sexta-feira, 7 de abril de 2000

2000, René Bertholo, Serralves

René Bertholo Serralves 2000

FIGURA.FICÇÃO
Catálogo da retrospectiva de René Bertholo no Museu de Serralves
7 de Abril - 28 de Maio de 2000

Rene (Inclui textos de John Ashbery, André Balthazar, João Fernandes, Sebastião Fonseca, José-Augusto França, Jean-Jacques Lavêque e Alexandre Pomar. As entrevistas foram conduzidas por Xavier Douroux & Frank Gautherot, Pierre Restany e Jean-Luc Verley.)

1. René Bertholo é um actores, é mesmo um dos protagonistas, que intervêm na conjuntura em que, no início dos anos 60, em Paris, tal como em outras capitais, se procede ao ensaio das condições de possibilidade de uma figuração entendida como nova, isto é, defendida como de ruptura ou de vanguarda face ao predomínio das expressões abstraccionistas.
Esse é um ciclo complexo em que às manifestações de um corte geracional e cultural se associavam linhas mais ou menos subterrâneas de continuidade com precedentes práticas realistas e, especialmente, com orientações críticas dos valores instituídos que se interessaram por várias formas de figuração primitivista (infantil, popular, grafitista, etc), desde Dubuffet e Chaissac até às manifestações do grupo Cobra, de Appel, Jorn, Constant e outros, sobre heranças do surrealismo revolucionário belga e com sequência imaginista e situacionista. Aos «novos realismos» que se aproximavam da interpretação de uma nova «natureza industrial, mecânica, publicitária» (1) por via da apropriação directa dos seus produtos e detritos (assemblage, acumulação), somam-se então as práticas picturais que buscam a sua renovação no reportório das imagens populares da cultura urbana, sob as designações Pop e neofiguração, a qual, em versão mais parisiense, se nomeava figuração narrativa e, a seguir, figuração crítica. A respectiva consagração enquanto atitude vanguardista seria tão rápida como efémera, logo desvalorizada como prática regressiva (2) e substituída pela aceleração da lógica das rupturas, ao ritmo de uma crescente dissociação dos circuitos de legitimação, a que o seu próprio êxito público dera lugar. Diferentes atitudes radicais, que recuperavam o vector da autonomia formalista ou escolhiam o primado da atitude, poriam então em causa, outra vez, a continuidade da pintura como medium ainda potencialmente inovador e relegavam para a área do «mainstream», ou para a travessia do deserto, quase todos os artistas que estiveram associados àquele processo.

A década é tumultuosa. Nela se encerra a guerra da Argélia e abre a do Vietname (e também as guerras portuguesas), transportadas para o interior das metrópoles, num processo em que os sucessos económicos do pós-guerra são confrontados com a estagnação das expectativas políticas geradas pela vitória aliada, identificando-se a contestação ideológica com a miragem da emergência de alternativas nas periferias pré-capitalistas. (A conjuntura política, que aqui se terá de supor conhecida, voltará a ser referida a propósito da obra de R.B., na medida em que ele próprio se vai confrontar claramente com as marcas mais efémeras daquela.) É também uma década que assiste à substituição das consagrações parisienses pelo dinamismo de um novo centro, Nova Iorque, e também à afirmação de outras capitais, aonde chegam mais cedo os ecos norte-americanos ou que têm mais experimentada a sua condição periférica. A França nunca mais saberia, até hoje, defender os seus artistas e os estrangeiros que acolhia, tornando-se doentiamente dependente dos gestos de reconhecimento vindos do exterior.

Sendo um dos protagonistas de uma dinâmica colectiva de renovação, e é raríssimo que na arte portuguesa se verifique, em vez da dependência ou da sintonia, essa participação plena no centro da acção internacional, René Bertholo é – em grande medida por isso mesmo (o confronto surdo entre estrangeirados e «resistentes» que no interior se acomodaram continua a atravessar o panorama nacional) – o último dos artistas portugueses afirmados nos anos 60 a ser objecto de um olhar retrospectivo. Valerá a pena enfrentar o atraso da revisão da sua obra, que muitas vezes foi sendo apontada como indispensável, mas que tem ainda em Serralves uma abordagem só antológica.

Ter-se-ia de falar da dispersão real de uma obra que percorre então um largo circuito internacional de exibição, da Itália aos países nórdicos e também aos Estados Unidos – neste caso, por sinal, integrando um importante panorama oficial francês, «Painting in France, 1900-1967», itinerante por Washington, Nova Iorque, Boston, Chicago e São Francisco, cuja reduzida projecção funcionou como decisivo revelador da menorização do centro parisiense. Uma obra dispersa é mais difícil de reunir, e conhece-se a regra da facilidade e a pobreza de meios que têm curso institucional entre nós; não há nada como as obras de gaveta e atelier para favorecer as «descobertas» de que se alimentam os comissários, com a vantagem adicional de não sujarem as mãos procurando num mercado privado que, para mais, não precisou dos seus préstimos.

Ter-se-ia de falar também numa obra quantitativamente escassa, ou lenta, que nunca se estabeleceu como cadeia de produção, ao arrepio de outras «fábricas» que se tornaram emblemáticas da década de 60 e serviram de modelo aos circuitos de distribuição que a partir de então se começaram a montar com uma lógica já não artesanal – estava a nascer, sobre a contestação da década, a indústria do espectáculo cultural. Mais ainda, notar-se-á que René Bertholo constrói, desde 60 até ao presente, um universo imaginário particularmente individualizado e coerente que sucessivamente se retoma e reorienta, configurando-se sempre sobre novas condições expressivas, através de rupturas interiores mais ou menos explícitas, o que corresponde à recusa em estabilizar uma imagem de marca administrável como repetição «ad eternum» de múltiplos predefinidos e bem reconhecíveis, a que se chama em muitos casos a carreira. Poucos dos seus contemporâneos internacionais escaparam a essa tentação e raros foram tão incisivos como ele ao rejeitarem o carreirismo artístico e mesmo «a profissão» de pintor.

Por outro lado, se os primeiros períodos marcantes da obra de René Bertholo se reconhecem como característicos (e caracterizadores) dos anos 60, servindo por isso mesmo a habitual mas muito discutível tendência historicista de privilegiar os momentos de primeira consagração dos movimentos e dos artistas – de que resulta, em geral, a valorização sucessiva de cada vez mais curtos ciclos criativos e um relegar desatento e indiferenciado das obras de maturidade para um pantanoso «mainstream» –,  a produção mais recente do pintor, que é decididamente mais realista e abre, por isso mesmo, um campo mais vasto de possibilidades à expressão da imaginação e do sonho, que desde o início a alimentava, é aquela que hoje mais nos deve interessar, pelas qualidades próprias da sua realização pictural e pela originalidade radical do seu universo ficcional. Um universo imagético acertado com o seu tempo de realização, na sua própria dimensão autobiográfica e nos ecos, sintomas e questionamentos que o atravessam, mesmo se a dependência de valores mais correntes e mais mediatizados impedirão alguns de o reconhecer. E, em especial, uma obra que se enfrenta com uma das questões decisivas deixada pela herança modernista, a da viabilidade da ficção depois da desconstrução das convenções e dos mitos.
Uma tendência dominante que substitui a crítica das obras pela aplicação mecânica das grelhas cronológicas ou geracionais esforçar-se-á por sugerir, como sucede por exemplo a propósito de Paula Rego, que na pintura de René Bertholo ocorre uma sobrevivência de problemáticas dos anos 60 – a continuidade das tensões bipolares abstracção/neofiguração, representação/apresentação (e também se dirá, noutras prosas ainda mais inconsequentes, que enquanto pintura se trata do prolongamento de uma tradição já muitas vezes extinta...). Não importa. Se a cegueira não for fatal, reconhecer-se-á que o que existe de participação numa dinâmica colectivamente renovadora nos anos 60, expressando com originalidade própria um certo ar do tempo, ao intervir na reabertura de um campo de expressão figurativa sem abdicar da sua aprendizagem das lições do automatismo psíquico e da exploração abstraccionista, evolui e enriquece-se depois no sentido de uma cada vez maior afirmação individualizada para ser uma das obras incontornáveis do presente – o virar do século.
O trabalho recente de René Bertholo (como todo o seu trabalho, aliás, ao longo de diversas fases) não é o congelamento de um estilo pessoal ou a circunscrição de uma linguagem imediatamente reconhecíveis como um domínio de produção assegurado por um «copyright», como sucede, por exemplo, com Arroyo, Erro, Klasen e outros nomes que acompanharam a chamada neofiguração, no que esta ambicionou afirmar como exercício da constatação e do comentário. Sob os vectores da continuidade, não se caracterizando as suas últimas duas décadas por uma mutação por fases bem delimitadas, a obra sempre lenta e numericamente escassa da maturidade recente de René Bertholo é um processo constante de reapropriação, análise e transformação das aquisições anteriores, que se resolve sempre por uma ampliação de possibilidades expressivas e pela integração de novos questionamentos e novas imagens. Passando da inicial simulação – só simulação - de um discurso narrativo à afirmação plena da necessidade e possibilidade da ficcionação pictural.


2. O período da pintura de René Bertholo habitualmente identificada com a figuração narrativa durou apenas cerca de quatro anos, de 62/3 a 66, e encerra-se em ruptura com a respectiva caracterização enquanto tendência (veja-se o significativo diálogo com Pierre Restany publicado no catálogo da exposição de 1965 na Galerie Mathias Fels). O período seguinte dos «modelos reduzidos» é mais longo, de 66 a 73, mas é também numericamente menos produtivo, dadas as próprias características técnicas desses trabalhos, para além de constituir uma linha de trabalho mais solitária, menos directamente integrável nas movimentações colectivas então dominantes. O seu «regresso à pintura», a partir de 1974, é acompanhado por um investimento principal, até por ser intensamente absorvente enquanto trabalho efectivo, em intervenções no espaço urbano, ou obras de arte pública, que ocupam o artista entre 1972 e 1983, com uma pronunciada dimensão utópica que René Bertholo quis tornar acessível a todos os públicos e depois identificar com uma tradição da escultura popular. A primeira numa rua de Paris, a pintura de uma empena da Rue Doussoubs, no âmbito de um programa estatal de encomendas de intervenção urbana que se iniciara no ano anterior com Morellet (3); depois em vários edifícios escolares franceses, com sucessivas experiências de diferentes materiais (mosaico, cerâmica ou complexas construções esculturais, como o pórtico do Collège du Luzard, em Noisiel, 1978); a última já em Portugal, com seis esculturas em betão armado colorido, no Hospital do Barreiro.
Irregularmente, a partir de 1974, com os acrílicos sobre papel que no ano seguinte expõe na Galerie Lucien Durand («Mirages»), e mais regularmente a partir da sua instalação definitiva em Portugal, esse «regresso à pintura» constitui a mais longa das fases da obra de René Bertholo, a que corresponde a produção, sempre lenta, do seu mais extenso corpo de trabalho. A continuidade com as pinturas da primeira metade dos anos 60 é evidente, até pela retoma mais ou menos sistemática de elementos sígnicos aí presentes, mas é muito mais decisiva a evolução constante que se vai operando no seu trabalho.
Nele se assiste à transformação da estratégia de acumulação e espalhamento de pequenos sinais isolados (objectos reconhecíveis ou não reconhecíveis), em quadros que recusam a sua leitura como «estória», mesmo quando parecem sugeri-la pela utilização de processos idênticos aos da banda desenhada, numa investigação sobre as possibilidades da ampliação, localização e adensamento desses sinais, que passam a ser cada vez mais dotados de volume, «peso» e sombra (sem deixarem de ser em muitos casos «abstractos»), ao mesmo tempo que passam a organizar-se segundo diferentes modelos de representação explicitamente narrativa de um universo ficcional próprio, onde o imaginário é mais claramente afirmado como uma dimensão intrínseca do real. Nesses modelos investe-se por vezes um sentido reconhecidamente autobiográfico (as «mulheres imaginárias», os «quartos», a casa e a paisagem do Algarve, etc), ou são-no também através da revisitação da obra anterior; outros casos, como o das suas pinturas em «episódios», mostram-se claramente como dispositivos ficcionais abertos a uma pluralidade de leituras, porque também não partem de uma história preconcebida («num quadro há milhões de histórias», dizia o pintor numa entrevista de 1984); enquanto ainda noutros casos Bertholo faz uma referência explícita a personagens de ficções tradicionais – nos seus quadros de 1995 aparece o coelho de Alice, que também é uma referência privada a um desenho de António Dacosta (O Coelho do António, etc), a Carochinha, o Capuchinho Vermelho e certamente o feijoeiro mágico (Coluna Sem Fim, A Árvore da Vida).
René Bertholo recusara em 1965 a identificação dos seus quadros como figuração narrativa, no momento em que a fórmula se institui. Ao responder a um Restany que o interroga sobre o «risco» de as suas «imagens subjectivas» se organizarem numa narrativa (récit), R.B. diz: «Primeiro sabes muito bem que não sou um narrativo. Eu não conto nada. Depois, o meu tratamento da imagem (nas suas modificações como nas suas repetições) é inteiramente instintivo e espontâneo.» O tópico da narração, assim negado, associava-se então quer à defesa de um certo automatismo de tradição surrealista quer à recusa da «crítica política do género Arroyo», bem como ao respeito pelo interdito modernista do «literário», que praticamente extinguira a pintura de história e de género. Restany fala de «uma arte de evasão», Bertholo propõe-se «divertir os outros» no texto que escreve para o mesmo catálogo; notar-se-á, no entanto, que ele próprio retoma aí a ideia de narrativa, distinguindo-a da constatação e da denúncia ou crítica políticas, para a inscrever no domínio da ficção: «Encontrar para uso dos adultos qualquer coisa que corresponda  ao mundo dos livros da escola, ao mundo dos álbuns de colorir. Contar-lhes histórias de fadas, regá-los com vapores coloridos, faze-los sorrir. Deixar-lhes, no entanto, qualquer coisa para fazer: dou-lhe um cosido já pronto, mas que cada um deve temperar a seu gosto».
É na obra que cresce a partir de meados de 70 que René Bertholo vai descobrir como é que as suas telas se podem organizar como construções ficcionais, sem que a pintura se torne ilustração de um texto prévio, sem dependências  ou conotações «literárias», e onde ao seu tratamento «instintivo e espontâneo» da imagem corresponda também uma não determinação das respectivas leituras pelos espectadores (4). A questão do movimento-tempo é decisiva nessa evolução, e ela tinha passado por diversas experiências anteriores de inscrição ou utilização da «durée», tanto na sua pintura como nos «modelos reduzidos», antes de se afirmar com decisiva clareza nas sequências, compartimentações e episódios do seu período dos «quartos».
Entretanto, é particularmente relevante na produção mais recente a lenta mutação do trabalho da pintura, que radicalizou uma investigação sobre os seus procedimentos através do que René Bertholo designou como «Quadricomias», na exposição de 1995, na Galeria Fernando Santos, no Porto (também mostrada em Lisboa no ano seguinte), e, logo depois, com o início da utilização experimental das possibilidades do computador na concepção e estudo prévio dos seus quadros. Antes de voltar a considerar a obra de Bertholo no seu devir cronológico, é oportuno referir estas duas inovações processuais, pelo que elas revelam, em versão recentíssima, de uma atracção continuada pelo emprego de meios mecânicos (que já vem de uma exploração precoce das técnicas de impressão, nos anos 50, continua com a construção dos modelos reduzidos e, depois, nas máquinas musicais), mesmo se logo nos anos 60, à revelia da pressão do tempo, a sua pintura não se deixou seduzir pela apropriação fotomecânica das imagens nem pelo império da comunicação de massas.
Nas «Quadricomias», Bertholo adopta na aplicação da cor o processo usado na reprodução impressa da fotografia, a selecção de cores, restringindo a paleta a quatro tubos de óleo – azul cobalto, vermelhão, amarelo cadmium e um cinzento quase preto –, e utiliza a cor em camadas sucessivas no «preenchimento» de um desenho prévio, ou suspende aquela sequência para manter vastas áreas monocromáticas ou explorar um colorido não «naturalista», de aspecto artificial, com a luminosidade do neon ou do ecrã. O processo que então designava como «quadricomia» tinha largos antecedentes: por exemplo, em Jeux sans Issue, de 1977, um dos seus mais antigos «quartos», o pintor restringira-se à cor azul. E o início das suas pinturas dos anos 60 já tivera lugar com a decisão de colorir as formas desenhadas.
Depois, graças à exploração dos meios informáticos (scanner, computador e impressora), René Bertholo liberta-se do que havia de fastidioso no seu processo de trabalho, quando retoma elementos miniaturais dos seus quadros anteriores e os sujeita a operações de ampliação, fragmentação, repetição e sequenciação. Não se trata de o incluir em qualquer «revolução digital» de que resultem objectos de diferente natureza – e nada indica, entretanto, que os meios informáticos tenham trazido alterações substanciais ao que também já era criação de imagens virtuais pela pintura ou, noutros artistas, pela manipulação de fotografias através da fotomontagem e das alterações laboratoriais, para lá do que resulta ser mais fácil e mais «perfeito». No entanto, é certamente possível detectar na última exposição de Bertholo (1998, Cascais e Porto) uma maior variedade de processos de construção do quadro que parece resultar da maior agilidade consentida pelo computador aos seus estudos preparatórios: aí encontramos a imagem unificada sobre uma tela de grande formato, A Heroína; a utilização de dois, quatro ou seis espaços repetidos; a retoma do processo de espalhamento e acumulação de figuras, mas numa sobreposição total de elementos de onde fica ausente qualquer «fundo» plano ou abstracto, em Indiana Jones; e ainda a composição inédita de Oh Céu de Agosto ou a aparente simulação da colagem em O Diabo, a Paraquedista, etc. O novo instrumento de trabalho assegura-lhe maior liberdade inventiva.


3. Uma retrospectiva que venha a reconstituir todo o trajecto de René Bertholo, iniciado na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1953, terá de explorar o seu primeiro período de trabalho, precocemente assinalado pela participação no 1º Salão de Arte Abstracta, organizado em 1954 por José-Augusto França na Galeria de Março, e prolongado até à presença na 2ª Exposição Gulbenkian, em Dezembro de 1961, com uma tela de vigorosa gestualidade informalista. Alguns desenhos serviriam talvez para localizar em germe tópicos e processos que serão diferentemente retomados pelas obras dos anos 60, a par de uma prática da ilustração ou, melhor, de actividade gráfica figurativa (em especial, na revista de cinema «Imagem», em 1955-58), ao mesmo tempo que se averiguaria o que significa a atribuição de títulos explicitamente narrativos à produção «abstracta» apresentada em 1960 na exposição do Grupo KWI, na SNBA, onde também mostrou «relevos» que se desconhecem. Esse é um período de intensa participação de Bertholo nas iniciativas de uma nova geração de artistas e de agitação do panorama artístico português, desde a fundação da revista escolar «Ver», em 1954, e da galeria Pórtico no ano seguinte, à co-organização do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, nas vésperas de deixar o país em direcção a Munique. A revista «KWY», que começa em 1958 com Lourdes Castro, e toma depois o carácter de órgão de grupo ou de confluência de trajectos pessoais, até 1963, insere-se nessa mesma capacidade de criação e condução de projectos colectivos.
Decisiva é a mutação que o trabalho de René Bertholo conhece a partir de 1961, com os primeiros desenhos-acumulações que conduzem directamente às pinturas expostas em 63 na Galerie du Dragon, numa situação parisiense então marcada por grande dinamismo vanguardista, em que os encontros e cruzamentos de experiências são mais decisivos que as demarcações programáticas. O tempo e a actuação propagandística de Pierre Restany parecem isolar os «Nouveaux Réalistes», na viragem da década de 50 para a de 60, como movimento coerentemente programático e fechado sobre os seus nomes de referência, mas a realidade era então mais fluida e aberta. São ténues as fronteiras entre movimentações e direcções, e os artistas que Restany agregou com os seus manifestos incluem a linha dos «affichistes» que antes se associava aos «informais», convive com o experimentalismo cinético e com o grupo Zero, estará presente também na afirmação da figuração narrativa, com Raysse e Niki de Saint-Phalle. A participação na revista «KWY» de Christo e do pintor alemão Jan Voss, desde 1960, é indicativa desses cruzamentos. O nº 11, da Primavera de 63, é organizado por Christo e em grande parte dedicado a Yves Klein.
A «nova figuração» que se procurava recobria genericamente uma distanciação crítica face à estabilizada abstracção lírica e informal parisiense, reafirmando a validade de figurações expressionistas anteriores. Em 1961, a Galerie Mathias Fels festeja os 10 anos dos Cobra e no ano seguinte apresenta a colectiva «Une nouvelle figuration», com a participação de Appel, Bacon, Corneille, Dubuffet, Giacometti, Jorn, Matta, Saura e De Stael, entre outros. Essa movimentação é exactamente contemporânea da afirmação do «Nouveau Réalisme» que Restany promove em «À 40º au-dessus de dada» (Galerie J, 1961) e ao primeiro confronto entre «neo-dadas» franceses e norte-americanos (Galerie Rive Droite, 1961), que só no ano seguinte, na sua edição americana da Sidney Jannis Gallery, incluirá, ao lado de Rauschenberg e Johns, os futuros artistas Pop (5).
Bertholo participa em 1962 numa influente exposição colectiva comissariada por jovens críticos, «Donner à Voir 2», seleccionado por José Pierre, de filiação surrealizante. No ano seguinte, em que entra na representação portuguesa da Bienal de Paris (da qual é comissário César Moreira Baptista), está presente noutro ponto da situação promovido anualmente pela Galerie Charpentier sob o nome de «École de Paris», designação que continuava a traduzir a afluência de estrangeiros a Paris e tinha uma marca cosmopolita. É então Corneille quem o selecciona, ao lado de Baj, Chaissac, Jorn, Saura, Hundertwasser e outros; aí participam também Télémaque, Fahlström, Arikha, etc. No mesmo ano de 1963, é o mesmo José Pierre que o apresenta em «Image à Cinq Branches» na Galerie Mathias Fels, ao lado de Télémaque, Rancillac, Klasen, Voss e Reuterswäld. Logo depois, Bertholo intervém activamente, com Télémaque e Rancillac, na organização de «Mythologies Quotidiennes», 1964, que tem lugar no Museu de Arte Moderna de Paris, e a propósito da qual Gassiot-Talabot forja a designação «figuração narrativa» num contexto em que a Pop britânica e americana já é conhecida. Vimos que René Bertholo não acompanhou o sentido que viria a ter essa fórmula.
É numa orientação que assume alguma proximidade com um surrealismo liberto da sua iconografia estereotipada e com a linhagem Cobra que vencera a polaridade abstracção-figuração que René Bertholo iria passar das suas primeiras acumulações desenhadas para os quadros de acumulação de imagens. «Essa coisa de ir amontoando, amontoando, não sei de onde viria, tem provavelmente várias origens» - refere o artista na entrevista de 1984 já citada (6). Interrogando-se, recorda o seu primeiro choque perante as reproduções de Pollock e Tobey vistas em Lisboa na Biblioteca Americana, ainda antes do seu grande interesse por Klee; aponta depois, já em Paris, o encontro com os «cachets» e «allures d’objects» de Arman e a impressão causada pelos esquissos de Leonardo da Vinci em «páginas inteiras cobertas de bonequinhos». Essencial, entretanto, é a cumplicidade estabelecida com Jan Voss, numa constante troca de experiências ao longo de quase uma década, que seria curioso observar em pormenor. «De nós dois acho que foi ele que começou (não quero ser pretensioso) essa evolução. Ele fazia uns novelos, uma riscalhada que tinha muito a ver com a pintura de Twombly, que já usava uma espécie de grafitis... Era uma coisa que andava no ar.» Depois é Bertholo que começa «a misturar coisas figurativas e outras abstractas dentro de um mesmo espaço», seguido por Voss.
São objectos miniaturais em queda ou em voo sobre um espaço «abstracto» que pode ser, com ironia, atmosférico e ambíguo, mas é essencialmente gráfico e objectual, entendido o quadro como página e usado como suporte ou depósito de signos e representações, às vezes limitado por frisos ou dividido por configurações geométricas repetidas que têm algo a ver com os quadrados da banda desenhada, mesmo se os sinais desobedecem à compartimentação e brincam com a sequenciação narrativa. Heraldique, Formations Blanches, Table Verte, Babel Encore, La Voie Lactée, títulos de 1963, indicam que é o jogo da associação livre e paradoxal de elementos identificáveis ou não reconhecíveis que preside a essas obras, num momento prévio ao projecto de algum modo ficcional que existirá, logo no mesmo ano, em Le Désarroi de M. Thomas, e se reconhece em Mme Julia entre la Nuit et le Jour.
Em 1965, com Une Vie de Secrétaire e Casa de Paris (título a confirmar) a tela segmenta-se em áreas bem demarcadas, que funcionam por vezes como quadro dentro do quadro ou que se podem ver como «trompe l’oeil» de uma colagem de fragmentos com diferentes regras de composição, ou melhor, de preenchimento. As zonas de acumulação esvoaçante de objectos coexistem com alinhamentos de sinais repetidos (ou de representações, por exemplo, de uma fotografia que é uma natureza morta) e ainda com sequências de imagens que sugerem o movimento ou são aparentes inventários. A palavra escrita surge como objecto também, como comentário e legenda, como pista de leitura ou  acréscimo de irrisão. Em 1966, L’Idéal já inclui um projecto de «modelo reduzido».
Entretanto, pode situar-se nestas telas o aparecimento de motivos e personagens que voltarão a surgir em pinturas muito posteriores: em Une Vie de Sécretaire está a mulher que segura um vidro, com uma espécie de adesivo sobre os braços, a qual aparece de novo em Malabarismos, de 1998, e igualmente em O Diabo, a Paraquedista, Etc, de 1997, nesta última tela também ao lado da mulher paraquedista que está desenhada em A Casa de Paris.
Voltemos ao diálogo com Pierre Restany em 1965, intitulado «Le réel au delà du récit», um prefácio assinado em comum que está intimamente associado às tensões que ocorrem na cena artística parisiense – a radicalização política no seio do Salon de la Jeune Peinture e a afirmação da figuração narrativa por Gassiot-Talabot –, manifestando a demarcação nítida de René Bertholo face a ambas. O «pai espiritual do novo realismo, papa do pop parisiense e vulgarizador prosélito do animismo do ready-made», como o próprio Restany se identifica, distancia a «escrita das coisas» de Bertholo da neofiguração narrativa que então ambiciona a intervenção política, situando-o «fora da corrente». De facto, ele já não participará em «La Figuration Narrative dans l’Art Contemporain», de Gassiot-Talabot na Galerie Creuze, em Outubro de 1965, onde a indiferença de Duchamp seria militantemente «assassinada», nem em «Bande Dessinée et Figuration Narrative», organizada em 1967 pelo mesmo crítico (7), tal como não estará associado à escalada de activismo político em que se implicam diversos artistas parisienses. Bertholo dizia a Resteny: «Abstenho-me de qualquer pretensão à moralidade pública, de qualquer crítica político-social do género Arroyo. Como homem e como português acredito pouco, em 1965, na eficácia dessa crítica». No entanto, está presente em mostras italianas orientadas para a interrogação da situação contemporânea, como «Il Presente Contestato», em Bolonha, e «Alternative Attuali», Aquila, ambas em 65, tal como participa numa sequência ininterrupta de exposições significativas desse período: o Prémio «Marzotto» em 1966, com larga circulação internacional; o Salão de Maio de Paris, em 1967, reeditado em Havana; «Superlund», na Suécia, 67;  «L’Art Vivant», Fundação Maeght, 68; «Distances», MAM, Paris, 69, etc.
Àquela distância da politização dos discursos artísticos da época, soma-se a recusa dos processos mecânicos de apropriação das imagens (transposições fotográficas, impressões serigráficas, decalcomania industrial), que defende Restany. A atitude de Bertholo é tanto mais significativa quanto a sua pintura nunca foi nem pretendeu ser a exibição de qualquer virtuosismo do fazer e, por outro lado, o gosto pela exploração das técnicas de reprodução serigráfica fora evidenciado desde o tempo da sua formação em Lisboa e esteve na base da publicação do «KWY» e de outras edições. Porque não recorres aos processos fotomecânicos? a técnica da colagem nunca te tentou? – pergunta Restany. «O meu realismo consiste em reconstituir na minha memória a integralidade da forma. As imagens “ready made” bloqueiam-me a visão. Já estão  demasiado presentes. A decalcomania ou os processos mecânicos de reprodução da forma são tão académicos como a pintura» – responde Bertholo.
Entretanto, seria curioso avaliar a incompreensão com que em Portugal se acolhem então as informações sobre as mutações que ocorriam no exterior, através de abordagens associadas a uma retardada tradição formalista e aplicadas em defesas programáticas que se colavam com um ritmo sempre excessivamente atrasado a ortodoxias já em vias de esgotamento, como ocorrera em torno do surrealismo no final da década de 40 e aconteceu com os abstracionismos na segunda metade da década de 50. Depois do culto pela polaridade figuração-abstracção, o gosto pelas classificações redutoras dá lugar a uma amálgama que se designa como «neofigurativismo», onde a ideia absurda de «figura pura» se vem somar à «cor pura» e ao «espaço puro», numa defesa dos «factores puramente plásticos» contra as ameaças de persistência naturalista, da qual se era cúmplice, afinal, no que esta teve de pior, a fatalidade de um lirismo nacional...
Curiosamente, rejeitados os processos mecânicos de apropriação das imagens mediáticas, a restrição às imagens de imagens, são as máquinas que vão então surgir na obra de René Bertholo, através da construção dos autómatos designados como «modelos reduzidos», os quais, apesar do seu nome, assinalam uma primeira possibilidade de passagem das representações miniaturais e acumuladas a imagens unificadas de grande formato. «A ideia que me veio foi fazer paisagens com movimento» (1984). «Procuro sempre ilustrar um só tema (...) tenho vontade de me limitar, de sugerir de maneira muito legível este ou aquele fenómeno da natureza» (8). O que seria então impossível representar em pintura ganha uma dimensão lúdica e irónica quando a figura se reduz ao arquétipo e é dotada de movimento.
A via aberta, por mais sugestiva que se reconheça, era de desenvolvimento necessariamente limitado, para além de vir a confrontar-se com complexas condições materiais de produção. Adquirido o movimento que a sua pintura anterior tinha ensaiado, Bertholo perdia no mesmo passo o recurso à memória, como processo essencial de activação do seu imaginário. Ao regressar depois à pintura, o seu projecto será «passar através da memória para descrever a realidade» (1984).
«Mirages», 1975: «uma longa série de acrílicos sobre papel onde jogava com a ideia de que alguém, tendo visto uma paisagem, tenta lembrar-se de como ela era e faz tentativas desesperadas para a encontrar na sua memória». «Mirages suite et fin», 1977, óleos: «A série seguinte mostrava retratos de mulheres, praticamente sempre imaginários e, aliás, pintados sobre a tela sem a ajuda de qualquer documento. Imaginação e memória. Em seguida pintei quartos de dormir onde montes de objectos heteróclitos juncavam o chão, as paredes e por vezes a cama, tornando-a muitas vezes inutilizável». «O prazer de misturar tudo num espaço imaginário, sonhos acordados». «Légendes», 1981: «Imaginei que cada interior representava uma lenda», mas «estas lendas não têm um sentido definido à partida» (9). Todo esse trajecto não se acompanhou em Portugal (com excepção de uma mostra no Funchal, em 1980, que não poderia ter eco continental), até que em 1984, na Galeria Ana Isabel, se iniciasse a série de espaçadas individuais de galeria (Nasoni, Fernando Santos) prosseguida ao longo da década de 90. A antologia não permitirá ainda sumariar os passos de todo este itinerário, onde a obra de René Bertholo constantemente se recicla, reorienta e amplia, numa situação de plena maturidade que nunca perdeu a frescura do seu humor. Os seus «puzzles», inventários e histórias, sem abandonarem o vector do jogo e da irrisão mas juntando-lhe a perturbação perante «os mistérios da existência e das estrelas» (1984), cruzam a dimensão autobiográfica com a reinterpretação do mundo afirmando os poderes do sonho e da imaginação. Propõem-nos espaços lúdicos de fingimento partilhado (J-M.Schaeffer). Reconciliam a pintura com a ficção.

(1) Pierre Restany, «La réalité dépasse la fiction», prefácio para a exposição «Le Nouveau Réalisme à Paris et à New York», Galerie Rive Droite, Paris, Junho de 1961, in 1960, Les Nouveaux Réalistes, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1986, pág. 267.
(2) Simón Marchán Fiz, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, ed. Akal, Madrid, 1986, pág. 21.
(3) Ver Germain Viatte, «Au service de la création artistique», in Bernard Anthonioz ou la Liberté de L’Art, ed. Adam Biro, Paris, Paris, 1999, pág. 97.
(4) Para uma «compreensão positiva» da mimesis e mais especificamente da ficção, ver Jean-Marie Schaeffer, Pourquoi la Fiction?, Seuil, Paris, 1999.
(5) Ver Manifeste. Une Histoire Parallèle. 1960-1990, Centre Georges Pompidou, 1993, e Catherine Millet, L’Art Contemporain en France, Flammarion, Paris, 1987.
(6) Alexandre Pomar, «René Bertholo: Num quadro há milhões de histórias», «Expresso-Revista», 14 de Abril de 1984.
(7) No prefácio desta exposição, Gassiot-Talabot precisa a sua definição de figuração narrativa: «É narrativa toda a obra plástica que se refere a uma representação figurada “dans la durée”, pela sua escrita e a sua composição, sem que aí exista propriamente uma estória (récit)». Ver Gérald Gassiot-Talabot, «De la Figuration narrative à la Figuration critique», in Face à l’Histoire, Flammarion/Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 358.
(8) Conversa de René Bertholo com Jean-Luc Verley, catálogo da Galeria 111, 1972.
(9) René Bertholo, catálogos da Galerie Lucien Durand, 1981, e da Galeria Ana Isabel, 1984.

sábado, 5 de junho de 1999

1999, Serralves: Circa 1968

 Expresso 5 Jun. 99

"Expor um paradigma"

A arte contemporânea começa em 68 ? O Museu de Serralves oferece obras e argumentos para o debate

«COM 'Circa 1968', a exposição inaugural do museu, apresenta-se um projecto museológico, uma filosofia de colecção e um conjunto de experiências artísticas que se definem pela superação dos limites de qualquer programa que as pretenda caracterizar e condicionar».
É assim que Vicente Todolí e João Fernandes definem sem definir, caracterizam sem caracterizar, a abertura das actividades do Museu de Serralves, num texto de introdução ao catálogo tão breve como conceptualmente fugidio.
O que seria uma biblioteca limitada a experiências literárias, uma temporada de concertos que só apresentasse experiências musicais? Felizmente, se os «experimentalismos» abundam no percurso da exposição inaugural – tantas vezes como vestígios de interrogações datadas, de contestações já descontextualizadas ou de tentativas de «superações de limites» –, há também algumas obras oferecidas ao olhar do visitante, algumas descobertas que se propõem à sua experiência sensível e intelectual, essa sim decisiva.

Ao fetichismo do experimental, que parece transferir para a criação artística o método das ciências, Picasso respondeu em 1923: «Tenho dificuldade em compreender a importância atribuída à palavra pesquisa (recherche) quando se trata de pintura moderna. Parece-me que procurar (chercher) não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar (...) Quando pinto, o meu objectivo é mostrar o que encontrei e não aquilo de que estou à procura.» Não era só de pintura, obviamente, que Picasso falava.

Ter-se-á passado, entretanto, da arte moderna à arte contemporânea, como sucedeu ao nome do museu do Porto? Essa questão de mudança de eras tem-se posto com frequência, em torno de sucessivas datas, mas, sem o recuo do tempo, fazer história de arte a quente tem mais a ver com a vontade de administrar o presente do que com o rigor historiográfico ou crítico. Lembre-se que já se chamou Museu de Arte Contemporânea ao acervo quase só oitocentista que deu lugar ao Museu do Chiado.

O projecto actual de Serralves assenta na intenção de fazer vingar no campo das artes plásticas a teses de uma linha divisória «circa 1968», que não decorreria das turbulências políticas dos anos 60 – a contestação à guerra do Vietname, a Grande Revolução Cultural Proletária, as crises estudantis, etc – mas que de algum modo as acompanhou e simbolicamente reflectiu num processo de retorno ao activismo das vanguardas históricas dos anos 10 e de busca de diferentes modalidades de criação que não fossem recuperáveis pelo mercado e o museu (burgueses).
Foram anos de rápida sucessão de movimentos programáticos – arte minimal e pós-minimal, conceptual, «process art», «arte povera», «land art», «body art», etc –, em que a reactivação da ideia de vanguarda se identificou com estratégias ditas de anti-arte e não-arte: «o 'quase nada' do ascetismo abstracto, último reduto da essência da pintura, e o 'não importa o quê', herdeiro de Dada, última paródia da arte» (Raymonde Moulin, L'Artiste, L'Institution et le Marché, 1992).
Algumas grandes exposições, especialmente «Quando as Atitudes se Tornam Formas», dirigida por Harald Szeemann, em 1969 (em Berna, Krefeld e Londres), serviriam para marcar a ruptura contemporânea – e também uma das suas características decisivas, o predomínio do nome do comissário sobre os dos artistas e até mesmo dos estilos ou movimentos.

Dizem os directores de Serralves: «A partir da segunda metade da década de 60 questiona-se a autonomia e a 'essência' da obra de arte» (mas essas nunca foram noções fixas e sempre os artistas, ou alguns artistas, as questionaram nas suas obras); «assiste-se então à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento de géneros formais, ao uso do filme, da fotografia e do texto como suportes de projectos conceptuais, a uma pesquisa das relações entre arte e vida que acompanham a agitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de moldura (...)» (só recobrindo a história anterior com o manto de uma mítica imobilidade da «tradição» é que alguma destas atitudes pode ser apresentada como alteração decisória); «o conceito de vanguarda torna-se globalizador, fazendo emergir na experiência artística aspectos globais da vida» (mas a vanguarda, que não é o mesmo que inovação, foi sempre globalizadora e em geral até totalitária).

Os comissários procuram tornar credível uma «mudança de paradigma», mas este termo tem de ser observado com radical desconfiança. É possível situar outras rupturas ou mudanças de paradigma nos anos 45-50, com a generalização da ideia de modernidade como encadeamento de inovações técnicas e estilísticas, e outra vez nos inícios de 60, com a internacionalização plena do campo artístico e o início da institucionalização da «tradição do novo» a cargo do Estado providência cultural.
A seguir a 68, logo outro paradigma surgiu nos finais dos anos 70, com a rejeição pósmoderna da visão teleológica das vanguardas e, depois dos «experimentalismos», a revalorização das disciplinas tradicionais.
No final do século revê-se a sua história sabendo que os grandes artistas participaram (ou não) nos movimentos de vanguarda mas conseguiram sempre escapar-lhes, construindo obras próprias que lhes são irredutíveis; revalorizam-se os períodos tardios e as carreiras solitárias, contrárias ao historicismo vanguardista e exteriores à actual academização das «linguagens experimentais», que é simétrica ao conservadorismo dos Salões do século anterior. A arte mais viva do presente segue outros caminhos e os museus centrais já não o ignoram.

O que importa nesse limiar proposto «circa 68» é o ritmo actual da rotação dos revivalismos, que recuperam e fetichizam como tradição o que a quis contestar. É também o peso das limitações dos meios financeiros postos à disposição da colecção, demasiado exíguos para disputar no mercado peças de períodos anteriores, mesmo do início dos anos 60 (todos os outros «paradigmas» são mais caros). E é, em especial, espelhando em 1968 os gostos institucionais de 1999, o propósito de usar o museu como pólo administrativo da criação.
Cite-se outra vez Raymonde Moulin, que é uma socióloga incontestada e não um crítico panfletário da «arte contemporânea»: «A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, a da arte e a do mercado. Intelectual e hermética, é sustentada à partida pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. Sobretudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museus, um termo de grande ambiguidade» (op. cit., pág 68).

Seria oportuno, entretanto, analisar detidamente o afirmado programa de «diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional», para notar como se utilisa a abstracção «arte internacional» (existe uma literatura ou um cinema internacionais?). A mitificação do internacional, tomando um regime de circulação como fórmula de valoração de artistas, certificada por uma rede de «especialistas» também internacionais, sustenta a antiga lógica do evolucionismo vanguardista mas nos moldes de uma degenerescência burocrática e faz ignorar quer a complexidade das relações entre centros e periferias quer o carácter local que marca a generalidade das dinâmicas criativas (os internacionais alemães são localizáveis em Dusseldorf ou em Berlim, entre os americanos distinguem-se os de Nova Iorque e os da costa Oeste, por exemplo).

Mas há aspectos positivos que devem ser realçados: uma ideia de colecção que não se interessa (exclusivamente) por «obras que sejam meras ilustrações de teorias», a escolha de algumas obras «mais íntimas» que divergem dos estereótipos e imagens de marca dos estilos, uma montagem que se distancia de «uma exposição de movimentos», através de salas que procuram uma lógica própria – segundo Todolí, a relação com a fotografia, o interesse pela paisagem, o espírito abstracto dos materiais, o paisagismo como auto-retrato, a redefinição da pintura, etc. Por outro lado, deverá notar-se a inclusão de obras que não se integram na lógica dominante do período de 1965-75, como são, no final, as notáveis pinturas de Georg Baselitz, Susan Rothemberg, A. R. Penck e Neil Jenney, artistas que já então subvertiam a tese da «mudança de paradigma», trabalhando sobre mais decisivas linhas de continuidade que atravessam todo o século.

II


Expresso 19-06-1999
Na inauguração do Museu de Serralves


"Despojos da luta e da festa"
As contestações dos anos 60 (e as modas dos 70) não resistem no espaço do museu. Os outros rebeldes menos efémeros foram excluídos

CIRCA 1968
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto (Até 29 de Agosto)

«NÃO TENHO nada contra os objectos de arte, simplesmente não tenho vontade de os fazer», dizia Lawrence Weiner, em 1969. Essa atitude de desqualificação da arte pode ter sido um exemplo particular, vivido em Nova Iorque, da ética cultural libertária do final dos anos 60, mas, três décadas depois, encontrar escrita na parede do museu a frase "Ao dobrar da esquina" / "Around the blend" é uma situação muito pouco estimulante.
Desacompanhada de informações sobre o contexto histórico e programático da arte conceptual, a «obra» é ilegível; integrada nesse contexto é uma mera informação sobre uma atitude, é um episódio anedótico e datado de um momento crítico da arte e da sociedade ocidental. Os slogans e cartazes de Maio de 68, ou de outras lutas da época, não se vêem nos museus de arte contemporânea, que são fiéis zeladores da autonomia e ensimesmamento da arte, ao contrário do que apregoam. Mas as «proposições» de Weiner encontram-se sempre em qualquer museu periférico e servem para os situar, aos olhos dos entendidos, numa rede de estabelecimentos elegantes que coleccionam «obras reveladoras de elementos de niilismo».


Lê-se no «Roteiro» oferecido aos visitantes de «Circa 1968»: «A montagem da exposição e os circuitos que nela são possíveis permitem ao visitante o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados que sublinham o carácter disruptivo das obras que nela se apresentam».
Carácter disruptivo? Diz a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora que o termo, em electrotecnia, refere o «salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade»; do latim «diruptio», «fractura, ruptura». O comissário Vicente Todolí parece usar a metáfora da faísca quando pretende que «as obras falam directamente ao espectador», o que justificará quer a exiguidade da informação disponível sobre a sua exposição – apenas uma lista de artistas por sala e um breve enunciado programático, pouco mais desenvolvido no catálogo – , quer a aparente arbitrariedade das escolhas e soluções de montagem. Se o visitante não notar a faísca (a aura dos objectos fetichizados), se não «ouvir» as obras expostos, sempre ficará a saber pelo folheto que «a exposição resulta das interrogações que cada obra suscita».

Quanto a rupturas, não há museu mais avançado que o do Porto. Procure-se em qualquer capital, Londres, Paris, Madrid, Nova Iorque, etc, e não se encontra uma tal dinâmica de «superação de ideias pré-estabelecidas e de preconceitos». Os grandes museus centrais ainda não dividiram o século XX em moderno e contemporâneo (pós-moderno?), nem deram conta da «mudança de paradigma» que ocorreu «circa 68», o que, pelo menos, lhes permitiria resolver o grave problemas das reservas superlotadas. Parece que ainda «pensam o museu como uma realidade estática», mas em Serralves já se sabe que «a arte é a busca ou o ultrapassar dos limites» e que o museu é «um novo fórum, um lugar de discussão e de superação dos limites dos indivíduos que nele coincidem» (cat.). Nunca se usaram as palavras de modo mais displicentemente terrorista para justificar os limites de uma visão restritiva da arte contemporânea.

O Centro Pompidou expõe Hockney e Robert Delaunay?, o Rainha Sofia mostra Roberto Matta e a arte cicládica?, a Tate Gallery revê Pollock e o círculo de Bloomsbury? Não se trata de um permanente reexame de fronteiras e valores, mas de meras concessões ao gosto do público e de sobrevivências das convenções estéticas e técnicas da tradição da arte (moderna). Em Serralves, a palavra-chave é «superação dos limites» e as obras que interessam são as que se caracterizam como «linguagens experimentais», revelam «elementos de niilismo», traduzem «uma subjectividade radicalmente livre» (a que se chamarão «obras idiossincráticas»), ou as que representam uma «traição estética» («até nos artistas mais conceptuais»).

O resultado global é um panorama onde, afinal, não há lugar para «o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados», preenchido por uma produção em grande parte academizada no seu vanguardismo escolar e exangue, fechada sobre problemáticas que não são de modo algum contextualizadas, concentrada sobre os mesmos nomes de sempre (com três ou quatro desconhecidos que são irrelevantes), tantas vezes visível como a sacralização do quase nada, da banalidade e da insignificância, em oposição aos espaços criados por Álvaro Siza – sem faísca possível.
Um acervo árido, desvitalizado, autista e triste (o humor e a ironia, tal como o prazer, quase sempre foram banidos) em que quase nada faz reviver a agitação frenética, as lutas e as festas, dos anos 60. Uma selecção estereotipada e censória (as grandes alternativas do tempo estão ausentes), onde a arte se aplica em representar a sua desaparição, antecipando «a banalidade, o desperdício, a mediocridade como valor e como ideologia», para citar Baudrillard («Le Complot de l'Art», 1998).

No interior do terreno institucional da arte contemporânea, o museu, tudo é igualmente consagrado como arte e não resta ao espectador qualquer espaço livre «para questionar os limites do que poderá ou não ser considerado como arte», ao contrário do que se diz ser a proposta de «Circa 1968». A questão, aliás, é um logro, como Duchamp demonstrou de uma vez por todas. O que importa não é distinguir os objectos entre arte e não-arte, mas sim, num panorama em que tudo se equivale desde que cooptado pela área profissional da arte, experimentar e ajuizar a diferença de intensidades formais e significantes, de densidades estéticas e qualidades objectuais. Se tal distinção não pode ser universalmente provada, ela deve ser argumentável, ainda que o programa desta exposição vise destituir as condições possíveis de debate. Mas num dos textos do catálogo, Robert Pincus-Witten, o desencantado autor da etiqueta «pós-minimalismo», nota que, «ironicamente, quando a arte pós-moderna alcança alguma importância, a linguagem usada para a louvar é decalcada no discurso da pintura e da escultura – qualidade, beleza, originalidade, significado, termos de um género de facto proscrito à partida pelo debate pós-moderno».

Por vezes, consultando os escassos elementos disponíveis, parece sugerir-se uma sustentação teórica das escolhas na tese de uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 68, demonstrando as obras históricas da década de 65-75 uma ruptura substancial com que começaria o período da arte contemporânea. Mas Todolí corrige: não se trata de «a» história da arte que começa em torno de 68, mas de «uma história», a sua, «uma visão subjectiva e pessoal», estabelecida pelo comissário-artista: «nem a colecção nem a exposição inaugural têm a intenção de contar o que se passou – isso seria repetir a história ortodoxa ou fazer uma arqueologia» («El País»).

De facto, em «Circa 1968», proposta como «exposição-manifesto», «o ponto de partida é mais ou menos 1968, mas aquela época considerada do ponto de vista de agora»; «a base da selecção é a época de 60 vista a partir de hoje»; «as obras desta colecção, embora tenham sido feitas nesse período parecem feitas hoje». Para além da banalidade (uma história actual do impressionismo é feita a partir de hoje, necessariamente, revendo as histórias feitas antes) e do equívoco (são algumas obras de hoje que retomam as estratégias anteriores), trata-se de gerir uma rede ora idiossincrática ora institucionalmente consensual de exclusões e cooptações, através de uma selecção de objectos feita numa banda muito estreita da criação da época. A etiqueta «arte contemporânea» não é usada como uma marca cronológica em aberto, mas como um critério programático para recortar da pluralidade das práticas e das concepções artísticas de uma década anterior um segmento específico, quase sempre a sua área mais pobre e menos significante. Um segmento que é, no momento presente, tacticamente reciclado pelos gostos dominantes e oferecido à escassez de recursos do mercado institucional periférico, em oposição a outras e mais fortes realidades.

Quando Todolí diz da exposição e do museu que «não é uma colecção sobre movimentos» («a mim não me interessam os movimentos», etc), inviabiliza o entendimento das obras de um tempo que se caracterizou, de facto, pela emergência continuada e concorrencial de movimentos, e em que as obras, associadas a uma derradeira reactivação de lógicas vanguardistas, estiveram sempre intrinsecamente ligadas a tendências e teorias, quase sempre capitaneadas por críticos-ideólogos e apresentadas sob novas etiquetas estilísticas, com o seu cortejo de interditos e de formulários impositivos.

No contexto do decénio 65-75, grande parte da produção artística que se pretendeu de vanguarda sustentou-se numa intenção de prevalência da teoria sobre o objecto (opondo-se ao que seria, na «arte tradicional», a predominância do objecto sobre a teoria). Ao pretender, hoje, que as obras que escolheu «não são ilustrações de teorias», «não representam tendências», Todolí procede a uma operação radical de descontextualização que as transforma em objectos arbitrários e põe em prática uma concepção instrumental de fetichização de vestígios que é apenas uma lógica de administração do poder.

Sucede, porém, que a afirmação não é verdadeira e que «Circa 1968», no seu sector «internacional», é quase totalmente uma exposição de movimentos – de alguns movimentos –, estando ausentes os artistas exteriores a essa lógica da sucessão das tendências.

São «imagens de marca» ilustrativas da «arte povera» italiana as obras de Kounellis, Merz, Anselmo e Zorio, colocadas na sala central. Tal como são obras exemplares, quanto ao conglomerado «eccentric abstraction», «anti-form» ou «process art» que reage ao formalismo minimalista, as peças de Eva Hesse, Robert Morris, Bruce Nauman, Richard Serra e Barry Le Va. Mas, nas proximidades desta área norte-americana teriam uma densidade mais do que experimental obras de Louise Bourgeois, Kienholz ou Robert Ryman, e a oposição ao reducionismo ascético ou a implicação nas contestações políticas do tempo («circa 68») deveriam passar por Mark di Suvero, Kitaj, Peter Saul, Leon Golub e Nancy Spero, se não se preferisse o ensimesmamento à conflitualidade estética que mais radicalmente «questionou a autonomia e a 'essência' da obra de arte».

São ilustrações da arte conceptual mais anti-objectualista as presenças de Weiner e Mel Bochner, excluindo todavia a componente mais política do movimento (Victor Burgin e Art & Language, por exemplo) ou mais «linguística» (Kosuth). O mesmo sucede com as obras da «land art» e «arte ecológica», de Oppenheim e Smithson, Long e Fulton e suas variações regionais, com que se continua a percorrer um quadro arqueológico da época.

A alegada fuga às «imagens de marca» e a distância face aos movimentos é, de facto, tacticamente distribuída. Encontra-se no apagamento da arte Pop (e das suas sequelas «funk», «psicadelic», hiper-realismo), então dominante embora invisível na exposição, apesar da presença de Warhol e de Rosenquist (com um «ambiente» que é uma experiência exaltante, mas distanciada da matriz Pop). De Oldenburg, as peças compradas para a colecção são irrelevantes; de Rauschenberg, também anterior à Pop e um dos grandes artistas das rupturas pioneiras da década de 50 (com Cage e Merce Cunningham, Kaprow e Jim Dine, etc) mostram-se duas das mais fortes obras da exposição, na antiga Casa, onde a presença literal dos detritos se estrutura com a energia de uma disposição formal que não os anula enquanto objectos recuperados (é uma «traição estética»). Estão ausentes os realismos que se pretendiam críticos, a arte Op (MoMA, «The Responsive Eye», em 65), o cinetismo e em especial a arte minimal («Primary Structures», Jewis Museum, e «Systemic Painting», Guggenheim, N.I., 66), embora muitas das obras mostradas sejam apenas o seu negativo. Se a contestação radical do accionismo vienense não é evocada, o carácter extremo do «happening», «performance» e «body art» dilui-se em vestígios autistas ou é remetido para ciclos de vídeo; Fluxus, sem Nam June Paik e Wolff Vostell, com um Beuys funerário, perde o seu sentido interventivo. Muito do que os anos 60 tiveram de marcante assumiu com coerência o seu carácter efémero e só sobreviveu como informação; essa energia questionadora da arte e do mundo declinou com o final da década e fechou-se depois sobre a interrogação conceptual da natureza da arte ou a afirmação da subjectividade narcísica. Desapareceu a inquietação e a alegria desse tempo nos objectos congelados pelo museu.

Igualmente decisivo é observar como a atenção prestada ao uso da fotografia, numa sala própria, está presa a uma visão essencialista do uso dos «media», enquanto desqualificação e sucedâneo da pintura, nunca como abertura sobre os recursos da imagem e a presença do real, persistindo assim a fronteira aristocrática que sempre exclui a fotografia que não se reivindica da condição artística e do espaço da arte. É também por isso que a sala dedicada à «redefinição da pintura» não é muito mais que uma reconstituição do formalismo reducionista (embora se sigam Susan Rothenberg e Georg Baselitz).

Outro ponto marcante é a recuperação normalizadora do que foi a originalidade radical das duas exposições comissariadas por Harald Szeemann («Quando as Atitudes se Tornam Forma», em 69, e Documenta VII, em 72), que já então tinham carácter retrospectivo. Na segunda, aberta a obras «representantes de todas as imagens do mundo», compareciam «a arte conceptual e o hiper-realismo enquanto direcções apresentadas segundo pontos de vista formais», a par da linha das «mitologias individuais enquanto campos da criação subjectiva dos mitos», onde cabiam, justamente, mas com escândalo, as obras de doentes mentais e a arte religiosa popular.

Sobre o decénio em causa, dizia Szeemann, em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998).

Uma diferente história de rebeldes, com Picasso (até 72), Balthus, Freud e Hockney e tantos outros fica por contar, e poderia ter em Philip Guston uma figura paradigmática, porque o seu regresso à figuração em 1966 foi um dos maiores choques do decénio, enfrentando com duradouras consequências o consenso vanguardista.

No início da década de 80, constatava-se que «a sobreacentuação da ideia de autonomia em arte que provocou o minimalismo e a sua consequência extrema, a arte conceptual, estava votada à esterilidade. Rapidamente, a vanguarda dos anos 70, com a sua concepção puritana, rígida, desprovida de qualquer alegria sensual, perdeu o seu impulso criativo e começou a estagnar», escrevia Christos M. Joachimides, ao apresentar a exposição «Um Novo Espírito da Pintura», em 1981.

A ocultação de obras e de memórias permite duvidosas operações. Mas talvez haja, de facto, uma perspectiva teórica subjacente à exposição, que pode ter a sua chave numa breve referência a um «conceito de vanguarda»: a selecção das obras realizadas em torno de 68 que parecem feitas hoje seriam as que «reapropriam interpretações particulares dos momentos euforizantes das experiências de vanguarda sucedidas entre meados dos anos 10 e meados dos anos 20». Que calendário é este que, além de tudo o resto, exclui o vanguardismo cubista, futurista, órfico, etc? Exactamente o que teria tido início com o dadaismo (Zurique, 1916), integra o construtivismo soviético, com ou sem o seu destino produtivista, e exclui o surrealismo (Paris, 1924). Desligado do seu contexto histórico, é um exercício de diletantismo pessoal e de arbitrariedade institucional. Soa terrivelmente datada outra frase de Todolí: «O modelo anterior – metafísico, do artista que está no estúdio – foi rejeitado. Os muros do estúdio tornaram-se falsos e a pergunta em questão é: se há limites e onde é que eles estão?» (entrevista ao «DN»).

Há, no entanto, outras situações onde a tese do paradigma e a exposição-manifesto aparecem justificadas por uma razão excessivamente prosaica: a falta de dinheiro para adquirir outras obras, para iniciar a colecção sobre outro «paradigma». «Tomando em conta as possibilidades, hoje, de começar uma colecção neste país, com um orçamento modesto em termos internacionais, percebemos à partida que ainda se podiam comprar coisas desta época – dos anos 60 – bastante em conta», diz Todolí («City»). De facto, uma tela de Lucian Freud (o retrato da mãe do pintor, de 1982) custou perto de 600 mil contos num leilão de 18 de Maio, o que equivale à verba total de três dos cinco anos de aquisições previstos para o museu do Porto.

O orçamento disponível e o programa do museu mantêm o círculo vicioso que desde sempre domina Serralves: sem meios financeiros e vontade política não há um programa museológico credível, e sem este (sem um projecto pluralista, não sectário, comunicativo e socialmente implantado, sustentado na possibilidade de fundamentar juízos de valor estético) nunca existirão os meios necessários, nem se justifica, aliás, que eles surjam.

EM PORTUGUÊS

A PRESENÇA portuguesa em «Circa 1968» deveria ter uma análise cuidada se não fosse por demais evidente que ela resulta em grande medida de uma mera gestão de compromissos e conveniências: por um lado excessiva – 37 para 70 estrangeiros –; por outro, em grande parte exterior ao tópico orientador da exposição, a tese da mudança de paradigma. Que fazem Fernando Lanhas, Paula Rego, Júlio Pomar, Jorge Martins, António Sena e outros em «Circa 1968», senão prosseguirem o que Todolí chama «a 'pintura de cavalete' não problematizada», quando «as obras começam a a sair para fora da tela» e tem lugar «a ruptura do conceito de moldura, o qual dá lugar à invasão do espaço interior e, por vezes, exterior...» (roteiro)?

Porque não estão representados Menez (que terá colaborado com João Vieira no quadro O Gato, de 67), João Cutileiro, Costa Pinheiro («Os Reis», em 1966; os projectos ambientais lúdicos de «Citymobil – arte-projecto», em 67-75) ou Eduardo Luís? Não importa. É bem melhor estarem ausentes, denunciando-se a arbitrariedade das escolhas, do que depositados numa cave mal iluminada e de acesso tortuoso, a sala nacional da exposição, porque não foi possível, disse-se, estabelecer pontos de diálogo com outros artistas – o que só significa que os grandes contemporâneos estrangeiros foram eliminados.

Entretanto, oferece-se a feliz oportunidade de observar como em tantos casos os artistas portugueses colocados em situação de «diálogo» internacional ficam tragicamente remetidos à situação de intérpretes menores do ar do tempo, de epígonos amaneirados de problemáticas alheias ou de «introdutores» em Portugal de qualquer estilo ou moda (desde os anos 50 que a crítica nacional foi assegurando esse método de avaliação e promoção de artistas, sempre de efeitos devastadores).

Não é esse o caso de Lourdes Castro, René Bertholo e Eduardo Batarda, a quem cabe, com o admirável e inclassificável Oyvind Fahlstrom (1928-1976), a representação exclusiva de um largo campo de trabalho em torno dos poderes e ilusões da imagem (chamou-se-lhe na altura neo-figuração, figuração narrativa, mitologias quotidianas, etc) que atravessou a década de 60.

Note-se ainda, por último, a aberrante representação da crítica portuguesa no catálogo, fazendo emparceirar os dois textos de protagonistas da época, Germano Celant e Robert Pincus-Witten, ou o estudo de Antje von Gravenitz sobre «O mito de '1968' na Alemanha», muito útil para entender o contexto regional dos alunos de Beuys, com uma prosa esforçadamente escolar de alguém que só podia ter um contacto indirecto com a época em causa e que a comenta com os piores vícios do academismo vanguardista.

terça-feira, 23 de junho de 1998

1998

O CPF na TT, a Fototeca do Palácio Foz para o AFL? (1998)

No processo longo e polémico de criação do Centro Português de Fotografia, enquanto instituto autónomo, que se sedeou no Porto e na Cadeia da Relação, inclui-se a transferência da Fototeca do Palácio Foz, mantida por Avelino Soares em diferentes quadros institucionais. Falava-se então, com a megalomania do personagem Carrilho, na construção (prevista para 2001!) de um edifício anexo à Torre do Tombo que iria acolher o chamado Arquivo Fotográfico de Lisboa (AFL) – não confundir com o Arquivo Municipal de Fotografia.

A transferência das colecções da Fototeca para a TT terá começado em Janeiro de 1999, indica-se nas notícias abaixo, e parte dos "quase quatro milhões de fotografias no Palácio da Ajuda (ex-Arquivo Nacional de Fotografia)" ter-se-iam (em grande parte?) mantido no âmbito do então Instituto Português de Museus, como Divisão de Fotografia. E aqui se fala também de "documentação dos serviços de propaganda e informação de Salazar, depositada, em parte, num armazém em Queluz", que teriam integrado a TT.

A ideia (que acho peregrina) de criar no Palácio Foz, em pleno Rossio, uma entidade dedicada a estudar regimes autoritários foi o pretexto para o António Henriques continuar a investigar os casos da Fototeca e do CPF. Por mim, estava praticamente impedido de escrever sobre política cultural, ameaçado pelas manobras persecutórias do personagem MMC.

1 – "Fotografia na Torre do Tombo"
Expresso Actual de 06-11-98, por António Henriques
O património do Palácio Foz vai ser dividido por três instituições
O ARQUIVO Fotográfico de Lisboa, serviço regional do Centro Português de Fotografia (CPF), vai ser construído de raiz em terrenos anexos ao edifício da Torre do Tombo, prevendo-se que esteja finalizado em 2001. O novo edifício, para o qual será lançado um concurso de ideias no próximo ano, vai receber os espólios fotográficos depositados na Fototeca do Palácio Foz, bem como a fotografia histórica que se encontra no Palácio da Ajuda, ocupando o antigo laboratório de Física do Rei D.Carlos.

 As decisões sobre o património fotográfico da capital, anunciadas esta semana em conferência de Imprensa pelo ministro da Cultura, são vistas como «o termo de uma situação caótica e constituem uma visão integradora» tendo em vista a unidade de espólios num só espaço, segundo afirmou o governante. O director da Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, Bernardo Vasconcelos, disse na mesma ocasião que a solução encontrada permite reaproximar todo o espólio do jornal «O Século», cuja parte de arquivo e biblioteca já se encontra na Torre do Tombo, mas cuja iconografia está no Palácio Foz. «Tomámos uma decisão inatacável do ponto de vista técnico», referiu. Recorde-se que o espólio de «O Século» é dos mais significativos em termos de documentação do século XX português, tendo sido resgatado do esquecimento por técnicos da Fototeca, entre 1988 e 1989 – juntamente com imagens de «O Século Ilustrado» e outras do foto-repórter Joshua Benoliel, tendo estas ilustrado as revistas nacionais de referência no começo do século. Prevê-se que a transferência de espólios da Fototeca para a Torre do Tombo (que disponibiliza instalações provisórias para a documentação) se faça nos primeiros dois meses de 1999, altura em que o serviço público de consulta que vinha sendo assegurado no Palácio Foz será interrompido.

 O destino a dar ao restante espólio não fotográfico depositado no Palácio Foz – uma hemeroteca com jornais impressos no país durante grande parte deste século, revistas especializadas em Comunicação Social e o «Diário da República» e ainda uma biblioteca com vários núcleos valiosos – pode passar pela incorporação na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional, depois de uma avaliação. Este espólio, de inegável importância, foi desvalorizado na conferência de Imprensa, ao ser considerado «residual», tal como a documentação do Secretariado de Propaganda Nacional/ Secretariado Nacional de Informação, que esteve 30 anos abandonada num depósito do Estado em Queluz.

 O novo figurino desenhado para o Arquivo Fotográfico de Lisboa prevê a incorporação inicial de quase quatro milhões de espécies fotográficas. Destas, três milhões e meio têm origem no chamado Arquivo Nacional de Fotografia, sedeado no Palácio da Ajuda – trata-se de uma estimativa, uma vez que nunca foi feito um inventário do património existente, como confirmou Teresa Siza, directora do CPF, em entrevista recente ao EXPRESSO. As restantes espécies (306 mil) provêm da Fototeca, sendo que quase dois terços são imagens de «O Século». A opção pela construção de um novo edifício (orçado em 800 mil contos, vindos do Ministério da Cultura), coloca de lado a única proposta que, desde 1992, foi formalmente apresentada como solução para tornar acessível ao público todo o espólio depositado no Palácio Foz. Da responsabilidade do técnico Avelino Soares, que liderou, até agora a Fototeca, a proposta defendia a manutenção conjunta de todo o espólio no Palácio, uma vez que aquele constitui uma memória colectiva extraordinária do século XX português – o objectivo era criar ali um polo de atracção cultural capaz de dinamizar a actividade no Palácio lisboeta. Esta solução, formalizada com o nome de «Centro de Imagem», chegou a ser inscrita como departamento no projecto de Decreto-Lei do Instituto de Comunicação Social – quando a tutela do espólio não era, ainda, do MC – mas não passou de intenção. O técnico Avelino Soares produziu, desde 1981, nove documentos diferentes sobre a situação da Fototeca, alguns a pedido das tutelas, mas só três tiveram despacho e sempre sobre questões laterais.

O EXPRESSO questionou o ministro da Cultura sobre o futuro dos trabalhadores da Fototeca, mas Manuel Carrilho, mostrando-se surpreendido por tal questão interessar ao jornal, afirmou que a mesma não tinha «relevância» para ser analisada no contexto da conferência de Imprensa." ANTÓNIO HENRIQUES

#

Sobre o mesmo tema, AH publicou a 21 Nov. de 98 uma "Tribuna" intitulada:

"O palácio adiado"

O ANÚNCIO da construção de um edifício para o Arquivo Fotográfico de Lisboa pode ser visto como uma indiscutível boa notícia para a Fotografia. A nova sede, a ser criada mesmo ao lado da Torre do Tombo, deve reunir o património fotográfico depositado na Fototeca do Palácio Foz e o imenso e ainda desconhecido acervo guardado em minúsculas instalações do Palácio da Ajuda (calculado em três milhões e meio de imagens).
Pela primeira vez, prevê-se que a Fotografia da capital possa ser preservada nas melhores condições técnicas, inventariada e consultada por investigadores e público em geral, ao mesmo tempo que se põe termo à insustentável situação de um serviço que existia sem estatuto legal e cujas obrigações nunca foram definidas – o Arquivo Nacional de Fotografia.
O Ministério da Cultura justifica a decisão pela necessidade de «'unificar' imagens dispersas e de reaproximar o espólio do jornal 'O Século'» – a reportagem fotográfica, actualmente na Fototeca, e o arquivo e biblioteca do jornal, na Torre do Tombo, passam a estar muito próximos fisicamente.
Neste segundo caso, prevalece um princípio arquivístico que diz que os fundos não devem ser desmembrados, antes se deve procurar a sua unificação e, por isso, Bernardo Vasconcelos, director do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, classificou como «inatacável» a solução anunciada para a Fotografia.
Esqueceu-se, no entanto, de dizer que o mesmo princípio pode ser aplicado ao conjunto do património cultural do Palácio Foz, do qual a Fototeca é o sector mais significativo, mas está longe de ser o único: há uma biblioteca que inclui um dos núcleos mais valiosos do país (a Livraria Duarte de Sousa, com 2500 obras do século XV ao século XX), que tem 18 mil volumes de História Política, Literatura e Comunicação Social, mais de 1200 livros e 700 cartazes do Secretariado Nacional de Informação (SNI – criado em 1933, ainda com outro nome, e que António Ferro diligentemente dirigiu como centro da «política do espírito» de Salazar), um núcleo com 26 mil obras reunidas ao abrigo do depósito legal e, ainda, uma hemeroteca com grande parte dos jornais portugueses.
Olhando este património como um todo, a transferência da Fototeca constitui um desmembramento de espólios, deslocada do contexto onde parte significativa foi produzida – o Palácio Foz, como centro de propaganda e informação do Estado Novo. Desse ponto de vista, a manutenção do património do Palácio Foz é tão inatacável quanto a decisão tomada." (…)

2 – "Uma fundação para o Palácio Foz"
Expresso Actual de 19 12 1998, por António Henriques (extracto)

"UMA PROPOSTA de criação de um núcleo de investigação e de divulgação sobre as estratégias de poder de regimes autoritários, com futura sede no Palácio Foz, em Lisboa, deverá ser entregue, em breve, ao ministro da Cultura. A iniciativa, que reuniu, esta semana, um grupo de cidadãos no Clube de Jornalistas – e à qual se associaram testemunhos escritos de personalidades que não puderam estar presentes – surge na sequência do anúncio governamental de constituição do Arquivo Fotográfico de Lisboa (AFL), em edifício a ser construído junto à Torre do Tombo. Com data prevista de conclusão para 2001, o novo imóvel vai receber vários espólios, incluindo as mais de 300 mil espécies fotográficas da Fototeca do Palácio Foz, um património fundamental para fazer a História do século XX português.

Sem pôr em causa a decisão de criar o AFL, os elementos deste movimento pretendem criar uma Fundação em que se reúnam todos os espólios que tenham a ver com as estratégias propagandísticas de regimes autoritários, com óbvio destaque para a documentação do Estado Novo. «Trata-se de constituir um património integrado independentemente do suporte (fotografia, livros, ou outra documentação) e de o fazer reanimando o Palácio Foz. A criação do AFL é importante, pelo que a nossa proposta é paralela à decisão do Ministério da Cultura», disse ao EXPRESSO o investigador e professor do ISCTE, José Rebelo, presente no encontro.
(…)
A ser aceite, a proposta obrigaria à reavaliação da documentação a transferir do Palácio Foz para o AFL, nomeadamente a que diz respeito ao estabelecimento e manutenção no poder do regime de Salazar e à possível transferência de espólios dispersos por várias entidades, sobre aquele tema, para o palácio dos Restauradores.
Segundo José Rebelo, a Fundação tem três grandes objectivos: encorajar a investigação e troca de informação sobre regimes autoritários, em geral, e sobre o salazarismo em particular (uma das prioridades é a ligação a instituições especializadas da Europa que se dedicam, precisamente, ao estudo dos regimes totalitários), divulgar essa investigação junto da população mais jovem (o historiador Vítor Viçoso, outro dos presentes no encontro, disse que «há uma amnésia entre os jovens relativamente ao Estado Novo») e abrir o Palácio Foz, onde estão sediados múltiplos organismos da administração estatal, ao público e aos investigadores – designadamente estudar o aproveitamento de uma sala de cinema desactivada, de uma biblioteca totalmente restaurada, mas fechada ao público desde 1991, e da chamada Sala dos Espelhos, um espaço ricamente decorado que, segundo José Rebelo, devia ser aproveitado para sessões de divulgação e exposições.
Outro dos pontos referidos no encontro prende-se com o espírito da Fundação a ser criada. «Prolongar o exemplo dado pela Fototeca», disse aquele investigador; «uma perspectiva não mercantilista de utilização dos arquivos», segundo o jornalista e escritor Fernando Dacosta, que se referia, igualmente, ao trabalho desenvolvido pela Fototeca do Palácio Foz. Andrade Moniz, professor da Universidade Nova de Lisboa, que não esteve no encontro, foi mais duro num depoimento escrito para a ocasião: «Tal medida centralizadora (transferência da Fototeca), prescindindo de um rico espaço próprio, identificado com a sede governamental da maioria da documentação recolhida e exposta (…) cria condições para uma eventual e lógica subalternização de tão rico património cultural.» Este investigador adianta ainda que o actual responsável da Fototeca, Avelino Soares, deveria continuar a gerir o espaço que criou e dinamizou. «Como já é costume ancestral entre os nossos governantes, a medida ignora e estrangula o aproveitamento de recursos humanos», diz, referindo-se ao afastamento daquele técnico do processo de transferência e da futura configuração do AFL.
O especialista de Fotografia António Sena, enviou um depoimento no mesmo sentido, ao falar da Fototeca: «Ao contrário de todos os outros Arquivos Fotográficos, fechados a sete chaves, com a sua organização disfarçada de burocracia, no Arquivo do Palácio Foz sempre se deu prioridade absoluta à divulgação de imagens e à sua organização, aberto a qualquer investigador e, apesar dos poucos meios disponíveis, com a generosidade de um responsável que nunca se cansou de proporcionar as melhores condições de trabalho.»
Estes depoimentos serão parte substancial de um texto a ser enviado ao ministro Manuel Maria Carrilho, antes do início da transferência da Fototeca para instalações provisórias na Torre do Tombo, prevista para Janeiro próximo. O futuro AFL vai receber, assim, o único serviço organizado e aberto ao público, não tendo ainda sido anunciado quando se fará o mesmo com os quase quatro milhões de fotografias no Palácio da Ajuda (ex-Arquivo Nacional de Fotografia) e quando irá começar a anunciada incorporação, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional, da documentação dos serviços de propaganda e informação de Salazar, depositada, em parte, num armazém em Queluz. ANTÓNIO HENRIQUES

Sobre o mm tema da Fundação e do Palácio Foz, o Rui Rocha respondeu com outra "Tribuna" a 24 12 98, intitulada  "A última morada"

#

Ainda tenho o "Relatório sobre a Situação da Fototeca do Gabinete de Apoio à Imprensa – pelo responsável da Fototeca Avelino do Coração de Jesus Soares, técnico de 1ª classe – Lisboa, 22 de Fevereiro de 1994". Então Direcção-Geral da Comunicação Social.

Com o Espólio Iconográfico da Secção de Fotografia do Ex-SNI da DGD (1910-1983): 53.750 negativos; 24.010 zincogravuras; 12.399 diapositivos. O Espólio Iconográfico de "O Século" (1900-1976)… , o do "Diário Popular" (6 mil zincogravuras)… Em geral as provas em papel (albuns?, bolsas temáticas e onomásticas) não são referidas (desapareceram? ou não existiam antes de? )…

Quando queria e tinha confiança nos interessados, o Avelino Soares era muito eficaz. Julgo que foi ele o salvador do Arquivo e que foi maltratado no processo de transferência, anunciado em 1996 e concretizado depois de 1998, certamente em 1999. Falava-se à época em construir um edifício atrás da TT para sede do Centro Português de Fotografia… Também conservo umas folhas de "Mensagens" que ele ia afixando nas paredes e nos móveis. Uma folha da Susan Sontag e duas dele, por exemplo: "MENSAGEM: – As imagens são nacos de vida, pedaços da natureza seleccionados pela 'veduta' do fotógrafo ou pela 'visione' do artista; – Reproduzem fracções do 'χρονοσ' e, por vezes, a fruição de um "καιροσ" (…)" Era um personagem.

 

sábado, 5 de julho de 1997

1997, Serralves, Alternativa Zero

 EXPRESSO/Cartaz de 05-07-97 

"QUESTÕES ALTERNATIVAS"   

"Contribuição abertamente polémica para a discussão de uma exposição histórico-mitográfica. A «Alternativa Zero» como momento fundador da burocratização das vanguardas"

«Perspectiva: Alternativa Zero» (1)
Fundação de Serralves

«Reapresentar hoje a experiência da "Alternativa Zero" implica a reconsideração de um contexto fundador das raízes da contemporaneidade artística portuguesa, através da reflexão sobre a actividade crítica e curatorial que o combate ideológico de Ernesto de Sousa representa, ao concretizar uma exposição que reunia toda uma geração de ruptura que, desde finais da década de 60, vinha afirmando as suas propostas e ampliando-a no contexto possível que o pós-25 de Abril poderá ter permitido» — João Fermandes (catálogo).
É raro que um discurso que pretende ser história se revele com tal evidência um exercício de mitificação-mistificação. O próprio autor e comissário da exposição o terá sentido, já que inicia assim a frase seguinte: «Não se trata de mitologizar esta experiência...».

Palavras como fundação e raízes sempre serviram para construir ou legitimar mitos, e é uma certa ideia de «arte contemporânea», nascida de uma suposta ruptura com a «arte moderna» que teria ocorrido por volta de 1968, que se propõe como horizonte de actuação da nova direcção de Vicente Todoli e João Fernandes em Serralves.
É de 1969 que data a paradigmática exposição «Quando as atitudes se tornam forma», organizada por Harald Szeemann, em Berna, seguida em 1972 pela Documenta de Cassel que o mesmo comissariou e Ernesto de Sousa visitou; então convertido à «vanguarda», aí teve um encontro decisivo com Joseph Beuys <*>, vindo a organizar a «Alternativa Zero» em 1977.
Tinha sido antes crítico de arte ligado ao neo-realismo, crítico de cinema e cine-clubista, realizou o filme Dom Roberto em 1960-62, foi encenador teatral e animador-agitador em geral, depois artista multimédia e «operador estético», como preferia dizer.

Que significa «mitologizar» no museu os restos (em muitos casos reconstruídos para a ocasião) de uma exposição-acontecimento tão decididamente marcada pelas ideologias do tempo — o «espírito de 68» e a «desmaterialização da arte» —, quando nela se propunham não objectos e obras, mas atitudes, intenções, processos, acções no quotidiano e no «contexto», por definição efémeras?
Que sentido tem, hoje (ainda, ou de novo?), falar da «geração de ruptura» de finais dos anos 60, quando outra se lhe terá seguido nos inícios de 80 (à volta do «Depois do Modernismo») e mais uma se manifestaria nos começos de 90? Sem esquecer que outra já se afirmara no final dos 50, como tentou provar uma recente antologia da década de 60, sob o título «Anos de Ruptura».
Esta sucessão das «rupturas», ao constituir-se numa ziguezagueante continuidade (aceleração última da «tradição do novo», conforme a fórmula de Harold Rosenberg, já de 1960), não exigirá, pelo contrário, a desmistificação do conceito de ruptura e da visão da história como sucessão de gerações?

Repescando como raíz mítica o neovanguardismo de finais de 60, uma actual «vanguarda» plenamente oficializada enquanto poder (no Instituto de Arte Contemporânea, em Serralves e no CCB, nomeadamente através de Isabel Carlos, João Fernandes e Pedro Lapa) sustenta a sua política «geracional» — institucional por definição, burocrática por vocação crítica — gerindo uma alternância de vagas (de rupturas e de modas). Agora, através da fetichização museológica dos vestígios de uma prática artística que pretendia precisamente opor-se a tal destino, em nome do projecto de mudar o mundo.

Transformou-se a natureza do poder, ou completou-se a domesticação de atitudes que tiveram uma dimensão original de contestação globalizante, com sentido político, ético e estético? Ou terá sido o discurso vanguardista, sempre, embora sobre diferentes faces, a afirmação de uma ambição de poder?

Como comissário de exposições, Harald Szeemann defendeu «a transferência do interesse para o processo, deixando de considerar essencial o resultado» (o objecto). Valorizou as «atitudes artísticas» e o «gesto» como «assinatura e estilo» — viriam a seguir as «mitologias individuais», depois de desfeitas as utopias colectivas. Desconsiderou o objecto, as disciplinas e os géneros artísticos, tanto de tradição académica como de anti-tradição moderna. Contrapondo os artistas que descobria aos «fazedores de objectos», Szeemann exprimiu «o desejo de fazer explodir o "triângulo" tradicional da arte: atelier-galeria-museu» e associou a rejeição da realização formal (tradicional ou moderna), o anti-formalismo, a uma ideia de «antiforma social» que reconhecia em alguns comportamentos juvenis emergentes na década de 60.

Foi, em paralelo com a contestação política do tempo (a mobilização contra a guerra do Vietname, o terceiro mundismo, os esquerdismos, as revoltas estudantis), o período dos vários movimentos designados como pós-minimalismo e arte conceptual, processual ou «povera», «land», «body», etc...

Mas, de facto, ao contrário do que sucedera com as vanguardas do início do século, surgidas em oposição à Academia, a nova dinâmica vanguardista já podia contar com o apoio activo das instituições culturais: a tradição da ruptura ía-se tornando a vocação de um sistema burocrático nascido com a inclusão da cultura entre as competências do «Welfare State», sobre a dissolução do sistema académico e a demolição gradual de anteriores concepções de democratização da cultura.
À distância, observa-se que o museu, agora encomendador e promotor directo, e já não só depositário de objectos reconhecidos como património colectivo, passou a deter a primeira posição no mesmo «triângulo» criticado por Szeemann, enquanto a «antiforma social» serviu de legitimação autoritária à oficialização de um poder artístico voltado para a satisfação exclusiva de alguns produtores e do seu «público especializado».

A «Alternativa Zero» deverá ver-se como repercussão nacional dessa dinâmica, com inevitável atraso — embora fosse já mais a síntese de um processo do que um manifesto inaugural. Muito mais alternativo, no entanto, também por volta de 1977, seria o discreto retomar da pintura por António Dacosta...

Em Portugal, o mesmo movimento de institucionalização das neovanguardas decorre acelaradamente após o 25 de Abril, mas, em 1977, as esperanças revolucionárias já tinham ficado para trás. A crise petrolífera de 73 abalara o sistema galerístico antes de se repercutirem no mercado e na prática artística os efeitos de 74: é a um primeiro desinvestimento da produção «tradicional» (pintura e escultura), devido à crise económica, que se seguem as acções de animação revolucionária. (Algo de semelhante, com outra argumentação ideológica, ocorreu nesta década, por efeito da nova crise económica...)

De facto, a «Alternativa Zero» terá associado a algum experimentalismo cuja importância convirá reconhecer (permiti-lo-á a presente exposição?) as desilusões resultantes tanto da paralização do mercado de arte como da diluição de expectativas associadas à revolução. Desaparecidos os «consumidores» e o «povo», os objectos de arte e a agitação político-cultural pareciam deixar de ter destinatários. Recentrar a prática artística sobre si própria, sobre a «essência» e o conceito de arte, as suas convenções e anti-convenções, a atitude e a intenção do artista, seria a resposta «natural» nesse contexto. Uma resposta autista e rapidamente esgotada, como veio comprovar a breve prazo a vaga «pós-moderna».

Entretanto, importa ver que a «Alternativa Zero» já é o resultado de uma confluência da «vanguarda» com o activismo das instituições oficiais — é essencial que a exposição tenha decorrido na Galeria de Arte Moderna de Belém e com o directo empenhamento da Direcção-Geral de Acção Cultural, onde trabalharam artistas como João Vieira, Julião Sarmento, Fernando Calhau, Vitor Belém (também expositores).

Reapresentar hoje a «Alternativa Zero» em Serralves é, acima de tudo, celebrar o «contexto fundador» que tornou o nome do comissário das exposições mais importante que o dos artistas participantes, ou seja, o momento em que o «projecto» se impõe sobre as obras, a intenção sobre o resultado, a atitude sobre o objecto. É assinalar um passo decisivo, para que em Portugal, se viesse a impor, à margem do mercado particular e do sistema museológico, mas também com autonomia relativa face à instrumentalização política por parte dos governos, um aparelho cultural de Estado (sobre o modelo francês) identificado com o «mundo da arte», tido como seu representante e dominador da circulação artística. Um poder de tutela, crítico-administrativo, que, ao sabor das fases de crise ou expansão da conjuntura económica, e sob a aparência das «rupturas geracionais», faz alternar tacticamente não só os padrões críticos como as suas relações com o grande mercado privado, ora associando-se-lhe sem qualquer pudor (nos anos 80) ora condenando-o com vaga argumentação «políticamente correcta» (anos 90).

É um outro sistema académico que assim se reconstrói e, tal como sucedeu antes, é possível adivinhar que a criação artística mais significativa do presente lhe é em grande medida exterior.
Vinte anos é o tempo suficiente para que uma «geração» que não assistiu à «Alternativa Zero» possa transformar a sua memória em restos museológicos, reinjectáveis nesse outro mercado que é hoje a cultura oficial e a indústria estatal do espectáculo artístico.
NOTA:  Devido à data de fecho desta edição, mas cumprindo o primado das intenções sobre os resultados defendido pela «Alternativa Zero», este texto foi escrito antes da visita a exposição onde se recolhem as respectivas relíquias. Outros comentários se lhe seguirão. (2)

(1) Notícia de 05-04-1997 (Actual, pág 3) 

 
Novo programa para Serralves
A programação de Vicente Todolí como director artístico da Fundação de Serralves arranca já no início de Julho com uma exposição que tem o título ainda provisório «Perspectiva 'Alternativa Zero'», depois de antes ter sido designada como «Uma década de ruptura - Os anos 70 em Portugal».
Mais do que de uma abordagem retrospectiva de toda a década, tratar-se-á, de facto, de um projecto em torno da mostra colectiva que Ernesto de Sousa promoveu em 1977 na antiga Galeria de Belém e que teve como subtítulo «Tendências polémicas na arte portuguesa contemporânea». Aí se reuniram praticamente todos os artistas («operadores estéticos», dizia-se então) que trabalhavam em áreas ditas experimentais e conceptuais, num contexto que terá sido, contra as expectativas da época, mais uma oportunidade de balanço terminal do que um momento de ruptura inaugural, mas que tem vindo a ser reconsiderado na presente conjuntura, graças às oscilações cíclicas das «sensibilidades» artísticas e às suas pulsões revivalistas. (...)

sábado, 12 de abril de 1997

Mónica Machado, 1997, Forum Maia

 Expresso Cartaz 12-04-97, pp 14-15

"Memória e imaginário do objecto quotidiano"  <Uff!!> 
"Uma jovem escultora portuguesa de Paris, Mónica Machado, inventa a escultura-mosaico: o objecto comum e o lixo encontram uma nova vida"

Bienal Arte Jovem, Fórum Maia

 

MÓNICA Machado foi, até há pouco tempo, apenas o nome de uma artista portuguesa de formação parisiense que se sabia ter sido premiada no Salon de Montrouge (um «salão» anual de jovens artistas na periferia de Paris) e feito uma primeira exposição com apresentação de Yves Michaud (filósofo e crítico, director da Escola Superior de Belas Artes de Paris, onde M.M. se diplomou em 92 e de onde ele se demitiu em 95).
Depois, a uma pouco vista 2ª Bienal da AIP, em Outubro, em Santa Maria da Feira, Mónica Machado trouxe duas obras, um grande e inquietante carrinho de bebé — Le Landau (Salomé Dolores) — e um corpo feminino que se abria no desvendar do seu interior — O Ovo (Petite Anatomie du Désir). Nos seus barrocos revestimentos de cerâmica e na montagem obsessiva de objectos e fragmentos, animados com movimentos mecânicos, som e luz própria, eram sedutoras e repulsivas «máquinas delirantes», insólitas esculturas de invenção original e carregadas de memórias artísticas.
A emoção dessa descoberta, proporcionada pela selecção do crítico Carlos França, levou a apontá-la aqui como a mais forte revelação de 1996.


Agora, numa outra bienal descentralizada que o Forum Maia dedica à «Arte Jovem», Mónica Machado faz reencontrar a sensação de perturbada estranheza que provoca o confrontro raro com uma obra independente da ilustração disciplinada de qualquer gosto tido por actual ou das «reflexões» que sazonalmente se substituem sobre despudoradas faltas de memória e de ambição — uma obra que é ao mesmo tempo divertida e inquietante, íntima e directamente comunicativa.

Três novas peças a juntar às duas já expostas (e às ilustrações de catálogo de uma individual de 1994, entretanto conhecidas) atribuem a esta presença, outra vez proposta por Carlos França - num diálogo muito estimulante com Sílvia Hestnes Ferreira, Fátima Mendonça e Rui Serra -, o lugar das obras que subvertem as hierarquias estabelecidas.

Mónica Machado tem, graças ao uso do mosaico e em especial do azulejo, partido e usado como revestimento de objectos ou como imagem e escrita, uma surpreendente ligação a tradições portuguesas (mas também a Gaudí e a outros visionários mais marginais). Por outro lado, revisita de modo original situações poéticas de utilização de objectos vulgares, imaginários quotidianos e surreais, práticas da acumulação e da «assemblage», com a energia de quem as comenta  através de um inventário sentimental mas irónico da vida própria.

O objecto de consumo corrente impera na escultura actual. É em geral sujeito a exercícios de disposição (instalação) que lhe confere ora a existência glacial dos alinhamentos nos espaços comerciais, ora a montagem arbitrária do quotidiano. O objecto tal e qual, pós-dadaista por definição, autoriza sempre a atribuição da vontade de ironia ou de crítica, ou é, noutros casos, seguindo as estratégias do incomunicável ou indizível, um «objecto ansioso» (Harold Rosemberg) que reclama do espectador o reconhecimento como obra de arte, se o lugar de exposição desde logo o não garante como tal.

Mónica Machado não circula por aí, vai mais atrás e mais fundo na memória e no imaginário do espectador. Colecciona objectos dentro de objectos, remonta-os e subverte-os por uma prática subtil de "bricollage", «utiliza os recursos do fragmento para produzir uma poesia da miniatura e da associação de ideias» (Y. Michaud), num jogo «ao mesmo tempo erudito e ingénuo» (idem) de «mise en abîme» que usa a forma adquirida da caixa-relicário para a perturbar com um sentido das metamorfoses.

Em L'Imbrication de valises (en carton), de 1994-97, sobre uma estrutura metálica móvel, uma das malas de cartão recobertas de mosaico contém a maquete exacta da sua morada parisiense, retomando o exemplo das casas de bonecas, enquanto outros recantos, janelas e gavetas (dotadas de iluminação local) podem recolher, escritos em fragmentos de azulejo, anúncios de casas recortados de jornal, incluir uma colagem-mosaico de medicamentos ou esconder um livro de fotografias pessoais. Uma longa «legenda» que deveria ter sido exposta orienta o espectador num desvendar das pregas desta escultura em episódios, que, com a chaminé e o espelho retrovisor, é o veículo-memória de um nómada.

Outra peça, A mala da tia Titi, é uma caixa de chapéu transformada em relicário, semelhante àquelas que se podem ver nos cemitérios portugueses, como diz a autora: uma vitrine mortuária referida a um parente preciso, que inclui fotografia, relíquias, louça, iluminação, e onde, como diz Y.M., o mosaico «imobiliza e petrifica o sentimento — ou cristaliza-o».

Em Ordures-Ménagère (morceaux choisis), 1996, em parceria com Gil Bensmana, o uso do lixo como material torna mais evidentes as possíveis relações com  as «Poubelle Menagère» de Arman ou os «tableaux-piège» de Spoerri, mas a regra formal do acaso, a ironia neo-dadaista e a composição pictural dão aqui lugar a uma calculada alteração da leitura dos dados imediatos. Os quadros-relevos de Niki de Saint-Phalle e as máquinas de Tinguely são, noutras obras, referências aproximáveis, mas, numa imprevista associação a tais poéticas, Michaud recorda também as caixas «à» Joseph Cornell e os objectos «à» Meret Oppenheim que se podem encontrar escondidas e miniaturizadas no interior das suas construções.
A enumeração dos materiais usados é extensa: «Caixote do lixo, pá, hélice, metal, resina, iluminação, louça, lixo: latas de conserva, ossos, ostras, cascas, espinhas de peixe, papéis, garrafas, etc...» O caixote eleva-se no ar como um foguetão, dotado de pequenas janelas circulares (lugares para outras surpresas), e o lixo jorra como um vómito, mas também como uma cornucópia, a partir de uma pequeníssima máscara oriental de boca escancarada, colocada num fundo a que a luz local confere uma aparência de braseiro-inferno — onde se verá ainda o resto de uma notícia sobre o terror do Ruanda...

"O meu trabalho consiste sempre em encenar objectos... recuperados através do quebrar e da justaposição, etc... para lhe conferir uma nova vida. onde todas as associações se tornam possíveis e o anacronismo se torna a regra do jogo.» Um jogo admirável.
(Nota: Aguarda-se ainda a publicação do catálogo para o comentário ao conjunto da bienal.)

sábado, 7 de dezembro de 1996

Fernando Calhau, 1996, ENTREVISTA (na criação do Instituto de Arte Contemporânea)

 


sábado, 15 de julho de 1995

1984, 1995, René Bertholo, índice

 René Bertholo 1984 -

1984 Abril
08 - «O jogo das memórias de René Bertholo», DN
14 - «René Bertholo: num quadro há milhões de histórias», entrevista, «Expresso Revista», 14-IV-84.
14 - «O regresso» (R. Bertholo e os outros), «Esta semana», crónica , DN

«René Bertholo», «Expresso Revista», 7-IV-84  e 21-IV-84.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-IV-88 e 14-V-88.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-V-92.

«Anos 60/Anos 90», «Expresso Cartaz», 13-VIII-94.

«Contramundos», «Expresso Cartaz», 15-VII-95. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-II-96 e 9-III-96. - #
«A máquina de pintar», «Expresso – Cartaz», 14-XI-98. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-X-98. - #

RENÉ BERTHOLO
Palácio Galveias - 17-02- 1996
Depois das últimas exposições no Porto, a pintura de R.B. volta a poder ver-se em Lisboa, por iniciativa da galeria Fernando Santos, numa situação em que a sua obra atravessa algumas renovadas direcções temáticas e construtivas, na sequência da passagem de Paris para o Algarve. Entretanto, é uma abordagem retrospectiva que continuará a aguardar-se, conhecida a originalidade com que a sua obra se inscreveu na corrente da figuração narrativa dos anos 60 e o sólido percurso posterior pelos objectos mecânicos e pelo «retorno» à pintura. Ainda que a sua produção se encontre disseminada por colecções de vários países, o que torna o projecto particularmente complexo para a preguiçosa rotina das instituições, há que pôr à prova a respectiva competência... e também o seu sentido das responsabilidades. 

09-03-1996
Em cada quadro há milhares de histórias, disse R.B. numa velha entrevista. O pintor não as «conta»: oferece-nos, pintura a pintura, a possibilidade de fazer de cada personagem, revisitado ou inédito (os «mal-educados», os marcianos, o coelho de Alice revisto por Dacosta,  a Abelha Maia a filha de Costa Pinheiro, os pássaros-aviões), de cada objecto ou lugar, «reais» ou inventados, o suporte de um jogo infindável de efabulações e reencontros. É um outro universo, de R.B. e nosso, que vamos ganhando, devorador de outros universos de fábula e de história, onde, por exemplo, o feijoeiro mágico é árvore da vida, coluna sem fim e pintura de motivos vegetais — natureza morta ou viva? — como há muito não se via. É de inventividade da pintura que se trata, e R.B., que fragmenta as composições com uma nova eficácia, que experimenta inéditas aplicações da cor (as «quadricomias») e a ampliação da escala das figuras, que retoma com outro fôlego alguns temas já experimentados («o quarto da Torre») e alarga a dimensão imaginária, surreal, da sua obra, está num momento particularmente feliz da sua pintura. A exposição, em últimos dias, reapresenta telas já expostas recentemente no Porto («Cartaz», 15-07-95) e acrescenta novas obras.

René Bertholo
Centro Cultural da Gandarinha, Cascais
17-10-1998
Pinturas recentes, de 1996-98 (e não «mais ou menos recentes», que tem outro sentido no texto de apresentação de Carlos França para o livro editado). A uma primeiro olhar poderia estar-se perante uma simples continuidade de trabalho, reconhecendo-se a retoma de soluções de composição experimentadas (a construção do quadro com dois, três, quatro ou mais espaços repetidos, com referência à estrutura da BD e também a Magritte) ou a presença de personagens e elementos figurativos «já vistos». De facto, a pintura de R.B. atravessa uma «fase» em que o aparente reciclar de materiais explode com uma imprevisível liberdade imaginativa, convocando todas as suas memórias para as reinvestir com mais energia e sentido do risco, no ensaiar de novas situações enigmaticamente narrativas (Malabarismos, O Diabo, a Pára-Quedista, Etc., Plantas Locais). O espaço cenográfico desaparece por completo, ao mesmo tempo que a escala dos personagens aumenta (por exemplo, A Heroína, herdada de O Capuchinho Vermelho?, de 94; Sem Sombra de Dúvida e Oh Céu de Agosto, afastando-se aqui da estratégia da acumulação e do horror ao vazio), ou que as construções em fragmentos sucessivos se interpenetram com uma crescente complexidade. Entretanto, é também a fórmula da «quadricomia» que é radicalizada, usando, no limite, apenas as cores azul e vermelho, numa prática da pintura que se diverte com a redução dos seus meios sem se autolimitar no poder de questionar o quotidiano com a irrupção do sonho. (Até 25)