


Helmar Lerski, do cinema expressionista para a fotografia

Ao longo das seis salas de exposição renovadas na segunda área de galerias da Culturgest (na zona principal continua a mostra de Xana), multiplicam-se os retratos de Helmar Lerski, apresentados pelo Museu Folkwang de Essen, no âmbito do LisboaPhoto. Num primeiro olhar não se reconhece que todos eles, em mais de 120 magníficas provas «vintage», mostram um mesmo rosto (o do engenheiro-desenhador Leo Uschatz).

Vão mudando alguns escassos adereços, um capuz, os óculos; assiste-se a algum teatro fisionómico, a testa enrugada, a pressão dos maxilares, mas é a constante variação dos enquadramentos, em «close-ups» muito fechados e num tamanho maior que o natural, conjugados com os efeitos da luz, que asseguram a diferença entre os retratos do mesmo homem, onde já se julgaram reconhecer as figuras de um herói, um profeta, um monge, um soldado agonizante, uma velha mulher.... Lerski (1871-1956) usou uma arcaica câmara de muito grande formato (30x24cm) e imprimiu por contacto, transformando a face numa imensa paisagem compacta, esculpida pela textura, o brilho e os relevos da pele. Fotografou ao sol, num terraço, usando diferentes filtros e 16 pequenos espelhos para fazer variar interminavelmente a luz e o recorte das formas.

Em vez do retrato objectivo, neutro ou científico, e à distância, também, do retrato subjectivo, que visaria interpretar a psicologia, o carácter, a individualidade mais profunda de alguém, Lerski constrói com a face única de um mesmo homem, que não é um actor, toda uma galeria de expressões e (pseudo)identidades. É uma das mais radicais experiências fotográficas sobre o retrato, realizada em 1935/6, na Palestina, por um artista e profissional dedicado a essa área especializada da fotografia, que já tinha sido director de câmara e de efeitos especiais do cinema mudo expressionista alemão (Metropolis, de Fritz Lang, 1927).

Em 1931 publicara um livro que se inclui sempre nas escolhas dos melhores «photobooks». Köpfe des Alltags: Unbekannte Menschen (Cabeças de todos os dias: gente desconhecida) reúne 80 retratos de estúdio onde os rostos, sempre em grande plano, surgem dramaticamente estilizados por luzes expressionistas. Recrutou modelos em agências de emprego e refere-os através de identidades sociais (varredor de ruas, mendigo, pintor, guarda-livros, etc.), o que concede ao volume o carácter de um documentário sócio-psicológico.

Depois, «Metamorfoses pela Luz» demonstraria que a presença física e objectiva de um rosto ou que o carácter de um retratado são por inteiro, ou podem ser, uma construção do fotógrafo, ou que a imagem exterior da identidade social ou a presença psicológica supostamente mais íntima (que um bom retrato subjectivo devia ser capaz de captar com «verdade»), podem ser elaboradas e infinitamente manipuladas a partir do exterior pelos meios próprios da fotografia. Para além deste exercício conceptual e prático levado à exaustão, o projecto de Lerski entronca num contexto muito particular da história da República de Weimar e da história da fotografia.

Nascido em Zurique de ascendência polaca, Helmar Lerski (aliás, Israel Schmuklerski) foi actor nos Estados Unidos antes de se dedicar à fotografia e passou a interessar-se pelo cinema documental depois de trocar Berlim pela Palestina, em 1931, antecipando-se às perseguições nazis; aí realizou um dos emblemas do cinema sionista, Avodah (Trabalho), em 1935, sobre os colonos judeus.

Para além das «Metamorfoses», onde aparentemente se dilui sob os efeitos da encenação a crença numa objectividade fotográfica, Lerski dedicou-se, na Palestina, a projectos de natureza documental marcados pela apologética sionista, «Cabeças Judias» e «Soldados Judeus», fez retratos de árabes e fotografias de paisagem e arquitectura; por outro lado, radicalizou as suas experiências numa série de «Paisagens do Rosto», com a ampliação de fragmentos de retratos, realizou estudos de «Mãos Humanas» e fotografou cabeças de marionetas, num último projecto que passou também ao cinema. Essa dupla orientação do trabalho de Lerski também deve ser considerada para que não se valorizem as «Metamorfoses» como uma definitiva demonstração - a prova e a teoria têm, aliás, diferentes eficácias em ciência e em arte.

As questões da identidade racial judaica agudizadas pelas perseguições nazis, bem como as da representação figurativa dos agentes da luta de classes, atravessam de modo dramático as décadas de 20/30. Na fotografia, esses anos são também marcados pelas grandes transformações sumariadas pela exposição «Film und Foto», organizada em Stuttgart em 1929 pelo Deutcher Werkbund (onde Lerski esteve representado com 15 imagens).

Com Karl Blossfeldt e Albert Renger-Patzsch (livros de 1928), a exploração sistemática do «close-up» tornara-se uma das marcas da «Nova Visão». Umbo (Otto Umbehr) terá sido o primeiro a aplicá-la ao retrato, inaugurando um novo estilo adaptado do grande plano do cinema e da redução às formas plásticas elementares cultivada pela Bauhaus, de que foi aluno. August Sander, identificado com a lógica mais ampla da «Nova Objectividade», publica em 1929 Antlitz der Zeit (Rosto do Tempo), no quadro do seu imenso projecto de traçar o retrato colectivo da Alemanha ao tempo da República de Weimar, fotografando em imagens de corpo inteiro tipos sociais referenciados por profissões e posições sociais. Lerski é um dos protagonistas dessa fase decisiva da fotografia alemã.

Helmar Lerski
«Metamorfoses pela Luz»   
Culturgest, até 3 de Julho

I e II

O que importa <em 2007> é a próxima edição do PhotoEspaña, porque o LisboaPhoto já foi (há dois anos). O mês de Madrid não terá a importância das três edições dirigidas por Horacio Fernández, mas vai celebrar os dez anos - a programação segue dentro de dias...

O que segue vem a propósito da 2ª, e para já última, edição do LisboaPhoto. Mudou a vereação, mudaram os compromissos (apesar de se tratar do mesmo partido), mas a concepção do programa de 2005 agravara mais ainda as insuficiências da edição anterior. O confronto com o PhotoEspaña mostra que ficamos sempre a perder - nos horizontes abertos ou fechados pela programação, na persistência ou na inconstância dos projectos.


DUAS NOTAS SOBRE O LISBOAPHOTO DE SÉRGIO MAH, 2005 

I - «A Imagem Cesura» - in Expresso/Actual 14-05-2005
II - "Imagens ou índices" - in Expresso/Actual de 21-05-2005

I - «A Imagem Cesura»

Nas vésperas do LisboaPhoto 2005

O título-tema é aberrante: «A Imagem Cesura». O 2º LisboaPhoto «constrói-se em torno do efeito de cesura da fotografia, mais especificamente sobre as conotações que esse efeito suscita relativamente à ontologia da fotografia. A cesura refere-se ao acto de golpear, à incisura». A ingénua prosa escolar da «Apresentação» encerra em estafadas questões essencialistas sobre «a natureza específica do dispositivo fotográfico», a partir do conceito de índice (de Charles Pierce), o que deveria ser o desafio de uma relação produtiva e mobilizadora entre as práticas da fotografia, a cidade e os seus públicos (os cidadãos).

Com um roteiro de 15 exposições oficiais que ignora todos os nomes de primeiro plano da fotografia portuguesa de hoje (mas Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte aparecem em Madrid numa parceria com o PhotoEspaña) e com um cartaz que faz da idiotia o emblema do LisboaPhoto, o acontecimento fotográfico bienal organizado pela Câmara sob a direcção de Sérgio Mah faz tudo para não despertar grandes expectativas.

E, no entanto, o programa inaugura-se no dia 18, na Cordoaria Nacional, com a mais aguardada das exposições: a primeira retrospectiva de Joshua Benoliel (1878-1932). Apesar da fama que gozou em vida, apesar de respeitado como patrono do fotojornalismo, Benoliel nunca teve a mostra ou o livro que o afirmassem como um autor de excepção no seu tempo internacional - o que foi possível entrever numa breve antologia mostrada na Europália’91, em Charleroi. Emília Tavares, a comissária, pesquisou os arquivos, encontrou originais e provas de imprensa, reuniu imagens impressas, investigou o contexto histórico e o uso social e institucional da fotografia. Espera-se que a obra não seja mostrada apenas como documentação histórica da sociedade portuguesa, e que se saiba valorizar o intimismo inovador e por vezes irreverente que distingue o olhar do fotógrafo.

Aaron Siskind, um dos grandes da fotografia norte-americana (Museu de Arte Antiga, dia 18), e o expressionista Helmar Lerski (Culturgest, dia 31) são outros pontos altos, tal como o serão com certeza as fotografias desconhecidas do Instituto de Medicina Legal (Arquivo Municipal, dia 8 de Junho), enquanto a arte contemporânea estará presente com as esculturas efémeras fotografadas por Erwin Wurm (Museu do Chiado, dia 2) e a mostra colectiva «Estados da Imagem. Instantes e Intervalos» (CCB, dia 25) - «entre a imagem-suspensa e a imagem-movimento, esta exposição reúne um conjunto diverso de modelos de produção e exibição de imagens de natureza técnica, procurando sugerir sinais de convergência, de inovação e de retroacção, a partir de graus de paragem e de concentração do e no movimento pela acção da fotografia, do cinema e do vídeo». Ao vazio das palavras pretensiosas corresponderá o deserto maneirista das imagens?

LisboaPhoto prolonga-se até Agosto e conta com um programa paralelo de exposições da iniciativa de galerias e escolas.


II - "Imagens ou índices"

A teoria e as exposições do LisboaPhoto

Expresso/Actual de 21-05-2005

«Há 20 anos dava-se prioridade a um debate ontológico em torno da natureza do fotográfico e da sua intersecção com as distintas versões da criação artística. (...) A fotografia é certamente um depósito químico produzido num certo momento daí a categoria de índice, ou indício, que se atribui à imagem fotográfica, mas não é isso o que realmente nos interessa. O que queremos saber é como essa combinação de luz, espaço e tempo adquire um sentido para nós, que contexto ideológico a envolve, que efeitos políticos desencadeia.» Joan Fontcuberta, Estética Fotográfica (Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2003, págs. 7-9).

«A teoria do índice é demasiado abstracta, demasiado indiferente às imagens, demasiado essencialista, demasiado redutora para ser operatória, em especial nestes tempos de profundas transformações e de redefinições das relações entre as imagens. A vulgata do índice encerra-se nos limites imutáveis da essência no momento em que é preciso compreender as evoluções.» André Rouillé, La Photographie (Folio Essais, 2005, pág. 257).

Na introdução deste livro (estimulante mesmo quando é injusto ou inaceitável), Rouillé escreve:

«Para lá da sua fecundidade teórica, as noções de rasto, de marca ou índice tiveram o imenso inconveniente de alimentar um pensamento global, abstracto, essencialista; de propor uma abordagem totalmente idealista, ontológica, da fotografia; de reportar as imagens à existência prévia de coisas de que elas seriam só o registo passivo. Segundo essa teoria, ‘a’ fotografia é, antes de tudo, uma categoria de que se devem fazer decorrer as leis gerais; não é nem um conjunto de práticas variáveis segundo as suas determinações particulares nem um corpus de obras singulares. Esta recusa das singularidades e dos contextos, esta atenção exclusiva à essência, leva a reduzir ‘a’ fotografia ao funcionamento elementar do seu dispositivo, à sua mais simples expressão de marca luminosa, de índice, de mecanismo de registo. O paradigma ‘da’ fotografia é, assim, construído a partir do seu grau zero, do seu princípio técnico, muitas vezes assimilado a um simples automatismo.»

O envelope teórico do programa «A Imagem Cesura» não é «arriscado» - como já se pretendeu -, mas sim conceptualmente limitado e desactualizado.

- Ver também "Imagens Privadas", colectiva na Plataforma Revólver - 28 de Maio de 2005

sábado, 28 de agosto de 2004

2004, Serralves, "Circa 1968" 3, Arte e Política (Interfunktionen)

 Expresso 28-08-2004

"Arte e política"


Os anos conturbados de 1968 a 1975 revistos numa perspectiva que dissocia a vanguarda artística e o envolvimento político

Cinco anos depois da exposição que inaugurou o Museu de Serralves, regressa-se a «Circa 68», ou seja, a algumas das manifestações artísticas de um tempo de todas as contestações, quando terminava a era de optimismo e desenvolvimento acelerado que, nos países do Ocidente, se seguiu ao fim da II Guerra Mundial. Após a exacerbação da Guerra Fria, com a edificação do Muro de Berlim, em 1961, a crise dos mísseis em Cuba, no ano seguinte, e o envolvimento militar no Vietname, em 1964, tem início um década de radicalização política e social que extravasa os quadros partidários e parlamentares, prolongando-se nos movimentos antiautoritários e num contexto de «mal-estar cultural» antiburguês de profundas consequências. Os ecos da Revolução Cultural na China e o terceiro-mundismo da «tricontinental» de Havana, a partir de 1966, as revoltas estudantis e Maio de 68, os diversos esquerdismos e a passagem à guerrilha urbana e ao terrorismo (a fracção Exército Vermelho, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, em Itália, a partir de 1970), a invasão da Checoslováquia (68) e o golpe de Estado que derruba Allende (73) são alguns marcos essenciais.

Nada ou quase nada desse muito conturbado mundo político está explicitamente presente na actual mostra (a excepção, sem a pretensão de ter assistido a todas as projecções, será um filme de Wolf Vostell, de 1969, onde se vêem apenas as palavras «estado de emergência» projectadas sobre as paredes de Munique ao longo de sete soporíferos minutos). Poderá dizer-se que, nesta recuperação museológica dos objectos e documentos das acções artísticas destes anos de revolta, a arqueologia oculta a história.

«Por Trás dos Factos», título que no Porto não se traduziu (ao contrário do que aconteceu em Barcelona), sugere uma ligação subterrânea ou oculta da arte com os acontecimentos sociais e políticos. Mas é, de facto, a um fechamento da arte sobre si mesma que quase sempre se assiste, enquanto experiência dos seus limites (a inovação, ainda) e fronteiras (incluindo tudo o que poderia ainda ser não-arte), «reflexão» sobre a identidade essencial do fazer artístico, os seus códigos linguísticos e o contexto da circulação dos objectos (por exemplo, Hans Haacke apresenta os sucessivos proprietários de um quadro de Seurat), ou como a sua própria autocontestação («a arte corrompe», dizia Jochen Gerz; é «objectivamente reaccionária», insistia Buren).

Observa-se em paralelo uma ensimesmada e narcísica exposição do artista em si mesmo, do seu rosto e corpo, muitas vezes nu e em vários casos em acções autosacrificiais (Gunther Brus e Valerie Export), que podem ter a interacção com o espectador como pretexto ou privilegiar o exame conceptual do «eu» físico e psíquico no espaço fechado do estúdio (nas impressivas obras de Bruce Nauman). Preferindo os comportamentos artísticos às obras, numa lógica de recusa da autonomia do objecto de arte e do seu destino mercantil, «há um deslocamento da obra dita aurática para o artista aurático... a dessacralização da arte culmina na fetichização/histerização do artista», como escreve Birgit Pelzer num importante texto do catálogo que foi traduzido em A Obra de Arte sob Fogo. Inovações Artísticas 1965-1975 (co-edição de Serralves com o jornal «Público»).

No entanto, ao contrário do que leva a supor a escolha das obras e documentos expostos (sempre de artistas que colaboraram na revista alemã «Interfunktionen», mas sem coincidirem com as aí reproduzidas), os anos em causa são marcados por uma tendência generalizada da arte para a sua politização, o que, entre muitas intervenções de circunstância (e de instrumentalização da arte), inclui o uso militante das imagens e várias formas críticas de realismo.

A alegada neutralidade da pop é interrompida em 1965 pelo F-111 de Rosenquist, Rauschenberg utiliza imagens da actualidade serigrafadas, Kienholz é um crítico violento da sociedade americana, Golub e Nancy Spero são artistas políticos, Mark Di Suvero desenha a monumental Tower for Peace em Los Angeles onde se acumularam pequenos quadros de 400 artistas (1966) e exila-se depois em Itália, as «Angry Arts Week’s» sucedem-se em 1967, a Art Workers Coalition é criada em 1969, etc. Muitas obras de Öyvind Falström têm um explícito conteúdo militante, a Figuração Crítica francesa organiza em 69 a Sala Vermelha pelo Vietname, e o Salon de la Jeune Peinture declara-se ao lado da classe operária; na Alemanha, em 1970, grandes colectivas intitulam-se «Funções da Arte na Nossa Sociedade» e «Arte e Política»; o Equipo Crónica intervém na Espanha franquista; Baselitz e Schonebeck, Lupertz e Penk enfrentam o passado alemão, Polke propõe com ironia o Realismo Capitalista. A cronologia publicada em Face à l’Histoire (Centre Pompidou/Flammarion, 1996) é eloquente.

Dedicando-se às neovanguardas dos anos 60/70, circunscrevendo um universo de experimentação interdisciplinar com diferentes «media» e formas artísticas em que o vídeo toma um papel cada vez maior entre as linguagens artísticas, a abordagem da exposição toma a condição de vanguarda como um valor intrínseco, desfazendo-se das formas intervenientes do compromisso político. O ponto de vista «artistically correct», que dissocia a vanguarda artística e a política, pretende ser também uma forma de localizar nessa década os inícios da arte actual: «Foi em 1968 que se inventou um fenómeno ao qual se deu o nome de ‘arte contemporânea’», diz o agressivo marketing de Serralves.

Behind the Facts. Interfunktionen 1968-75
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, até 3 de Outubro

Keith Arnatt, «I’m a Real Artist», 1969-72
«Salsicha de Literatura», de Dieter Roth, 1969   

II

Expresso 04-09-2004

"Comércio de ruínas"
Segunda visita aos vestígios das rupturas artísticas de 1968

Esta exposição não se percorre numa circulação mais ou menos contemplativa por entre objectos. Em princípio não há, não deveria haver, objectos, mas sim acções e comportamentos, embora estes, recuperados como história, se assemelhem perigosamente a obras de museu. À contemplação, alegadamente passiva, de objectos de arte autónomos, desligados das circunstâncias do seu tempo e lugar, deveria substituir-se a interacção, o envolvimento cúmplice ou reactivo com os propósitos críticos que os motivaram, enquanto arte ou não-arte, contra as convenções artísticas e sociais suas contemporâneas. Estamos, é preciso notar, não no terreno da criação artística especializada, onde a especulação formal levaria sempre mais longe a crítica da tradição, mas no campo da revolução artística, da utopia social e do radicalismo político.
Quando, como escrevia o crítico francês Jean Clay na revista «Studio International» em 1970, se assistia «à agonia do regime cultural mantido pela burguesia nas suas galerias e museus». Mais do que uma ou várias visitas, aliás, seria necessário viver no museu e transferir a realidade colectiva do quotidiano para o seu interior, porque a coincidência romântica entre a arte e a vida foi uma ambição das neovanguardas das décadas de 60/70. Ou, mais prosaicamente, porque assim o exigiria a extensão dos numerosos filmes e vídeos que se exibem - a experiência seria de um aborrecimento mortal.

Entre as projecções eternizadas em «loop» ou em exibição rotativa, não se percam os 96 minutos do filme de Mauricio Kagel, La Baignoire de «Ludwig van», de 1969, uma das mais importantes obras «expostas», discretamente situada no fim da ala direita do museu. Vale a pena acompanhar a câmara que visita a casa onde Beethoven supostamente nasceu, através dos quartos imaginados por Ursula Burghardt, Joseph Beuys, Robert Filliu, Diether Roth, Stephan Wewerka e o próprio Kagel (uma sala de música integralmente revestida por pautas), enquanto se ouve a peça que compôs a partir das sinfonias do seu antecessor.

Neste caso trata-se de um filme e não propriamente da exploração de novos «media», a qual constituía uma das orientações essenciais da revista alemã «Interfunktionen», de 1968-75, cuja evocação serve de argumento à exposição, mas o seu carácter interdisciplinar, em conformidade com o interesse de Kagel pelo teatro musical, satisfaz a defesa da abolição de fronteiras entre disciplinas artísticas. Esta ambição, que já não era inovadora, tinha então como referência mais directa o movimento Fluxus, criado em 1962 nos Estados Unidos, com origem no ensino de John Cage, mas que na Alemanha teve um desenvolvimento menos dadaísta e zen e mais retoricamente político, com Beuys e Wolf Vostell. Os dois tiveram uma influência preponderante nos primeiros tempos da revista de Colónia, e a exposição inclui igualmente obras de Maciunas (as suas latas de alimentos não são arte pop, mas a sua caricatura), George Brecht e D. Roth.

A música, entretanto, está especificamente presente através de obras de Philip Glass, Steve Reich, Kagel e Jon Gibson, que se podem ouvir em auscultadores. Mas são as imagens projectadas que predominam na exposição, continuada, aliás, pela apresentação simultânea da «galeria televisiva» de Gerry Schum. É através do filme e também da fotografia que podem entrar no museu as acções que pretenderam sair dos espaços fechados do atelier e da galeria, com o propósito de intervir na natureza, de a tomar directamente como material, de reviver a ideia de sublime nas imensas paisagens americanas e/ou recusar a recuperação mercantil dos objectos. Seria este último aspecto que mais aproximou a revista dos artistas que se identificam com a Earth Art ou Land Art, como Robert Smithson (a sua Spiral Jetty é tema de um filme), Walter de Maria ou Richard Long.

Outra corrente que está presente através da mediação do filme e da fotografia é a da arte corporal, onde o corpo é usado como objecto ou matéria, nas «missas negras» dos accionistas vienenses (Günther Brus e Valerie Export) ou em acções de Bruce Nauman, Vito Acconci e outros, identificados com a Body Art, enquanto em Rebecca Horn é essencial a criação de próteses ou adereços. Com o aparecimento do vídeo portátil, em 1965, passava-se do registo documental de «happenings» e rituais a outro tipo de «performances» que exploravam a interacção com a imagem espelhada no ecrã (Body Press, de Dan Graham). Entretanto, as correntes do cinema experimental dos anos 50 e o «underground» dos 60 (Robert Frank e a contracultura beat, os Fluxfilms, Warhol) prolongavam-se no cinema dito estruturalista ou conceptual com a desconstrução ou destruição das qualidades materiais do filme (Paul Sharits, George Landow e Wilhelm & Birgit Hein).

O diversificado panorama que a exposição propõe recorta a realidade dos anos 68-75 a partir do activismo da revista «Interfunktionen», surgida da contestação à IV Documenta de Kassel e da agitação da Academia de Dusseldorf, protagonizadas pelo movimento Lidl de Immendorff (as suas pinturas de 1974 pretendiam-se maoístas) e por Beuys, então afastado do ensino. Ao contrário da informação de Serralves, é errado atribuir uma «reaccionária concepção de arte» a uma Documenta inteiramente voltada para a actualidade, que expunha a pop, a arte cinética, instalações ou «environments» e incluía Edward Kienholz, Öyvind Fahlström e também D. Roth e Beuys. No entanto, é oportuno acompanhar algumas questões de fundo que se levantam no catálogo e no livro co-editado por Serralves e o «Público».

Ulrich Loock, director-adjunto do museu, refere que, «dado o fracasso do projecto político da ‘geração de 1968’, não surpreende que hoje se suspeite que a revolução aparentemente bem sucedida verificada na arte cerca de 1968 tenha, na verdade, sido uma revolução conservadora», remetendo para a análise crítica de Birgit Pelzer sobre «estes anos extremamente politizados, amargos, apaixonados, rebeldes, utópicos».

Perdidas as ruas, as neovanguardas ganhavam, a troco da sua neutralização política, a entrada nos museus e no mercado, passando das margens para os centros do poder. É o que sugere Birgit Pelzer: «Ao ratificarem o arbitrário e o absurdo de toda a problemática sobre o valor em arte, estas práticas interpretaram-na, em última análise, estritamente segundo os próprios termos do mercado, ao ponto de hoje anteciparem e explorarem a sua própria recuperação através desses mesmos mecanismos.»
«Instalações cada vez mais gadgetizadas, legitimando-se muitas vezes através de pseudoquestões sociopolíticas, introduzem o espectador numa cacofonia ensurdecedora e na sua própria obsolescência programada. Assistimos agora a eventos de marketing promocional para produtos de consumo em lugar de práticas de pesquisa, de experimentação, de laboratórios de preocupações e dúvidas.»

«Behind the Facts»
Museu de Serralves, até 3 Outubro

legendas
Joseph Beuys, cerimónia messiânica de um escultor social, xamã e activista político
Psicodrama sacrificial de Günther Brus   

sábado, 24 de maio de 2003

2003 LisboaPhoto - Expresso/Cartaz, Sternfeld

 

LisboaPhoto 2003 - I, II, III, Expresso/Cartaz

Em 2003, e de novo em 2005, Lisboa teve o seu mês da fotografia, o LisboaPhoto. Em 2007, a bienal desapareceu ou interrompeu-se (?), sem explicações públicas que se tenham ouvido, ou que se aceitem. Em 1993 já tinha havido um primeiro Mês da Fotografia dirigido por Sérfio Tréfaut, que ficou sem continuidade (mas o Arquivo Fotográfico de Lisboa abriu no ano seguinte, 1994).

A história repete-se: 1993. 2003-2005. E depois?

Entretanto o PhotoEspaña continua

I "Fotografias pela cidade" . 24-05-2003

II "Retratos da América".  07-06-2003

III "Visões da cidade". 14-06-2003

          


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I "Fotografias pela cidade", Expresso/Cartaz pp. 46-47

LisboaPhoto, primeira edição da bienal de fotografia promovida pela CML, vai apresentar 22 exposições em torno de questões urbanas

Como Madrid, Barcelona, Paris e outras cidades, Lisboa vai ter o seu mês da fotografia. Ou vai voltar a ter, depois da falsa partida de 1993, que, como diz o comissário do 1º LisboaPhoto, Sérgio Mah, deixou uma marca indiscutível «no imaginário da oferta cultural da cidade». Entretanto, Coimbra e Braga perderam ou interromperam os seus Encontros, que tiveram um papel central na divulgação da fotografia…

O projecto esta semana apresentado por José Monterroso Teixeira, director municipal de Cultura, terá um formato de Bienal e potencia a actividade regular do Arquivo Fotográfico de Lisboa, articulando-a com outros espaços institucionais da cidade num programa diversificado. A inclusão do Pavilhão de Portugal tem um declarado papel de alerta e de pressão no sentido da definição de uma vocação de índole cultural para o edifício (aí ficará o Museu Berardo?).

Com a adopção de uma linha temática em torno da cidade e questões urbanas, coroada por um título – «Passagens» - que alude ao filósofo marxista alemão Walter Benjamin (1892-1940), o programa, sustentado por uma verba da CML de 400 mil euros, compreende um núcleo central de 14 exposições e mais oito apresentadas por entidades convidadas a aderir ao projecto. A abertura ao vídeo e ao cinema, a confluência com o que se designa como arte contemporânea (o que refere mais questões de estilo e circulação institucional que de cronologia) e a acentuação da dimensão teórica na relação com as imagens são outras das regras seguidas por Sérgio Mah, professor na Universidade Nova e no Ar.Co.

É o que vai verificar-se na mostra colectiva «Arquivo e Simulação», com que o programa se inícia no CCB (dia 29), «visando a reflexão sobre a natureza e cultura da fotografia – nas suas dimensões estéticas, perceptivas e especulativas – no actual panorama de combinação e contaminação com outros dispositivos de imagem». Entre 15 autores encontram-se Francis Alÿs, Sophie Calle, Thomas Demand, Lorca diCorcia, Pierre Huyghe, Beat Streuli, Frank Thiel e os portugueses Daniel Blaufuks, Alexandre Estrela, Augusto Alves da Silva e João Tabarra. Também no CCB será apresentado Chris Marker, com o filme La Jettée (1962) e o CD-ROM Immemory.
Na Cordoaria (dia 29) ver-se-á uma selecção das grandes paisagens norte-americanas de Joel Sternfeld, «American Prospects», realizadas a cores desde os anos 70, e também retratos recentes da série «Stranger Passing». Outra mostra é dedicada a fotografias e vídeos do teórico e artista conceptual inglês Victor Burgin. A componente histórica do programa inicia-se (dia 31) na Galeria D. Luis do Palácio da Ajuda com «O Mundo de Weegee», antologia do famoso fotógrafo das ruas de Nova Iorque, nos anos 30 e 40, vinda do Internacional Center of Phtography.
Já em Junho, o Pavilhão de Portugal abre dia 4 com outras tantas esposições: de Hiroshi Sugimoto, que já foi visto no CCB, chegam as imagens desfocadas de ícones da arquitectura do séc. XX, e o brasileiro Arthur Omar mostra «Antropologia da Face Gloriosa», dezenas de  rostos fotografados durante o Carnaval do Rio ao longo dos anos, a que se juntam um vídeo de Gilberto Reis e trabalhos recentes de Daniel Malhão e Nuno Ribeiro.
A Galeria da Mitra apresentará fotografias de Lagos (Nigéria) realizadas pelo holandês Edgar Cleijne, na sequência de um projecto dirigido por Rem Koolhaas, e o Oceanário 25 imagens de Luís Pavão de "Lisboa em Vésperas do Terceiro Milénio" (ed. Assírio e Alvim). O Arquivo mostrará em estreia parte da Colecção de Ferreira da Cunha, incluindo alguns pioneiros da reportagem fotográfica em Portugal, e, no Convento das Bernardas, a primeira retrospectiva de Eduardo Portugal, que fotografou Lisboa nas décadas de 30 a 50. Por último, o Museu do Chiado vai expor uma antologia vinda do Centro Pompidou do fotógrafo e cineasta Eli Lotar (1905-1969), francês de origem romena que colaborou com as revistas «Documents» e «Minotaure».
O programa (a consultar em www.lisboaphoto.pt) prolonga-se com participações das escolas Ar.Co e Maumaus, do Instituto Franco-Português e das galerias Cristina Guerra, Luís Serpa, Lisboa 20, Baginski e Promontório Arquitectos.

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LisboaPhoto 2003 - II

"Retratos da América" (Weegee e Sternfeld)

in Expresso/Cartaz 07-06-2003

Dois fotógrafos dominam o programa do LisboaPhoto, o histórico Weegee e o contemporâneo Joel Sternfeld

As paisagens americanas de Joel Sternfeld expunham-se em grandes provas de 40,7 por 50,8 centímetros e eram fascinantes no seu registo distanciado de infinitos pormenores, e na tranquila suavidade das cores em que se distinguiam as diferenças de luminosidade dos lugares e das estações. Agora surgem em enormes ampliações de 122 por 152,4 cm (em edições de dez exemplares) e ganharam ainda melhores condições de visibilidade no novo formato permitido pelas tecnologias digitais de impressão.
O olhar, e também o corpo, deambula por estas imagens de inexcedível clareza, percorrendo a paisagem, os seus objectos e habitantes, num lento exercício de descoberta onde o realismo mais banal se encontra com o humor e a estranheza. Não podia ser mais cruel o contraste com os quadros fotográficos da exposição no CCB, onde a grande dimensão (e a unicidade ou escassez das provas) é quase sempre e só uma imposição do mercado e uma cedência à cegueira dos espectadores e às convenções estéticas da pintura (académica).

Com a mostra de Sternfeld no espaço amplo da Cordoaria, desiquilibra-se a colectiva central da LisboaPhoto como uma monótona acumulação de retóricas estereotipadas ou vulgarmente pretenciosas. É ele quem leva mais longe a ambiguidade da fotografia como uma arte da percepção em que se conjugam e enfrentam o registo e a construção da imagem, o documento e a visão subjectiva, a informação e o indizível, explorando ao mesmo tempo o mundo real e as condições ou contradições da reflexão sobre a apreensão fotográfica. Os artistas reunidos no CCB, encenadores ou cultores do instantâneo em forma de quadro, parecem, nos melhores casos, executar exercícios escolares inspirados pela sua obra. É o que sucede com os episódios cinematográficos de Gregory Crewdson, cujo sentido se esgota na compreensão da estratégia de produção, ou os transeuntes fotografados por Philip-Lorca diCorcia, que nada acrescentam às suas séries anteriores. Com ressalva do trabalho de Frank Thiel sobre a renovação arquitectónica de Berlim, onde a interpretação documental e a construção plástica são também uma radical reflexão empírica sobre a monumentalidade objectual permitida pelos recentes meios técnicos da fotografia (a sua maior prova, de quase cinco metros de comprimento, não é uma proeza vã).

Joel Sternfeld é um artista contemporâneo e os 65 retratos da série «Stranger Passing», de que se expõem 14 peças, foram pela primeira vez reunidos em 2001 no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Realizados ao longo dos últimos 15 anos, em grande parte muito recentes, respondem a numerosas obras que desde os anos 70 pretenderam ilustrar a desvalorização ou a impossibilidade do retrato realista através das estatégias da encenação, da apropriação ou da hiper-objectividade de rostos anonimamente vulgares, com que se justificaram projectos neo-conceptuais, neo-picturialistas, simulacionistas, etc, que abastecem o mercado institucional e ocupam a reflexão teórica académica (o «adeus à fotografia» de Victor Burgin, «a batalha contra a fotografia» de Jeff Wall, de que este se autocriticou depois de se confessar derrotado).
São os retratos de Sternfeld que situam a mais extrema actualidade e que estabelecem os padrões de avaliação crítica mais exigente da produção fotográfica contemporânea, actualizando com personagens de hoje e meios técnicos actuais uma tradição viva, que nunca se congelou numa lógica modernista fechada à mudança. August Sander é uma referência citada a propósito destes retratos integrados na paisagem urbana ou rural, que de certo modo também se podem ver como um inventário de tipos. No entanto, estes personagens desafiam, de facto, a possibilidade da sua categorização como representantes de classes, raças e profissões, mantendo sempre uma ambiguidade essencial àcerca da sua identidade individual e da natureza da representação fotográfica.

Os ténis vermelhos do velho homeless negro de Nova Iorque, cujo olhar nos interpela frontalmente, distinguem-no individualmente, tal como as marcas de uma inacessível vida pessoal que esculpem a dureza do rosto da mulher a vender os jornais de domingo numa estrada do Colorado. Uma outra ambiguidade essencial reside nas expressões de surpresa ou súbita rejeição face à câmara que são visíveis nos rostos do bancário que almoça na esplanada ou do advogado surpreendido a comprar o jornal, segurando a roupa para a lavandaria. Não se tratando de instantâneos furtivos nem de actores encenados, e não existem informações sobre os métodos de trabalho, têm de supor-se a disponibilidade do fotógrafo para o acaso da fotografia de rua e excepcionais aptidões de empatia, que se adivinha na frontalidade e reciprocidade dos olhares. Retratos como os da mulher que brinca com a filha (Tres Orejas, Novo México) ou o casal de finalistas vestidos para a festa no Hilton (San Antonio, Texas) transbordam de uma energia  exaltante, que se constitui como uma visão do mundo, uma poética e uma crítica.
Sternfeld, nascido em 1944, fotógrafo «freelance» desde 1966, professor desde 1971, reunira a série das suas paisagens em 1987, exercendo uma grande influência no uso da cor documental por fotógrafos mais jovens. Americans Prospects era o trabalho de nove anos de viagens de carro através da América, com que retomava a ambição dos grandes itinerários de Walker Evans e Robert Frank, renovando uma tradição que entretanto se alargara com os fotógrafos da paisagem social (Diane Arbus, Bruce Davidson, Lee Freedlader e Garry Wininogrand) e com a «New Color» de Stephen Shore, Joel Meyrowitz e William Egglston. Tudo isso foi muito pouco visto em Portugal.
Outro dos marcos da tradição documental é Weegee, de quem se apresenta uma retrospectiva itinerante do International Center of Photography de Nova Iorque. Usher Fellig, depois Arthur Fellig, nasceu em 1899 na Áustria (hoje, Ucrânia), numa família judia, e chegou aos dez anos a Nova Iorque; aos 14 arranjou o primeiro emprego na fotografia comercial, tornando-se depois impressor e foto-repórter. A sua obra é um dos exemplos de como a fotografia americana se construiu num diálogo permanente entre o realismo vernacular e a intenção artística.
Entre 1935 e 1947, Weegee construiu como «freelance» um vasto panorama da vida urbana e popular de Nova Iorque, especializando-se em imagens de crimes violentos e desastres, da suas vítimas e espectadores, notáveis pela expontaneidade e a crueza do seu voyeurismo. Trabalhando quase sempre de noite, com a clássica Speed Graphic dotada de um potente flash, tornou-se famoso também pela rapidez com que acorria aos lugares dos acidentes e seguia com os seus «scoops» para as primeiras edições dos jornais. Dormia ao lado de um rádio sintonizado na frequência da polícia e circulava com outro no carro, levando no porta-bagagens todo o equipamento de revelação e impressão, a máquina de escrever e a caixa dos charutos.
Notável era igualmente o sentido de auto-promoção com que carimbava as fotografias com o crédito «Weegee o Famoso». A partir de 1940 começou a publicar foto-histórias no vespertino progressista «PM» e em 41 a Photo League dedicou-lhe a exposição «Weegee: Murder is My Business», a que se seguiu em 43 a compra de fotografias pelo MoMA (exposição «Action Photography»). Depois do enorme êxito do livro Naked City, em 1945, transferiu-se para Hollywood, onde trabalhou como actor e consultor de filmes, fixando o estereótipo do fotógrafo-detective, mas decaiu como autor. Usem-se com prudência os textos do catálogo, onde escasseiam as informações e sobram especulações deste género: «Endereçar a democracia da fotografia como um médium modernista é uma posição mais típica da Europa que da América… »
Joel Sterfeld / O Mundo de Weegee
Cordoaria e Palácio da Ajuda

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LisboaPhoto 2003 - III

"Visões da cidade" Expresso/Cartaz 14-06-2003

Lisboa em três exposições e um pequeno salto a Paris (com Eli Lotar)

Um dos principais méritos da LisboaPhoto é a abertura da programação, onde a par da arte contemporânea que utiliza a fotografia e o vídeo, vulgarizando novas aquisições técnicas, se incluem práticas funcionais da fotografia como o fotojornalismo e a actividade documental e topográfica.
Com o museu e a galeria, em que se estabelece o reconhecimento histórico (Weegee e Eli Lotar) e se propõe o contemporâneo como género específico ou nova categorização essencialista, concorre o espaço incerto do arquivo, no qual se suspende a atribuição prévia de uma natureza artística dos objectos. Essa contiguidade é positiva para se entender a ambiguidade do medium fotográfico. Quando qualquer coisa pode ser arte, as distinções que importam dizem respeito à atenção que as imagens despertam e aos sentidos e prazeres que asseguram.

Aliás, o próprio projecto da bienal veio afirmar com nitidez a importância do arquivo – e concretamento, do Arquivo Fotográfico Municipal – como parceiro e instituição âncora do programa, potenciando uma das raras situações de continuidade de uma missão que tem sido sacrificada noutros casos.
Com o curto tempo de preparação que teve a LisboaPhoto, o Arquivo optou por apresentar trabalhos que tinha em curso sobre dois espólios entrados nos seus depósitos. Por sinal, o de Eduardo Portugal foi o primeiro que recebeu, em 1991, por ocasião da passagem para as instalações na Rua da Palma, inauguradas em 94, e o espólio de Ferreira da Cunha é o mais recente, doado em Junho de 2000 pela Sojornal, depois de ter sido adquirida pela empresa de «A Capital».

Fotógrafo do «Diario de Notícias» até à sua morte em 1970, depois de ter trabalhado desde meados dos anos 20 em «O Século» e outras publicações, Ferreira da Cunha foi também um coleccionador. O seu acervo de 2270 negativos em chapas de vidro de formato 9x12 cm (de que são expostas 84 provas muito bem impressas no AFM, havendo mais cem incluídas no catálogo e um total de 800 consultáveis na base de dados) é consagrado ao fotojornalismo da primeira metade do séc. XX, contando nomeadamente com trabalhos de Joshua Benoliel, para a «Ilustração Portuguesa» no período de 1906 a 1918. Neles se vinca o papel pioneiro da sua prática do instantâneo de rua e o interesse pela efervescência do quotidiano e os rostos anónimos, que influenciou os foto-repórteres seus contemporâneos e posteriores.

Da agitação dos anos da República à ordem pesada do Estado Novo, a mostra reúne uma importante galeria de retratos informais, de Afonso Costa a Carmona, e a Salazar – vejam-se o encontro de ambos em 1934, a sessão fotográfica de Carmona com Judha Benoliel e Leitão de Barros, e Salazar recebendo informações da revolta militar de 1931. A sequência é cronologicamente disposta com agilidade, em vários formatos, acompanhando as convulsões da política com os «fait-divers» da vida urbana e social, num panorama em que a memória histórica se preenche de acontecimentos e figuras humanas. 
No renovado Convento das Bernardas, um lugar a descobrir, apresenta-se Eduardo Portugal, cujo nome se manteve quase ignorado apesar da vastíssima produção entre as décadas de 30 e 50. É um caso raro dum espólio integralmente conservado, oferecido pela família, com cerca de 30 mil negativos, contactos, provas ampliadas (também de outros autores), postais, 170 álbuns e registos pessoais, que se encontram ainda em grande parte por estudar.
Em vez de uma síntese apressada da respectiva carreira, optou-se por dedicar a exposição às fotografias em que documentou as transformações urbanísticas de Lisboa (entre 1928 e 1954), acompanhando em especial os anos decisivos de Duarte Pacheco (1932-43). Organizada, com as suas provas de contacto (9 x 15 cm), em três itinerários topográficos que no catálogo a publicar são objecto da leitura histórica de Ana Tostões, a mostra apresenta-nos uma prática rigorosa da cartografia fotográfica, que se destinou à edição de postais, roteiros turísticos, publicações de olisipógrafos e outras, para além das encomendas que realizou para a Câmara.
Evitando selecções que poderiam inventar um autor-artista através da concentração em alguns temas ou tipos de imagens (lugares pitorescos dos bairros populares, espaços de amplas perspectivas quase desérticas, séries «conceptuais» de candeeiros de rua, etc), a mostra segue a competente neutralidade com que Eduardo Portugal faz o inventário dos lugares, antecipando-se às alterações da paisagem urbana, regista as demolições de núcleos antigos ou o rasgar das quintas periféricas, e acompanha com minúcia a construção da nova cidade.
Outras mostras virão depois a avaliar a obra realizada com ambição artística, nos primeiros anos de actividade (de 1918 até 1928-30), de que se divulgam no catálogo e em vitrinas alguns exemplos com marcas picturialistas, e também os seus retratos e temas etnográficos. Entretanto são as imagens de Lisboa que ficam disponíveis, ampliando a paisagem urbana e oferecendo-se a várias direcções de investigação.

É sensivelmente na mesma data em que Eduardo Portugal troca a «fotografia de arte» pela objectividade documental que tem início a actividade parisiense de Eli Lotar (1905-1969), sintonizada com o crescimento da grande imprensa ilustrada. Trata-se aqui de uma muito diferente prática do documento, fortemente autoral, distanciada da ilustração e com um novo tipo de intenção artística identificada com a consciência da modernidade tecnológica e social.
Antologia de uma obra breve (1927-37), que foi partilhada com o cinema e não chegou a ganhar uma especial individualidade entre os renovadores da mesma época (em França, Man Ray, Germaine Krull, Maurice Tabard, Kertesz, Brassai, etc), esta é também uma exposição de arquivo, até por contar só com impressões recentes, vindas do Centro Pompidou - teria sido mais produtivo fazê-las acompanhar ou mesmo substituir pelas suas publicações nas edições do tempo, em que também se renovavam a paginação e o lugar da fotografia. (Que o Museu continue esvaziado da sua colecção histórica é apenas a continuação de um conhecido escândalo, talvez mais chocante neste caso.)
Nascido em Paris, de origem romena, Eli Lotar trabalhou a partir de 1927 com Germaine Krull, a influente autora do álbum Métal, desse mesmo ano e verdadeiro manifesto da modernidade associada à era da máquina. Foi um dos primeiros colaboradores do semanário «Vu», criado em 1928, e teve uma breve colaboração de estúdio com o surrealista J.-A. Boiffard. O seu trabalho mais famoso, sobre o Matadouro de La Vilette, que realizou na companhia de André Masson, foi encomendado por Bataille para acompanhar a entrada «Abattoir» no «Diccionário Crítico» que publicava na revista «Documents», e surgiu depois mais extensamente em «Variétés» e «Vu». Abandonou a fotografia em 1937, passando ao cinema com Jean Painlevé, Joris Ivens, Renoir e Buñuel (foi câmara em Las Hurdes, 1933), realizando um importante documentário de cunho social, Aubervilliers, em 1946.
Parte substancial da sua produção segue o modelo da «Nova Visão», que se afasta dos modelos picturais para explorar a objectividade da imagem fotográfica pura, através do pormenor significante e dos pontos de vista inesperados e insólitos, a par de uma procura poética da estranheza do banal quotidiano que interessava ao surrealismo. Uma fotografia de Lisboa (1927-30) substitui-se à modernidade que então não tivemos.

De Paris regressa-se a Lisboa e chega-se à actualidade com Luís Pavão, de quem se expõe no Oceanário uma selecção de 25 fotografias, em provas de grande formato quadrado (um metro de lado), seleccionadas do livro editado em 2002 pela Assírio & Alvim, "Lisboa, em Vésperas do Terceiro Milénio". Poderiam desejar-se, porém, melhores condições de produção para esta mostra que apenas apresenta cerca de dez por cento do projecto editado e a que haveria que atribuir um lugar central num programa dedicado à cidade e às questões urbanas.
Durante dois anos (Janeiro 2000-Dezembro 2001), Pavão calcorreou Lisboa com a disciplina de quem desenha o mapa da cidade em mudança, fixando os seus alvos, procurando os melhores lugares (e horas) de observação – muitas vezes elevados, às vezes com recurso a gruas – e assegurando o acesso a lugares reservados. O retrato resultou, em livro, num imenso «puzzle» organizado com um sentido do ritmo e da surpresa que continuam a ser surpreendentes.  Documento, testemunho, inventário cartográfico, percurso sentimental, esta obra é um monumento erguido a uma cidade concreta, conhecida e revelada, com a sua arquitectura, trânsitos e habitantes. E é também um manifesto por uma urbanidade mais digna. 

Colecção Ferreira da Cunha,  / Eduardo Portugal,
Eli Lotar
e Luís Pavão
Arquivo Municipal, Convento das Bernardas, Museu do Chiado e Oceanário



sábado, 12 de outubro de 2002

Fátima Mendonça, 1996 (Arte Periférica), 1998, 1999 (Fernando Santos), 2001 (Prémio Maluda), 2002 (111)

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2009: Exposição na Galeria 111, de 10 de Setembro a 7 de Novembro

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Escritos desde 1994

FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica, Massamá
Expresso Cartaz de 17-09-1994

Um desenho que é aparentemente infantil para falar de experiências e violências físicas suporta a narração de histórias em que entram uma noiva, um bolo e um cão mau. São as grandes telas, onde um corpo flutua, exposto e pensado do interior, num espaço vago de manchas e rasuras, que melhor traduzem, depois de Dubuffet e Paula Rego, mas sem epigonismo, a energia de um discurso que aqui começa. Uma primeira individual que nos faz aguardar novos trabalhos. (Até 5 Out.)
 
FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica/Belém
Cartaz Expresso 18-11-1995
Três telas de grande formato dão sequência a uma pintura que joga abertamente na criação de uma narrativa centrada numa personagem feminina e num quotidiano de aspirações comuns, convenções, desejos e alegrias, medos e protestos — «estórias da menina mal-amada», no título da apresentação de Rocha de Sousa. O uso da cor vem agora dar uma outra intensidade a um grafismo aparentemente ingénuo, próximo do graffiti, enquanto as anotações escritas («ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», «descobrira-lhe mais de dez namoradas iguais a ela», «ela esforçava-se muito por lhe agradar») recriam episódios de uma intimidade ficcionada de menina ou noiva «saloia», entre formas de bolos e «suspiros», que também pode surgir travestida de toureira. As histórias são mais sangrentas do que parecem.
 
1997
"A sedução e a culpa"

Cartaz Expresso 11 Jan. 1997

Arte Periférica, Dez. 1996 / Jan. 97

Pela terceira vez consecutiva (em 1994, na galeria de Massamá), Fátima Mendonça mostra no final do ano como cresce regularmente a sua pintura. Não quanto aos formatos, sempre largos como paredes, mas na consolidação de um discurso, dos seus recursos, dos seus personagens e da marca distintiva de uma autoria, talvez ficcional, talvez confessional — questão adiada ou sem sentido.
A ideia de parede confirma-se na dispersão das notações, desenho e escrita, deixadas sobre a tela, repetidas, recomeçadas, distribuídas como se de um quarto fechado se tratasse, obsessivamente preenchido pelos «graffitti» de um preso, e como se esse fosse o diálogo possível com os outros, sempre através do espelho de si mesmo. As quatro telas-paredes expostas fecham-se, de facto, como um quarto, mas uma delas é ocupada por um corpo nu de criança, imperfeitamente feminino, oferecido, exposto e inseguro, a crescer nos seus sapatos altos de mulher. Ou é de um desenho infantil que se trata, retrato incerto (menina ou mãe, boneca), memória reaprendida de uma idade de terrores e fantasias?
Os sapatos altos estão também, isolados, noutro quadro e vinham já de trás, da série exposta em 95, como acontece com as formas dos bolos e o rabo de touro, que agora se alinham a preencher outras duas paredes. Nas «estórias da menina mal-amada», como então as apresentava Rocha de Sousa, a criança-mulher surgira travestida de toureira, a ocupar o centro da arena, enfrentando o medo, fazendo-se temer.
«Ela esforçava-se muito por lhe agradar», «ele enchia-a de mimos», «A saloia», «A toureira a agradecer», «O baile», «manso, sem casta», «Ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», ía-se escrevendo, repetidas vezes, de quadro em quadro. Mas não há um fio narrativo a decifrar como chave de uma história-enigma contada por imagens; é a intimidade de um universo que se propõe ou enfrenta ora como memória, ora como sonho, ora como interpretação dos seus nós significantes, ou como a dramaturgia de um exercício de pintura, calculadamente elaborado no seu jogo de verdade ou fingimento. E os desenhos que se expõem numa parede exterior da galeria, aberta à rua, isolam os diferentes motivos-sentidos recorrentes num inventário de sinais, marcando, por exemplo, a passagem de um suspiro (bolo) à forma de um sexo feminino, ou acrescentando outras referências gráficas ainda imprecisas no seu curso.
O quarto é casa, «A casa do desarranjo» (título geral), e é cozinha, «a cozinha da minha mãe», com as formas dos bolos e os camarões, recheio culinário com uma presença invasora e grafismo obsessivo, com as receitas escritas e a contabilidade das vendas («ela fazia bolos sem parar»). Exercício de servidão ou castigo, modo de sedução, enquanto os rabos de boi se terão de ver como selvagem acção castradora («manso, sem casta, sem investida»), é sempre de um mundo de terrores e desejos que se trata («o medo, «malpropreté», «la douleur», «a doidita»), de um corpo que se observa, entre convenções e protestos, entre alimentos e fluidos, num espaço da ordem doméstica que é também o lugar da identificação sexual.
Sobre cada tela, o desenho e a escrita visíveis são como um véu último sobre uma sedimentação de ensaios apagados ou recobertos por sucessivas velaturas, como camadas sucessivas vindas à consciência, rasuradas ou expostas.

1998

Fátima Mendonça
Casa Fernando Pessoa - 14-02-98

O programa de ocupações do Quarto do poeta prossegue e, neste caso, a «instalação» volta a prolongar-se de modo invasor por outros espaços da Casa. Em vez de uma situação ilustrativa, F.M. construiu um quarto de criança/casa de bonecas que é um espaço de paredes integralmente desenhadas: cenário onde se instalam motivos conhecidos de obras da artista, referidos a um imaginário infantil e feminino cujo obsessivo devaneio se apresenta (ou se ficciona) como íntima viagem de aprofundamento das dependências parentais e da descoberta do corpo próprio. É a partir do Quarto que ganham sentido outras peças expostas, pinturas sobre tela e uma «instalação» onde cinco gaiolas encerram os corpos giratórios de uma menina-boneca que se expõe e esconde, nua, sob o voo de uma bruxa (imagem de condenação ou de desafio?). Sob o título «Camara Lenta», Fátima Mendonça procede a uma teatralização do mundo ambiguamente privado da sua pintura, oferecendo-o com humor ao mesmo tempo que refere numa citação do catálogo o Desassossego de Bernardo Soares. (Até 15 Mar.)

"Fátima, Joana, Sofia"
Três exposições de mulheres artistas põem em questão a ideia de pintura feminina

Expresso Cartaz de 23-10-98
NÃO existe certamente a pintura feminina, nem as três exposições estabelecem entre si naturais relações de afinidade. Se duas delas se prestam à leitura de uma auto-representação mais ou menos ficcionada ou fantasmática e de uma atitude confessional como exibição mais ou menos teatralizada, a terceira, onde a pintura se dirá abstracta, segue outro caminho das imagens, sem se poder ler como expressividade intimista. Nesta conjunção guiada pelos acasos da programação não comparece nenhuma atitude mais friamente analítica, mas esta também existe em obras femininas, e as generalizações serão sempre improcedentes. As individualidades, em casos de género ou geração, importam mais que a lógica do grupo. Mas pode notar-se que é a urgência mais imediata e livre do desenho que preside às três mostras.

Fátima Mendonça volta a convocar a pista de circo como lugar de exposição aos olhares alheios, como fizera há pouco tempo na Casa Fernando Pessoa, então com peças tridimensionais em que o «chapiteau» era também gaiola e a personagem dos seus quadros uma boneca giratória. Antes colocara-a numa outra arena como menina-toureira. Agora ela agradece desajeitada a ovação, atravessa o espaço em equilíbrio no arame, segura um cão certamente morto, vindo também de outros quadros, ou mostra-se de coração nas mãos, num outro «estudo para um grande amor», e como patinho feio em mais uma tela.
Existe uma absoluta continuidade narrativa no trabalho de F. M., construída pela intimidade de um universo povoado por referências recorrentes, e o uso da escrita sublinha mais ainda essa dimensão literária, que já não é objecto de desconfiança para a crítica «pura». Reconhece-se em algumas obras femininas uma radical capacidade de auto-exposição e intimidade, mas o exercício da projecção também se confunde com o gosto da teatralização, e entre exorcismo e fingimento não há aqui lugar para a ideia de verdade (ou de retrato e biografia), mas sim para a de construção de uma obra.
No trabalho de Joana Rosa surge uma nítida vertente confessional, sobre a persistência de um desenho espontâneo e compulsivo, o «doodle», mantendo-se esta denominação para novos trabalhos («Secrets») habitados por dois personagens de um teatro privado, a bailarina e a fada, enquanto a escrita passa a ter uma intervenção importante. A exposição, aliás, estabelece com nitidez, mas algum excesso de peças (o desenho é compulsivo...), a passagem das grandes composições de fragmentos cobertos pela grafite para essa produção mais recente.
«Yes Y want to look like this forever» é um comentário que, com variantes, acompanha os exercícios de uma bailarina-ginasta, desenhada com a elegância de um corpo de modelo, por vezes vulnerável à deformação, à queda (alguns corpos que se levantam lembram curiosamente os de Maria Beatriz) e também ao ridículo de um estereótipo – «No no she is ridiculous, but I like her hand...». A escrita que acompanha a imagem identifica a relação com o corpo próprio, ameaçado pelo tempo, enquanto a inclusão de desenhos infantis é justificada por uma muito concreta relação entre mãe e filha: «My daughter Madalena did this to help me...». Noutros trabalhos, J.R. usa a figura da fada importada do mesmo diálogo com a filha, assumindo-a como projecção de sonhos e terrores que não são apenas infantis. Uma última série de trabalhos radicaliza ainda a presença do texto (...a carta ou o diário), jogando com a colagem, a ocultação e a transparência, com a leitura fragmentária e a ilegibilidade.
No trabalho de Sofia Areal não está presente a figura e a escrita, mas não será inútil precisar que a actual exposição parte da colaboração num espectáculo teatral de Jorge Silva Melo, sem sujeição a um texto prévio mas como comentário de um tema, a alegria de viver. Mais concretamente, informa o encenador, «sobre a mão» e a «feitura da alegria» («a mão que faz a alegria» segundo o belo título da nota de catálogo). Dos cinco painéis verticais que então desciam da teia, mostram-se apenas dois, acompanhados por uma série de desenhos de varias dimensões que os quiseram continuar.
Não se tratou, é obvio, de ilustrar a alegria, mas, de algum modo, de tomá-la por programa ou disciplina, referindo-a num exercício de aparentemente despreocupada liberdade da mão, com uma expontânea expressividade que é também acaso calculado e secreta sabedoria, para entregar ao espectador a impossível e inútil tarefa de localizar um sol, uma flor, uma asa, talvez um riso. Poderá ser mesmo na impossibilidade da palavra perante uma explosão vermelha, uma onda azul, uma fresta negra, uma diferença entre brancos, que reside essa alegria.
A pintura de S. A. exercita-se sem rede e sem norma, correndo sempre o risco de desafiar a necessidade de uma razão justificativa, mas «no fundo, a questão é saber qual o significado do significado – há perguntas que não se fazem; há coisas que não se dizem», como se lia, a propósito de um espectáculo de Bob Wilson num texto da anterior «Revista».

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1999

Fatima 99
«Gosto da Minha Casinha 9», 1999

"Três artistas no Porto"
Expresso Cartrtaz de 27 de Novembro de 1999

CARLOS CARREIRO, Árvore (até 7 de Dezembro)
FÁTIMA MENDONÇA, Gal. Fernando Santos (até 31 Dez.)
PEDRO CABRITA REIS, Museu de Serralves (até 23 Jan.)

NENHUM comum ar do tempo percorre as muitas exposições inauguradas no Porto, nem se detectam sinais que sustentem identificações geracionais ou análises conjuntas. Às desigualdades entre programações somam-se as opções individualizadas dos artistas mais as variações de ritmo e risco das respectivas carreiras. Destacar as mostras de Carreiro, Fátima Mendonça e Cabrita Reis decorre de critérios que serão pessoais mas assumem a responsabilidade de justificar as qualidades reconhecidas a cada um, sem pretender atenuar as diferenças de direcção dos seus trabalhos.
E é uma mera coincidência, mas uma curiosa coincidência, que o primeiro seja um nome que se destaca entre os artistas surgidos em anos tão pouco favoráveis a consagrações como os 70; que a segunda chegue numa posição de amplo reconhecimento ao final desta década, contrariando os estereótipos com que se pretenderam identificar os jovens dos anos 90; que o terceiro seja uma figura central entre os artistas dos 80 que hoje lutam por sustentar a notoriedade alcançada, esquecendo-se tantas vezes que as obras se constroem em itinerários em geral longos e atravessados por altos e baixos, convulsões e viragens.

Carlos Carreiro dá às suas pinturas um título geral, «Dos Truques do Adamastor à Vingança dos Perus», que as situa de imediato no seu terreno habitual da celebração do imaginário, onde impera a fantasia, o humor e também algum comentário corrosivo. Com as novas obras, que, entre outras motivações pessoais, terão tido algum ponto de partida concertado com o calendário comemorativo dos Descobrimentos – lá estão, na tela maior que é referida na primeira metade do título geral, as caravelas e bandeiras pátrias, uma torre de Belém de barbatanas a tentar andar em direcções opostas, um Adamastor marionetista (seria imperdoável que este exemplo excepcional de «pintura de historia» no presente não tivesse destino institucional,... mas não podemos ter ilusões sobre os museus que temos) –, assiste-se a mais uma inflexão fortemente afirmativa do trajecto de pintor, prosseguido como um percurso original e solitário, marginal, se se usar o termo com sentido positivo face a valores correntes e dominantes.

A sua figuração luxuriante e minuciosa constroi-se como uma agregação interminável de personagens (históricos ou actuais, humanos ou animais) e de objectos (de consumo, máquinas e plantas, reais ou de fantasia – sem esquecer as metamorfoses entre personagens e objectos), em situações e lugares imbrincados num contexto narrativo absurdo e sem leituras unívocas. Em vários quadros, a acumulação de figuras e histórias organiza-se seguindo uma pista de flipper que pode transformar-se em estrada, filme ou intestino, numa sequência vertiginosa de invenções e citações (de estilos e de imagens, populares e eruditas), distribuída num espaço indefinível e labiríntico, ao mesmo tempo exterior e interior, de paisagem sonhada ou cartografia alucinada. Com barcos-vagens, carros-lulas, químicos e alquimistas, personagens de animação e BD, tigres gulosos, células invasoras, universos subterrâneos, flores e borboletas.

Reciclando com uma nova inventividade toda a obra anterior, a renovação de Carreiro passa agora pelo abandono da coloração fria da sua fase anterior, quase uniformemente azul com incrustações de objectos de cores «pop», na explosão de uma policromia com intensidades mais quentes, percorrida por estranhas constelações de pontos de luz. Talvez não seja impossível comparar a sua pintura à de Clovis Trouille, pintor maldito que os surrealistas anexaram em 1930 e é agora objecto de retrospectiva em Paris. Também inclassificável, Trouille associou a veia libertária a uma pintura de aparência académica, falsamente «naïf», em cenas eróticas de sentido anticlerical e antimilitarista; Carreiro serve-se livremente de todas as convenções antigas e modernas, passa do «kitsch» à ficção científica, e pratica o humor e a poesia com uma soberana ironia.

Fátima Mendonça estabelece com a série de telas «Gosto da Minha Casinha» um momento forte de continuidade e abertura no curso da sua pintura, identificada como a exploração mais ou menos ficcionada de um coerente imaginário pessoal de infância ou adolescência feminina, mas onde agora será talvez possível reconhecer a abordagem de outros tópicos ou tempos menos referenciáveis, sempre associados a um discurso narrativo supostamente autobiográfico que continua a surgir caligrafado sobre a tela.
É a paisagem – «simultaneamente, o mundo exterior e o mapa interior» (Ruth Rosengarten no catálogo) – que predomina na nova série, em obras em geral de grande e muito grande formato. Por duas vezes vista em panorâmicas sem linha de horizonte, focadas sobre campos estriados que marcam uma volumetria imaginária de colinas muito verdes (quatro linhas atravessam o quadro repetindo «errei»), ou de onde emergem plantas rapidamente esboçadas («minha flor») – noutro quadro um idêntico espalhamento distribui sapatos altos de mulher pelo espaço-campo quase liso da tela (mas a intervenção escrita refere couves e «o teu jardim»). Em mais duas telas a casinha do título é vista à distância, centrada entre árvores e montes, em imagens de um grafismo falsamente escolar imerso em manchas de cores doces e «ingénuas». Mas o mundo pode ser também cruel e incendiado (os coelhos embrulhados, a floresta em chamas).
Usando o óleo em barra para desenhar e colorir, ou o óleo muito diluído em manchas de ténues transparências, Fátima Mendonça oferece com ironia, desde o título, as pistas da leitura psicanalítica de que pode precisar-se para «explicar» a sua pintura. Mas os quadros sustentam com notório êxito uma visibilidade menos literária e redutora: eles inventam novas paisagens, contam histórias visuais, deslumbram e inquietam.

Pedro Cabrita Reis é objecto de uma antologia que estabelece a exacta sucessão desde a mostra do CAM, em 94, retomando três obras então expostas (colecção de Serralves ou aí em depósito) e acrescentando informação sobre um itinerário posterior que foi pouco visto em Portugal e contou com participações nas Bienais de Veneza e São Paulo, fora das representações oficiais portuguesas.
Quatro lugares decisivos marcam a montagem: uma construção no pátio de acesso ao Museu, cuja longa parede articulada e encimada por guaritas, recoberta por tela metalizada de alcatrão – Cidades Cegas # 5 / o Eco –, é associável a memórias de campos de concentração (Auschwitz, muro de Berlim, talvez os condomínios privados do presente); já na sala central, Sem Título, uma outra guarita com um mastro de bandeira derrubado e um feixe de lâmpadas de néon; depois, o corredor interior do Museu percorre-se entre construções de alumínio e cartão, elevadas e adossadas às paredes, lembrando habitações precárias ou também postos de vigilância (Cidades Cegas # 2); por fim, Catedral # 3, intervenção na grande galeria final do percurso que rasga as paredes brancas de Siza com o início de quatro outras paredes de tijolo só precariamente aparelhadas.
Concebidas ou readaptadas em função do espaço físico onde se mostram, são também peças arquitectónicas em si mesmo, como quase desde o início sucedeu com a escultura de Cabrita Reis. Porém, enquanto as peças anteriores faziam referência a modelos arquetípicos (poço, fonte, canal, mesa, casa) ou se viam como construções enigmáticas (lugares de concentração de energias, de observação cósmica, etc), as novas arquitecturas podem ver-se como comentários sobre a cidade actual, evocando lugares concentracionários ou de vigilância, ao mesmo tempo que se referem, especialmente através dos materiais empregues e das soluções construtivas (tijolo, cartão usado e tábuas, caixilharia, etc), às arquitecturas improvisadas das marquises e dos bairros de lata. São obras que ocupam com grande força cenográfica os lugares de exposição, respondendo de modo afirmativo (enfático, por vezes) às solicitações das grandes mostras internacionais onde imperam as montagens «in situ», as estratégias instaladoras e a grande escala dos objectos, até como condição de visibilidade, ao mesmo tempo que parecem assumir uma dimensão crítica sobre o estado do mundo, com referências à pobreza, exclusão e repressão.
Entretanto, a antologia dá também largo espaço ao que pode continuar a chamar-se pintura, embora se deva notar que a pintura actual de Cabrita Reis transporta igualmente poderosos vínculos com a arquitectura, desde logo pelo uso pictural de materiais ou equipamentos de construção. Dobles Pinturas Negras #2 e #4 (Madrid), de 98, serão mais uma contribuição para a linhagem do monócromo, em dípticos de placas de vidro, rectângulos ou círculos, onde a aplicação de pintura negra se faz, em cada elemento, sobre ou sob a superfície do suporte – elas decorrem da apropriação de caixilhos de portas encontrados e da montagem de vidros com aplicação de esmalte dos Lisbon Gates mostrados no CCB em 97 («For Heinner Muller»). Cabinet d'amateur #1 (Serralves) é uma disposição de inúmeros dípticos formados por campos de cor lisa, onde é a cenografia que volta a sustentar a eficácia das partes. Sempre com uma energia reconhecidamente intensa, com uma elegância certa, as últimas obras (vejam-se a grande porta de Table Dance e a pintura Flor Negra, em confronto com a menoridade de «Os Últimos», pequenos auto-retratos desenhados) estão às vezes à beira da facilidade retórica e de um uso defensivo das grandes escalas.

Nota: Chegam este fim de semana ao seu termo as exposições de António Júlio Duarte e Augusto Alves da Silva, de fotografia e vídeo, apresentadas pelo Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação; referidas em artigo anterior, são outros dois grandes momento do programa expositivo do Porto, que parece impor-se já como capital cultural. Assine-se, entretanto, a saída do livro Peepshow, de A. J. Duarte, que se impõe como uma das melhores edições do CPF.

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24 Novembro 2001

Prémio Maluda para Fátima Mendonça
Na terceira edição do prémio anual de pintura atribuído a uma jovem artista

Fátima Mendonça venceu a terceira edição do Prémio Maluda, instituído por um legado testamentário desta pintora e destinado a galardoar anualmente um artista com menos de 40 anos por uma exposição individual de pintura realizada em Lisboa na anterior temporada. Depois de Ana Vidigal e Cristina Valadas, o prémio voltou a distinguir uma mulher, apesar dessa não ser uma condição do regulamento. Com uma dotação de cinco mil contos, trata-se de um dos mais importantes prémios artísticos nacionais, de valor igual ao Prémio EDP de pintura, recentemente atribuído a Pedro Calapez, e muito superior ao prémio oficial AICA-MC, concedido também anualmente pelo Ministério da Cultura por escolha de um júri da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), com características de consagração de carreira. O júri foi constituído por José Augusto França e Fernando de Azevedo e por mais dois críticos da AICA cooptados por estes, Luísa Soares de Oliveira e Cristina Azevedo Tavares, além de José João Brito em representação da Sociedade Nacional de Belas Artes, que presidiu, conforme as disposições estabelecidas pelo legado. Fátima Mendonça foi premiada, por unanimidade, pela exposição que realizou em Junho na Galeria 111, a que deu o título «Eu Tenho Medo: lá, lá, lá, lá, lá...», sendo o respectivo catálogo prefaciado por Carlos França.
Tendo exposto regularmente, desde 1994, na Galeria Arte Periférica, a pintora fizera também uma exposição individual em 1999, no Porto, na Galeria Fernando Santos, que apresentou os seus trabalhos nas feiras de Madrid, Lisboa e Colónia. Nascida em Lisboa em 1964, Fátima Mendonça licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes desta cidade, em 1990.  De acordo com a acta divulgada, o júri considerou «uma pintura de agilidade discursiva e provocatória servida por uma expressão pessoal impulsiva em que se confrontam duas realidades, uma imaginária e outra de conteúdo crítico.»
A artista apresentara pinturas e desenhos de grande formato onde dava sequência a uma produção de reconhecível teor narrativo, construída com referências a situações relacionais de infância e de afirmação feminina, onde o enfrentamento conflitual com o mundo é vivido entre a sedução e a culpa, o desafio e o pesadelo, enquanto a inscrição de palavras e frase lhes confere a sugestão de um diário emocional, de cunho confessional ou ficcionado.
Uma frequente evocação do espaço doméstico (a casa, a cozinha, que antes se alargara a um original tratamento da paisagem) surgiu nessa última exposição dramatizada por uma veemência gestual inesperada, enquanto uma iconografia recorrente - bolos, coelhos, corações, sexos - assumia uma intensidade expressiva de apocalíptica, em cenários interiores claustrofóbicos ou incendiados. Em alguns trabalhos, a arena de circo ou de tourada (e a figura de uma mulher toureira ou equilibrista, enquanto personagem auto-referencial) voltavam a estar presentes como metáforas de um mundo de espectáculo e lutas cruéis.
Com um percurso individual e de crescente notoriedade, Fátima Mendonça é um dos artistas que mais se destacaram ao longo dos anos 90, embora à distância do que alguma crítica e as instituições dominantes (onde nunca expôs, aliás) procuraram estabelecer como as tendências características da década, das quais quase sempre se pretendeu excluir a prática da pintura. Mas por vezes, como agora sucedeu, reconhece-se que é à margem dos estilos colectivos que se constroem as obras que mais importam, as criações pessoais, independentes e originais.
 

 
"Com papas e bolos..."
Mais um episódio da história que Fátima Mendonça vem contando em pintura
2002 Expresso Cartaz de 12 Outubro 2002
 
Galeria 111, Porto, até 9 de Novembro

Foto «Para te fazer não tem nada que saber III», 2002, pastel de óleo e lápis de cor sobre papel

«O pai, o João, eu com o meu vestido de couves e a mãe arranjados para a fotografia». Retrato de família, portanto, da fotografia à pintura, protagonizado por um eu-menina onde a pintora se projecta, devassando memórias e fantasias de infância ou tecendo-as como uma ficção continuada, com que nos enleia de exposição em exposição, crescendo como pintora. Em vez de cabeças, quatro grandes sacos de bolos sobre o fundo quase branco, apenas esboçado, todos cheios de doces redondos com uma cereja em cima. Retrato paródico ou cruel que prolonga um grande desenho da exposição anterior, onde uma menina-bailarina dançava entre coelhos, com a sua cabeça de bolos, segurando duas bandarilhas-espetos com mais bolos, a enfrentar a vida - «eu tenho muito medo», lia-se. As bandarilhas vinham de uma menina-toureira deixada sozinha na arena, que noutros quadros passou a ser pista de circo, e então a menina-acrobata equilibrava-se sobre o arame com as suas asas feitas de bolos, «do tamanho de pequenos punhos de criança», numa exibição mais que desajeitada («andar e voar e fazer có, có, cócó», escreveu ela numa das obras desse ciclo, não fossemos não querer reconhecer o que víamos). Os dejectos, envoltos em invólucros ovais, em ovos, aparecem agora a preencher o espaço imenso (mais de dois por três metros) de uma tela que já se vira na Arco, em versão entretanto retrabalhada, toda ela rodeada por um mimoso folho de tecido e lã, onde, entretanto, à referência à «casa cagalhona» se somou o subtítulo «Incubadora».
A forma redonda da arena das touradas, da pista do circo, da gaiola que prendia a menina-pássaro, da rede circular onde, na exposição de há um ano, se acumulavam corações bem vermelhos («eu tenho de chorar mas esqueço-me porquê»), da forma (fôrma) de bolos e da grelha do fogão, é agora incubadora e dela nascem «meninos com creme de chocolate e meninas com doce de morango» («bolos para te agradar»). São as novas personagens das mais recentes obras de Fátima Mendonça, «bolos de pão, como filhos», acompanhados pela respectiva receita e pelo registo laborioso das centenas de unidades diariamente produzidas na fábrica doméstica, a cozinha de tantos outros quadros: «Para te fazer não tem nada que saber», afirma o título da exposição.

Os bolos-filhos surgem bem reais como pães comestíveis numa instalação-montra e também em vários grandes desenhos a pastel de óleo, saindo de uma grande forma de bolos que se prolonga em vestido de menina (a mesma rede circular, prisão, casulo e ventre) visto pendurado num cabide ou, noutro caso, desajeitadamente envergado («o vestido do inferno») - e aí, decifrando as garatujas e percorrendo os escritos, vêem-se sexos femininos, «as minhas vergonhas» de outros quadros, urinando para o ar («como um rapaz»). Não estamos na cozinha, de facto, mas na vida, a enfrentar o mundo com terrores e desejos, escavando a memória entre o exorcismo e a ironia.
«Deixar que este universo mental tenha uma vida visual, que encarne uma turbulência que não se limite a desenvolver um relato literário ou memorial é o desafio permanente desta obra em cada momento que ela se revela», escreve Celso Martins no seu prefácio para o catálogo. Desafio vencido. A narrativa não se substitui ao que está a acontecer sobre a tela ou o papel, fixada antes de surgirem (como sucede na ilustração e na pintura literária) os desenhos pintados com a urgência aqui visível das suas grandes pinceladas negras e das manchas invasoras, de vermelho-sangue: o que importa passa-se à nossa frente, no espaço branco do suporte, como um desafio oferecido à nossa própria capacidade de imaginar. É o impacto visual de cada obra, tantas vezes com a violência do grito, que nos faz precisar de um fio narrativo que «explique» o que vemos, obrigando-nos, para segurança nossa, a decifrar as anotações escritas ou rasuradas, a reconhecer personagens e a inscrevê-las na «estória» já longa da obra de Fátima Mendonça, que não importa se é ou não a sua história pessoal, íntima. Como acontece com Louise Bourgeois (a mãe-aranha, a oficina doméstica de restauro de tapeçarias, o quarto-cela) e com Paula Rego, por exemplo, mas os exemplos seriam quase todos femininos, o teatro do mundo está muito próximo da vida, a arte conduz-nos por abismos e sonhos reais, tão fundos que raramente os podemos ver.