Enquanto a Administração de
Serralves dá espectáculo pouco decente, recordo o tempo de João
Fernandes, segundo director (2003-2012) "
"Abrir um caminho contra o isolamento"
Expresso Cartaz de 15-02-2003, pág. 8/9 (o texto foi algo abreviado na versão publicada)
Os objectivos e a estratégia do Museu de Serralves explicados por João Fernandes, continuador do projecto de Vicente Todolí
(estávamos no momento Bacon, um
episódio excêntrico na programação do museu, que não por acaso
propiciou a ida de Todolí para a Tate Britain - sobre esta e outras
exposições que foram sucessos de público, ouvia-se dizer: de vez em
quando é preciso dar um rebuçado. Bacon foi entendida como uma
exposição-rebuçado e foi um episódio muito discutível de integração de
várias obras rejeitadas pelo pintor que então entravam no mercado.)
João
Fernandes sucedeu a Vicente Todolí na direcção do Museu de Arte
Contemporânea de Serralves, depois de com ele ter colaborado desde 1996.
É a continuidade que defende ao definir o seu projecto.
A
expectativa que acolheu Bacon têm a ver com a escassez de nomes
históricos e grandes obras na programação dos museus portugueses, e de
Serralves em particular?
Acho
que não tem a ver com o nome ser mais ou menos histórico. Em Portugal é
muito difícil avaliar quais são os nomes que podem ser considerados
históricos ou conhecidos pela sua própria história.
Bacon não é só mais histórico, é um artista maior.
É
um daqueles nomes universais e inquestionáveis, plenamente afirmado,
que foi objecto de estudos exaustivos e múltiplas exposições. É um
artista que já está feito. O grande desafio é criar um ponto de vista
singular sobre a sua obra. Tomámos a opção de não repetir coisas que já
foram feitas.
O grande desafio é mostrar Bacon em Portugal.
Acho
que não compensa fazer uma exposição para Portugal e só para Portugal.
Trabalhar com um artista como Bacon é também uma questão de afirmação do
museu. É um objectivo do programa deste museu não fazer em Portugal o
que os outros já fizeram lá fora. Podemos associar-nos a outros museus,
mas o que importa não é seguir o modelo de outros, é criar o próprio
museu e com isso conquistar o respeito internacional e uma
singularidade.
O público precisa de ver os artistas que cá nunca foram expostos.
Há
um outro factor a ter em conta. Não é possível de um momento para o
outro resolver todas as lacunas do passado. Serralves pode contribuir
para dar algumas respostas a essas lacunas, mas não pode responder a
todas as omissões do passado institucional português e à inexistência de
um contexto institucional para a arte contemporânea em Portugal durante
grande parte do séc. XX. Isso faz com que, quando programamos o nosso
calendário de exposições, o objectivo não seja olhar para o contexto
internacional e dizer: o que é que vamos agora trazer a Portugal? O que
procuramos, em função dos nossos critérios próprios de actuação, é criar
uma programação heterogénea e diversificada - porque este não é um
museu de tendência, que nunca defenderá que a arte deve ser de uma
determinada maneira… Bacon ou Lissitsky e Mondrian, que mostrámos com A.
Souza-Cardoso, são nomes históricos e afirmados, mas sobre os quais é
possível acrescentar um novo ponto de vista. É essa a ambição do
projecto, porque fazer aquilo que já foi feito em Paris ou Londres, e
bem feito, só para o fazer em Portugal, não se justifica. É possível o
confronto com essas experiências através do livros, da pesquisa e da
informação, e gostariamos que houvesse um contexto à volta, através do
sistema de ensino, das bibliotecas e das várias instituições…
Os livros não se substituem às obras.
Fazer
um museu como Serralves no contexto português não é a mesma coisa que
fazer um museu noutra parte do mundo, e esse é um dilema a que importa
responder com grande oportunidade. Fazer um museu para todo o mundo e
fazer um museu em Portugal são dois factores indissociáveis. Qualquer
coisa que aconteça aqui é dirigida quer ao contexto português quer ao
contexto internacional, em simultâneo, e achamos que não devemos fazer
coisas paternalistas para o contexto português ou coisas apenas
circunscritas ao contexto português. Obviamente que temos em conta o
contexto português na definição da programação, mas é-nos impossível
contar a história do séc. XX aos portugueses desde o início.
Não dá demasiado peso à ideia de projectar Serralves entre os museus de ponta internacionais?
Há
dois objectivos: um é integrar Serralves no contexto dos museus
internacionais que acrescentam pontos de vista sobre a arte do nosso
tempo, outro é afirmar o projecto de um museu de arte contemporânea em
Portugal junto do público português. São objectivos indissociáveis e o
sucesso de um implica o outro. A programação de um museu deve ser
sensível aos contextos, nunca dependente deles. Uma programação não deve
ser fabricada nem para o contexto internacional nem para o contexto
português; afirma-se sendo sensível aos horizontes de recepção, que
devem ser indissociáveis o mais possível, para evitar aquilo que até
agora acontecia - a definição de estratégias apenas para o contexto
português, que contribuíam para o seu isolamento, ou só para o contexto
internacional, contribuindo também para o isolacionismo. As duas coisas
têm de ir a par. Temos uma opção de programação com maior número de
exposições de artistas estrangeiros que portugueses, o que achamos
importante para os situar numa programação e numa colecção
internacional. Se esta lógica fosse invertida, Serralves era mais um
museu nacional, que seria relativizado no contexto internacional,
enquanto assim, pelo menos, cria-se um espaço onde tudo quanto acontece,
e também a arte portuguesa quando acontece, pode vir a ser objecto de
uma atenção que não é filtrada pelo localismo ou pelo nacionalismo. Num
país que esteve tantas vezes isolado, o problema da relação
nacional-internacional coloca-se sempre, é um problema endémico da
cultura portuguesa do séc. XX, mas não se pode ter uma estratégia
proteccionista, que conduziria pura e simplesmente ao isolamento.
Serralves não conseguiu ainda levar exposições de artistas portugueses ao estrangeiro.
Já
conseguiu, com Cabrita Reis, numa produção com o Museu Ludwig, mas por
ser um artista conhecido internacionalmente e não por ser Serralves a
apresentá-lo. O trabalho de um museu, em qualquer parte do mundo, não é a
exportação dos artistas do seu contexto nacional. Deve criar
possibilidades de outros conhecerem e se interessarem pelas suas obras e
poderem vir a trabalhar com eles. Se um director de um museu inglês ou
norte-americano me apresenta um artista pela sua relevância no contexto
nacional, isso não é argumento para o programar em Serralves. As opções
dos museus têm de vir dos seus próprios programadores e não de uma
relação negocial de importação-exportação ou de troca.
Têm-se trocado exposições com vários museus, mas não de portugueses.
Não
fazemos troca pela troca, intercâmbio pelo intercâmbio. O contexto do
intercâmbio cultural é criado por contextos políticos, e nas
programações dos museus isso não existe. Temos de ser respeitados na
nossa programação e respeitamos os outros. O que pretendemos é que, com
as exposições, os catalogos e a visibilidade que damos aos artistas
portugueses, as suas obras tenham condições para serem conhecidos dentro
e fora do pais. Se isso obedecesse a uma estratégia, não resultaria,
porque nenhum museu que se preze programa na base da decisão política ou
da relação inter-institucional.
Alguns
museus espanhóis, de Badajoz e Santiago, têm feito circular mais
artistas portugueses que as instituções nacionais. Serralves dialoga com
um núcleo restrito de museus, mas há outras redes com maior abertura.
Achamos
que uma programação interessante não depende de factores exógenos às
obras dos artistas, e os artistas não se devem afirmar por factores
exógenos. Há muitas exposições de intercâmbio entre embaixadas e
governos, mas nunca é a exploração desses canais institucionais
político-diplomáticos que pode afirmar a obra de um artista ou um
contexto nacional. É claro que há factores geoculturais e geopolíticos
na difusão de determinados artistas do nosso tempo, e o facto de haver
centros políticos e económicos no mundo faz com que também haja centros
artísticos; ao longo da história da arte isso sempre aconteceu. Seria
altamente negativo se um museu estrangeiro programasse um artista
português por um intercâmbio negocial. Portugal foi um país muito
isolado e as pessoas conhecem mal o contexto português, há poucos
coleccionadores de artistas estrangeiros, não há uma rede de museus e
centros de arte que crie uma relação estrutural com o universo da arte
contemporânea, e não é o aparecimento de um museu, mesmo com a projecção
internacional de Serralves, que consegue de um momento para o outro
redimir todo o isolamento do passado, mas estamos a criar condições para
ele deixar de existir. Hoje já é muito mais fácil a um artista de vinte
e tal anos ser convidado para uma exposição internacional do que
aconteceu com gerações anteriores. Há condições para abrir um caminho,
não para impor um caminho.
Falemos
brevemente da colecção. Bacon não foi incluído na exposição «Circa 68»,
que definiu o programa do Museu e o modelo da colecção. Não está no
programa das aquisições?
É
um artista que não faz parte daquilo que assumimos como uma profunda
renovação das linguagens artísticas que ocorre na década de 60; nessa
década Bacon continua uma obra que aparece e se afirma na década de 40. O
programa de aquisições está em grande parte delineado desde a
inauguração. Decidimos começar a colecção a partir de meados da década
de 60 e tomámos a opção de constituir um núcleo histórico que constitua
uma identidade e um ponto de partida da colecção.
Mas é nas décadas de 60 e 70 que Bacon se afirma internacionalmente e são desses anos as suas melhores obras.
Achamos
que é um artista que vem de um contexto de problematização da arte e de
fazer arte que não é característico dessa época, que já vem vem no
passado, se bem que seja uma obra sempre viva, como podemos ver neste
momento. Há muitas obras do passado que gostaríamos de poder ter na
colecção e confesso que a decisão de periodizar a colecção desta maneira
também é decorrente das possibilidades orçamentais que temos. Mas é
também uma leitura sobre a história da arte do séc. XX, obviamente.
Essa
leitura implica a convicção de que houve uma mutação de linguagens que
exclui linguagens como a do Bacon, que continuaram activas, e que são
prosseguidas hoje por outros artistas?
Podemos
expô-los em mostras temporárias, como agora estamos a fazer. Comprar um
quadro do Bacon significa que o nosso orçamento para cinco anos seria
gasto numa só obra. Achamos não é melhor maneira de construir uma
colecção em Portugal.
São
critérios de ordem estética ou financeira? O que chama as novas
linguagens são as mais baratas, são o que resta quando se não pode
comprar mais caro e melhor?
Os
dois convergem, mas não estamos a falar do que resta, estamos a falar
de poder criar novos pontos de vista. Esta colecção não pretende fazer
em Portugal o que outros museus já fizeram. Não estamos interessados em
mais uma caixa Brillo do Andy Warhol ou em repetir o que se passou nos
museus europeus em relação ao impressionismo, em que cada museu local do
centro da Europa tem o seu núcleo impressionista. A ideia é que esta
colecção acrescente um pouco às colecções que já existem.
Que existem lá fora… Há uma fatalidade portuguesa que impede que haja no país um núcleo impressionista ou clássicos do séc. XX?
Será
muito difícil encontrarem-se condições na sociedade portuguesa para
isso. Portugal perdeu a contemporaneidade durante grande parte da sua
história e não tem neste momento contexto económico-financeiro para a
resgatar de um momento para o outro.