domingo, 7 de setembro de 2025

UM CATÁLOGO SEM RESPONSABILIDADE. MIRIAM CAHN NO MAAT

 “Cabe a uma instituição como o MAAT, consciente do seu papel numa sociedade em crise, enfrentar as dificuldades da apresentação sem filtros deste discurso, dando conta da sua relevância estética e ética.”

Este "discurso” é o de Miriam Cahn, e é assim referido: “corpos (notoriamente femininos) que nos interpelam sem rodeios, confrontando-nos com a violência a que são sujeitos. Nada do que diga respeito à dimensão sexista dessa violência (patriarcal e militar, económica e geopolítica, religiosa e cultural), à dor física e ao sofrimento emocional que daí resultam nos é escondido - tudo é sobre-exposto (....)”
Aliás, as primeiras linhas do prefácio sem título assinado pelos comissários-directores do Museu, João Pinharanda e Sérgio Mah, anunciavam: “É com enorme convicção e sentido de responsabilidade cívica que o MAAT apresenta...”.
Mas o “sentido da responsabilidade cívica” não se cumpre no catálogo editado, pelo contrário. Paguei por ele 44 euros e penso que há por aqui uma hipócrita contradição: a quem serve um volume assim?
São 352 páginas, um excesso, um luxo, 3 cm de lombada, por € 44, e só 600 exemplares: lá se vai a "responsabilidade cívica". Ficamos com a "elite", para ofertas e representação da empresa (quantos exemplkares seguem para Pequim?). Entre nós muitos catálogos são objectos sem destinatário, sobre-dimensionados, invisíveis, invendáveis-incompráveis.


Há 2 páginas de breves textos da artista, paginados com muita largueza;
4,5 de escrita literária do António Guerreiro;
8 que seriam 4 com um corpo não desmesurado, como uma entrevista em resultado de trocas de emails com os comissários;
4 de referida apresentação a abrir. Sempre em corpos generosos e duplicados pelas traduções também folgadas.
A fechar existe um oportuno texto crítico e biográfico sobre a artista com base num diálogo estabelecido em 2013, que continua actual.
É escasso, e são excessivas as páginas de ilustrações que em inúmeros casos não são de obras expostas, não sendo obras de necessária referência. Certamente livres de direitos de autor, foram ao acervo de imagens e foi um fartar vilanagem - percebe-se o gozo das designers ao percorrerem a crueza, a violência e também o humor, negro ou não, das imagens.
Atenção, não é só a violência sexista que aqui comparece: é também a afronta física e nua do corpo próprio exibido, do envelhecimento, do parto. Não há só vítimas, há desafios. Há denúncias e medos nas séries de armas e carros de combates e nas sugestões de bombas atómicas.






Perdeu-se no itinerário do catálogo o percurso da montagem, sem se ter encontrado outra sequência: por exemplo, os corpos frontais que confrontam brutalmente o espectador à chegada diluem-se lá para o fim. Desarticularam-se as galerias, onde as pinturas se mostram em instalações ou em séries temáticas ou em contrastes incisivos, apesar de se intercalarem "vistas da exposição" entre escolhas arbitrárias, como um puzzle que cresceu sem limites e sem critério. Foto acima e foto abaixo sem razão para tanto, e ampliações aleatórias em dupla página... Na lista de obras final perderam-se as traduções dos títulos que se encontram ao longo do "álbum". Comparando com o catálogo do Palais de Tokyo de 2022 vê-se o luxo dispensável dos grandes formatos das obras/ilustrações em página inteira e dos pormenores ampliados.
Os gráficos são os grandes interessados neste tipo de edições com vocação para concursos de design: neste caso "o conceito e o design gráfico" é das Ilhas Studio, de quem conheço as qualidades e os excessos .

A exposição da Miriam Cahn é das mais importantes que por cá se tem podido ver.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

REALISMO IRREALISMO



 A RIBEIRA DO TEJO, 1949 (col. Casa da Achada / Mário Dionísio)


BARRCOS, ERICEIRA 1953 (col. Novo Banco deposito Museu do Neo-Realismo


FERNANDO LANHAS, PÁSSAROS E ROCHEDOS, 1945

A sequência da montagem que aqui me seduz não foi certamente ocasional, por parte dos comissários Afonso Dias Ramos e Mariana Pinto dos Santos, mesmo que ela não procurasse os sentidos que a mim me aparecem e importam. Interessa-me aqui observar a pulsão irrealista, a pista do imaginário, presente nestas obras, sublinhada pela inesperada comparência de Lanhas.
Depois de FERROS, de 1944, que antecede por um ano o neo-realismo e agora se descobre, depois de ter sido visto em Lisboa só em 1945, na Exposição Independente trazida do Porto ao Instituto Superior Técnico, e que manifesta a circulação rápida do início do artista por diferentes pesquisas - aí com a mais que provável aproximação a Léger. Note-se que Pomar deixou a Escola do Porto em 1947 sem ter frequentado nunca uma aula de pintura: estudava, via ilustrações e experimentava.

Depois de FERROS, vemos A RIBEIRA DO TEJO de 1949 (exposto na 4ª EGAP desse ano e oferecido a Mário Dionísio).  É uma pintura singular, que me parece um estudo para tapeçaria ou mural, na sua inesperada acumulação-dispersão, que se dirá decorativa, de figuras em que comparecem varinas e mulheres do mar ao lado de crianças que brincam, ou esperam. São essas as presenças então as mais frequentes no tempo que preparava a primeira mostra individual na SNBA e que sucede à pintura militante da "Resistência" e da "Marcha" de 1946, e também às agrestes representações de mulheres de trabalhos rudes, "Farrapeira", "Carvoeiras" e "Farrapeira", de 47 ou 46-48 (já foi notada a dureza expressiva e material dessas mulheres do Porto), de um primeiro período neo-realista. 
Mas está aí ausente a atracção lírica que consta das maternidades de 1948 ("Os Gémeos" e "Suburbio" I e II da col. Manuel de Brito), dos namorados e rapazes de "Na Estrada de Aveiro", "O Golo"  e "O Carro na Calçada", continuada ainda em importantes pinturas de 1951, como foram "Meninos no Jardim" e "Vendedeiras de Estrelas" (col. Jorge de Brito). Esse esse intervalo entre "fases" será o "desvio" de que se irá auto-criticar em 1953 num novo tempo militante, de 1951 a 1954. 

Na sua composição dispersiva e flamejante A RIBEIRA DO TEJO distingue-se bem dos três quadros de 1950 onde os corpos femininos são imóveis e recortados como esculturas ("MULHERES NA PRAIA", agora exposto, e "Mulheres no Cais") ou como desenho sólido ("Na Cozinha"), todos da 1ª individual, e é curioso observar que os seus primeiros proprietários foram os amigos e camaradas José Fernandes Fafe (agora na col. CAM), Joaquim Namorado e José Dias Coelho, respectivamente - nota sobre a sociologia do mercado. Poucos quadros se pintavam por ano, mas as orientações mudam depressa. É contemporânea da VARINA COMENDO MELANCIA também de 1949, e é uma outra singularidade que aqui se manifesta, ambas excêntricos a possíveis normas realistas.

Em RIBEIRA DO TEJO temos em cima à direita os meninos que brincam e à esquerda estão as varinas de canasta à cabeça, estilizadas. Nenhum espaço definido incluiu as figuras com verosimilhança e geométrica composição. É uma colagem de situações que se dispersam e se imbrincam no espaço plano do quadro sem se fundirem com nenhum "realismo". Não existe aqui figura e fundo, mas motivos e personagens que se acrescentam e sobrepõem, entre fragmentadas zonas/planos de cor lisa e as formas ondulantes abstractas e orgânicas que acentuam o irrealismo da representação. Algo de surrealismo se insinua.


Duas mulheres do mar, ou uma mulher com o bebé à esquerda junto ao barco que tem a data na proa (49) e um corpo agachado no bordo à direita, uma mulher que chora (?). Em cima as aves que voam, abstractas, e no bordo inferior central a gamela de madeira onde se reconhece uma raia de cabeça para baixo - mas ela assemelha-se à metade inferior de um sereia e pinta-se de vermelho, cor insólita.




Recorde-se que a Ribeira era um lugar muito percorrido por Pomar quando evitava (com Vespeira, em especial) as aulas no Convento de São Francisco, que mulheres do mar e peixeiras são motivos repetidos de gravuras dos anos 1956-58, e que pintou um outro "Cais da Ribeira" em 1958, ao que parece do natural, de cavalete às costas, disse (col. Mário Soares).

Ao lado dos Barcos da Ericeira e antes dos Pássaros que rodeiam a montanha de Lanhas, esta pintura ganha um interesse que nunca tinha notado.


Cais da Ribeira, 1958

Não conheço nenhuma referência de Mário Dionísio sobre este quadro, enquanto crítico exigente - e o facto de ser uma troca entre dois amigos e companheiros de militância artística reveste-se de especial significado. De Dionísio recebeu Pomar o "O Músico", 1948, 130x97cm (3ª EGAP), que circulou na família e pertence hoje a José Berardo. É também uma obra heterodoxa, de uma arriscada pesquisa formal.



A SEGUIR, BARCOS


 



segunda-feira, 1 de setembro de 2025

DOÇARIA ERÓTICA

 Faltam 6 dias para a exposição encerrar, incluindo o próximo fim de semana - e já foi prolongada de 10 de agosto para 7 de setembro. Discretamente.



Ainda me avisaram a tempo.

"QUANDO O CORPO SE FAZ DOCE - Erotismo e religiosidade na doçaria" percorre o doçaria conventual e tradicional, a das elites e a popular, os doces de feira, focando as sugestões sexuais que estão presentes nos títulos e nas formas.
Está no Museu de Lisboa, núcleo de Santo António à Sé, e resulta de uma parceria com o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da U de Coimbra, onde se investigam Culturas da Alimentação e Patrimónios Alimentares. O comissariado e os textos do catálogo são de Paula Barata Dias e Cristina Oliveira Bastos.
O assunto é sério e é jocoso, e apresenta-se bem no formato expositivo e na publicação que fica: design de Joana Cintra Gomes e Leonor Wagner Alvim (esta também do catálogo).

Orelhas de Abade, Pirilau de Santo Ambrósio, Pitos de Santa Luzia, Garganta e Mimos, Maminha, Barriga de Freira (a freira é produtora e objecto de atração e ofeerta sexual), Pão de Corno, Ferramenta de São Gonçalo são algumas das muitas especialidades, onde a imaginação e o humor são abençoados pela igreja e os santos. Junta-se à malandrice o véu da devoção. Os textos exploram as histórias, as origens locais e os mitos, com uma prosa atraente, rápida e bem acessível. Parecem bem informados.





Entretanto é de sublinhar a ineficácia da Agenda Cultural da Câmara (EGEAC/CML) que é um alinhamento o mais confuso possível de lugares e eventos, de critérios insondáveis, de leitura quase impossível e pejada de erros. Cabe tudo, produções e espaços da CML, que deveriam ter prioridade absoluta, e um mar de miudezas que alguns se reservam mensalmente com habilidade e outros dispensam. Na edição de Julho o destaque da exp. arrumava-se na secção Ciência. É arte. Em Agosto não estava indicada.

E há que prestar atenção a outras exposições que se visitarão não por obrigação e com sacrifício - há artes modestas (di Rosa, Hervé), menores e discretas que se descobrem com gosto e proveito, fora dos holofotes da crítica, se ela existe:

1. NO PADRÃO DOS DESCOBRIMENTOS até 30 dez.



E 2 NO GABINETE DE ESTUDOS OLISIPONENSES - PALÁCIO DO BEAU SÉJOUR, até 28 nov. só em dias úteis 11-17h (páginas da Agenda)




 

sábado, 30 de agosto de 2025

Neo-realismo sem ortodoxia



Uma das boas surpresas da exp do Atelier-Museu, na minha opinião, é a aproximação de três obras que descartam a ideia de haver um neo-realismo ortodoxo (ou do que se chamou realismo socialista). Sem sequência cronológica vemos A RIBEIRA DO TEJO, de 1949, que foi de Mário Dionísio e hoje na Casa da Achad (foi trocada pelo seu "Músico", agora na col. Berardo), depois BARCOS, ERICEIRA, 1953 (depósito do Novo Banco no Museu de Vila Franca de Xira), e a seguir um quadro de Fernando Lanhas, PÁSSAROS E ROCHEDOS, de 1945, deixado inédito até 1987. É um dos "achados" da exp comissariada por Afonso Dias Ramos e Mariana Pinto dos Santos)

Ao subir ao piso superior, ainda ao cimo da escada, encontramos a pintura mais antiga, FERROS, 1944 (col. CAM e antes de Manuel Filipe, provável), uma obra anterior à afirmação do neo-realismo, exposto pela 1ª vez na Exp. Independente trazida do Porto ao IST, em 1945, no tempo de abertura anti-regime do imediato pós-guerra. Foi depois esquecido, e nunca reproduzido até 2021 no catálogo de uma exp no MACNA, ...Nadir Afonso, em Chaves, organizada por Maria do Mar Fazenda. Em FERROS está presente a intervenção política (o prisioneiro entre grades e o arame farpado) e o interesse por Léger, que é confirmada pela posse de um pequeno álbum onde se encontram anotações desenhadas  (existe um outro pequeno livro da mesma colecção dedicado ao cubista Louis Marcoussis com assinatura de 1942). O espaço plano dos fundos e figuras aparece também em "Café" e "Taberna" do mesmo ano de 1944, quando entra na Escola de Belas Artes do Porto.



Diante do quadro de Lanhas (presença de excepção entre as obras de Pomar) está uma vitrina com exemplares da página quinzenal ARTE (publicada no jornal A Tarde, Porto) também de 1945. É Lanhas quem recomenda e apoia a entrega a Pomar a direcção da página naquele jornal conservador, em mudança devido a uma conjuntura em que se aguarda o fim do regime sob a pressão dos Aliados e Salazar promete eleições. É na página ARTE que Pomar refere como neo-realista os desenhos de Manuel Filipe, usando-se a designação pela primeira vez na área das artes plásticas, vinda da literatura. Aí se divulgam as referências internacionais que são determinante para os jovens artistas: os muralistas mexicanos e os realistas e regionalistas norte-americanos, como Thomas Benton e Mitchell Siporin (1910–1976), e Picasso. E nesta página reune-se numa frente única a colaboração dos artistas e poetas vindos da Escola António Arroio e das Belas Artes de Lisboa (Vespeira, Cesariny, Pedo Oom, Fernando Azevedo - então neo-realistas depois surrealistas) e dos artistas do Porto (Lanhas só com um desenho, Victor Palla, vindo de Lisboa, como Pomar). É o preciso momento de uma forte afirmação geracional, a Geração de 45, que depressa se dividirá entre realistas, abstractos e surrealistas. 

VER ABAIXO: TROCAS NEO-REALISTAS DE 1945




CONTINUA



quinta-feira, 28 de agosto de 2025

NÔT na Culturgest

 

 


 Jorge Luis Borges dizia que As Mil e Uma Noites representam “acrescentar uma noite ao infinito”. Gosto dessa imagem. Tal como os contos, NÔT é um encadeamento de gestos e imagens imprevisíveis.
Nunca sabemos o que virá a seguir. - Marlene Monteiro Freitas 


NÔT é a mais recente criação da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Entrevista com João Fernandes, director de Serralves, em 2003

 

Enquanto a Administração de Serralves dá espectáculo pouco decente, recordo o tempo de  João Fernandes, segundo director (2003-2012) "

 

"Abrir um caminho contra o isolamento"

Expresso Cartaz de 15-02-2003, pág. 8/9 (o texto foi algo abreviado na versão publicada)

Os objectivos e a estratégia do Museu de Serralves explicados por João Fernandes, continuador do projecto de Vicente Todolí

(estávamos no momento Bacon, um episódio excêntrico na programação do museu, que não por acaso propiciou a ida de Todolí para a Tate Britain - sobre esta e outras exposições que foram sucessos de público, ouvia-se dizer: de vez em quando é preciso dar um rebuçado. Bacon foi entendida como uma exposição-rebuçado e foi um episódio muito discutível de integração de várias obras rejeitadas pelo pintor que então entravam no mercado.)

 

João Fernandes sucedeu a Vicente Todolí na direcção do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, depois de com ele ter colaborado desde 1996. É a continuidade que defende ao definir o seu projecto.

A expectativa que acolheu Bacon têm a ver com a escassez de nomes históricos e grandes obras na programação dos museus portugueses, e de Serralves em particular?

Acho que não tem a ver com o nome ser mais ou menos histórico. Em Portugal é muito difícil avaliar quais são os nomes que podem ser considerados históricos ou conhecidos pela sua própria história.

Bacon não é só mais histórico, é um artista maior.

É um daqueles nomes universais e inquestionáveis, plenamente afirmado, que foi objecto de estudos exaustivos e múltiplas exposições. É um artista que já está feito. O grande desafio é criar um ponto de vista singular sobre a sua obra. Tomámos a opção de não repetir coisas que já foram feitas.

O grande desafio é mostrar Bacon em Portugal.

Acho que não compensa fazer uma exposição para Portugal e só para Portugal. Trabalhar com um artista como Bacon é também uma questão de afirmação do museu. É um objectivo do programa deste museu não fazer em Portugal o que os outros já fizeram lá fora. Podemos associar-nos a outros museus, mas o que importa não é seguir o modelo de outros, é criar o próprio museu e com isso conquistar o respeito internacional e uma singularidade.

O público precisa de ver os artistas que cá nunca foram expostos. 

Há um outro factor a ter em conta. Não é possível de um momento para o outro resolver todas as lacunas do passado. Serralves pode contribuir para dar algumas respostas a essas lacunas, mas não pode responder a todas as omissões do passado institucional português e à inexistência de um contexto institucional para a arte contemporânea em Portugal durante grande parte do séc. XX. Isso faz com que, quando programamos o nosso calendário de exposições, o objectivo não seja olhar para o contexto internacional e dizer: o que é que vamos agora trazer a Portugal? O que procuramos, em função dos nossos critérios próprios de actuação, é criar uma programação heterogénea e diversificada - porque este não é um museu de tendência, que nunca defenderá que a arte deve ser de uma determinada maneira… Bacon ou Lissitsky e Mondrian, que mostrámos com A. Souza-Cardoso, são nomes históricos e afirmados, mas sobre os quais é possível acrescentar um novo ponto de vista. É essa a ambição do projecto, porque fazer aquilo que já foi feito em Paris ou Londres, e bem feito, só para o fazer em Portugal, não se justifica. É possível o confronto com essas experiências através do livros, da pesquisa e da informação, e gostariamos que houvesse um contexto à volta, através do sistema de ensino, das bibliotecas e das várias instituições…

Os livros não se substituem às obras.

Fazer um museu como Serralves no contexto português não é a mesma coisa que fazer um museu noutra parte do mundo, e esse é um dilema a que importa responder com grande oportunidade. Fazer um museu para todo o mundo e fazer um museu em Portugal são dois factores indissociáveis. Qualquer coisa que aconteça aqui é dirigida quer ao contexto português quer ao contexto internacional, em simultâneo, e achamos que não devemos fazer coisas paternalistas para o contexto português ou coisas apenas circunscritas ao contexto português. Obviamente que temos em conta o contexto português na definição da programação, mas é-nos impossível contar a história do séc. XX aos portugueses desde o início.

Não dá demasiado peso à ideia de projectar Serralves entre os museus de ponta internacionais?

Há dois objectivos: um é integrar Serralves no contexto dos museus internacionais que acrescentam pontos de vista sobre a arte do nosso tempo, outro é afirmar o projecto de um museu de arte contemporânea em Portugal junto do público português. São objectivos indissociáveis e o sucesso de um implica o outro. A programação de um museu deve ser sensível aos contextos, nunca dependente deles. Uma programação não deve ser fabricada nem para o contexto internacional nem para o contexto português; afirma-se sendo sensível aos horizontes de recepção, que devem ser indissociáveis o mais possível, para evitar aquilo que até agora acontecia - a definição de estratégias apenas para o contexto português, que contribuíam para o seu isolamento, ou só para o contexto internacional, contribuindo também para o isolacionismo. As duas coisas têm de ir a par. Temos uma opção de programação com maior número de exposições de artistas estrangeiros que portugueses, o que achamos importante para os situar numa programação e numa colecção internacional. Se esta lógica fosse invertida, Serralves era mais um museu nacional, que seria relativizado no contexto internacional, enquanto assim, pelo menos, cria-se um espaço onde tudo quanto acontece, e também a arte portuguesa quando acontece, pode vir a ser objecto de uma atenção que não é filtrada pelo localismo ou pelo nacionalismo. Num país que esteve tantas vezes isolado, o problema da relação nacional-internacional coloca-se sempre, é um problema endémico da cultura portuguesa do séc. XX, mas não se pode ter uma estratégia proteccionista, que conduziria pura e simplesmente ao isolamento.

Serralves não conseguiu ainda levar exposições de artistas portugueses ao estrangeiro.

Já conseguiu, com Cabrita Reis, numa produção com o Museu Ludwig, mas por ser um artista conhecido internacionalmente e não por ser Serralves a apresentá-lo. O trabalho de um museu, em qualquer parte do mundo, não é a exportação dos artistas do seu contexto nacional. Deve criar possibilidades de outros conhecerem e se interessarem pelas suas obras e poderem vir a trabalhar com eles. Se um director de um museu inglês ou norte-americano me apresenta um artista pela sua relevância no contexto nacional, isso não é argumento para o programar em Serralves. As opções dos museus têm de vir dos seus próprios programadores e não de uma relação negocial de importação-exportação ou de troca.

Têm-se trocado exposições com vários museus, mas não de portugueses.

Não fazemos troca pela troca, intercâmbio pelo intercâmbio. O contexto do intercâmbio cultural é criado por contextos políticos, e nas programações dos museus isso não existe. Temos de ser respeitados na nossa programação e respeitamos os outros. O que pretendemos é que, com as exposições, os catalogos e a visibilidade que damos aos artistas portugueses, as suas obras tenham condições para serem conhecidos dentro e fora do pais. Se isso obedecesse a uma estratégia, não resultaria, porque nenhum museu que se preze programa na base da decisão política ou da relação inter-institucional.

Alguns museus espanhóis, de Badajoz e Santiago, têm feito circular mais artistas portugueses que as instituções nacionais. Serralves dialoga com um núcleo restrito de museus, mas há outras redes com maior abertura.

Achamos que uma programação interessante não depende de factores exógenos às obras dos artistas, e os artistas não se devem afirmar por factores exógenos. Há muitas exposições de intercâmbio entre embaixadas e governos, mas nunca é a exploração desses canais institucionais político-diplomáticos que pode afirmar a obra de um artista ou um contexto nacional. É claro que há factores geoculturais e geopolíticos na difusão de determinados artistas do nosso tempo, e o facto de haver centros políticos e económicos no mundo faz com que também haja centros artísticos; ao longo da história da arte isso sempre aconteceu. Seria altamente negativo se um museu estrangeiro programasse um artista português por um intercâmbio negocial. Portugal foi um país muito isolado e as pessoas conhecem mal o contexto português, há poucos coleccionadores de artistas estrangeiros, não há uma rede de museus e centros de arte que crie uma relação estrutural com o universo da arte contemporânea, e não é o aparecimento de um museu, mesmo com a projecção internacional de Serralves, que consegue de um momento para o outro redimir todo o isolamento do passado, mas estamos a criar condições para ele deixar de existir. Hoje já é muito mais fácil a um artista de vinte e tal anos ser convidado para uma exposição internacional do que aconteceu com gerações anteriores. Há condições para abrir um caminho, não para impor um caminho.

Falemos brevemente da colecção. Bacon não foi incluído na exposição «Circa 68», que definiu o programa do Museu e o modelo da colecção. Não está no programa das aquisições?

É um artista que não faz parte daquilo que assumimos como uma profunda renovação das linguagens artísticas que ocorre na década de 60; nessa década Bacon continua uma obra que aparece e se afirma na década de 40. O programa de aquisições está em grande parte delineado desde a inauguração. Decidimos começar a colecção a partir de meados da década de 60 e tomámos a opção de constituir um núcleo histórico que constitua uma identidade e um ponto de partida da colecção.

Mas é nas décadas de 60 e 70 que Bacon se afirma internacionalmente e são desses anos as suas melhores obras.

Achamos que é um artista que vem de um contexto de problematização da arte e de fazer arte que não é característico dessa época, que já vem vem no passado, se bem que seja uma obra sempre viva, como podemos ver neste momento. Há muitas obras do passado que gostaríamos de poder ter na colecção e confesso que a decisão de periodizar a colecção desta maneira também é decorrente das possibilidades orçamentais que temos. Mas é também uma leitura sobre a história da arte do séc. XX, obviamente.

Essa leitura implica a convicção de que houve uma mutação de linguagens que exclui linguagens como a do Bacon, que continuaram activas, e que são prosseguidas hoje por outros artistas?

Podemos expô-los em mostras temporárias, como agora estamos a fazer. Comprar um quadro do Bacon significa que o nosso orçamento para cinco anos seria gasto numa só obra. Achamos não é melhor maneira de construir uma colecção em Portugal.

São critérios de ordem estética ou financeira? O que chama as novas linguagens são as mais baratas, são o que resta quando se não pode comprar mais caro e melhor?

Os dois convergem, mas não estamos a falar do que resta, estamos a falar de poder criar novos pontos de vista. Esta colecção não pretende fazer em Portugal o que outros museus já fizeram. Não estamos interessados em mais uma caixa Brillo do Andy Warhol ou em repetir o que se passou nos museus europeus em relação ao impressionismo, em que cada museu local do centro da Europa tem o seu núcleo impressionista. A ideia é que esta colecção acrescente um pouco às colecções que já existem.

Que existem lá fora… Há uma fatalidade portuguesa que impede que haja no país um núcleo impressionista ou clássicos do séc. XX?

Será muito difícil encontrarem-se condições na sociedade portuguesa para isso. Portugal perdeu a contemporaneidade durante grande parte da sua história e não tem neste momento contexto económico-financeiro para a resgatar de um momento para o outro.

TROCAS NEO-REALISTAS DE 1945. Fernando Lanhas

FERNANDO LANHAS, PÁSSAROS E ROCHEDOS, 1945, exposto agora no Atelier-Museu, "Neorrealismos...". 

JÚLIO POMAR, MULHER COM UMA PÁ 1945, Col. Fernando Lanhas. 

O mais significativo par de obras trocadas por Júlio Pomar e outros artistas, colegas e camaradas, e sem dúvida o mais relevante, inclui "Mulher com uma Pá" e "Pássaros e Rochedos", de Fernando Lanhas, ambos de 1945, que sinalizam a relação de cumplicidade que se estabeleceu logo depois da chegada de Pomar à escola do Porto, sendo Lanhas figura decisiva no seu itinerário pelas Exposições Independentes, a página «Arte», a Missão Estética de Évora e a Galeria Portugália. Pelo seu lado, Pomar promoveu a apresentação do primeiro quadro abstracto de Lanhas na Exposição Independente levada a Lisboa em 1945. 

Ambos os quadros ficaram inéditos, num tempo em que poucas obras se produziam, e quando tudo o que se pintava se ia mostrar logo nos Salões, lembrava Pomar. E assim desconhecidos ficaram por muito tempo, ambos não assinados e não datados, não expostos e fora do mercado. Intencionalmente inéditos, deliberadamente escondidos? Ficará sem se saber, mas é uma intrigante coincidência, como se de um pacto se tratasse. 

O quadro de Pomar mostrou-se pela primeira vez – por iniciativa de Fernando Guedes, e Lanhas – em 1967-68, em Bruxelas, Paris e Madrid ("Art Portugais. Peinture et Sculpture du Naturalisme à nos Jours", organização SNI e Gulbenkian); fora reproduzido em 1965 pelo mesmo Fernando Guedes num artigo sobre as Exposições Independentes, que não consta ter integrado («Vinte anos depois», Colóquio nº 32, fevereiro). Com o título "Mulher" esteve na retrospectiva de 1978, por escolha do artista. Quanto a Lanhas, a sua pintura foi exposta só na primeira retrospectiva, na Galeria Almada Negreiros, SEC, e Casa de Serralves, em 1988, por lembrança minha, mas não houve tempo para a reproduzir na monografia "Os sete rostos", de Fernando Guedes, ed. INCM, nem no catálogo - o que só veio a acontecer na 2ª retrospectiva, em 2001 (Museu de Serralves). 

Mulher com uma Pá é seguramente anterior às pinturas da 9ª Missão Estética do mesmo ano (de que Gadanheiro é emblema), pintado no Porto a seguir a "A Guerra", "Taberna" (antiga col. Rui Pimentel) e "Café" (a primeira colecção é desconhecida, depois Manuel de Brito), num tempo de rápida circulação por maneiras diferentes: de uma pintura de formas recortadas e lisas, decorativamente planificada, a uma áspera deformação expressionista que ficou sem paralelo. É uma pintura maior, singular e rude, que só terá alguma equivalência na "Varina Comendo Melancia" de 1948, ambas irreverentes e desamparadas, como as duas mulheres que se equilibram na pá e no braço desconforme. Picasso e Portinari comparecem na desarticulação e desmontagem do corpo, com as mãos e pés desmesurados que são marca do tempo. A expressão de dor associada ao trabalho duro é também inquietação, mais que revolta, no espaço fechado e monumental de um arco que é uma dupla moldura, interior. Os cinzentos, que são únicos, lembram os de Lanhas, que por esse altura (ao tempo da página «Arte») pintava rostos amargos de mulheres, já depois de produções abstractas. Contágios? 

O óleo de Lanhas (sobre cartão, mais tarde colado sobre tela, 86,5 x 61,5 cm) é paralelo à construção dos sintéticos motivos arquitectónicos de "Cais" e à depuração geométrica do "Violino (O2.43.44)", aqui numa configuração de paisagem imaginada, de potente intensidade especulativa que o voo circular dos pássaros-aviões acentua. Poderá ler-se a simbologia da montanha, eixo do mundo, imagem da transcendência, caminho ascendente rodeado por aves ou anjos, se se tentar a interpretação. Também a 2ª guerra poderá ser aqui evocada. As gradações dos cinzentos contra um céu opaco, com uma matéria densa e quase lisa, a cor espatulada, antecedem as superfícies planas que acolhem sinais geométricos – a moldura veio prolongar a pintura, realizada pelo artista quando em 1988 acompanhou o quadro na retrospectiva. É aqui, nesta abstracção figurativa, que está mais patente a singular dimensão metafísica da sua pintura, que noutros casos se abeira do design. 

Uma das pistas para pensar o primeiro neo-realismo, no tempo que vai de 1945 a 1951, no espaço das artes plásticas, e em especial quanto à obra de Pomar, abre-se com a consideração dos quadros que ele trocou com outros artistas (Lanhas, Mário Dionísio, Victor Palla, João Abel Manta), em que se revelam afinidades e partilham experiências, e em especial se descobrem as heterodoxias comuns à revelia dos estereótipos conhecidos das "histórias". 

Num tempo inicial em que o mercado se restringia a intelectuais amigos ou cúmplices, incluindo nele as ofertas e as trocas entre colegas de escola e de ofício, alguns deles camaradas de partido, essas obras são particularmente significativas de interesses privados que convivem, sem contradição, com as militâncias expostas e/ou publicadas. 

ver "Depois do Novo Realismo", A Pomar, 2023, capítulo 9. "Trocas, mercados, colecções, p. 121-130 Posted at 00:21 in Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar, Lanhas, Neo-realismo | Permalink | Comments (0)