Luanda 1938, um olhar desconhecido
É um objecto gráfico imponente e que dificilmente passa 
despercebido. Mas o certo é que passou. A historiografia recente ignorou
 tanto a realização da feira como o Álbum Comemorativo que dela surgiu.
A longa sequência de mais de cem fotografias começa com uma imagem óbvia
 nas inaugurações: uma cerimónia de corta-fita, onde o general Oscar 
Carmona, de farda alva, se destaca com a tesoura na mão. E a fita cai. 
Mas a partir daqui pouco parece encaixar muito bem no Álbum Comemorativo da Exposição-Feira de Angola,
 certame que se realizou em 1938, em Luanda. Como aliás toda história 
(ou a falta dela) desta obra esquecida e muito pouco estudada, que é um 
dos mais surpreendentes e notáveis fotolivros realizados em Portugal na 
primeira metade do século XX.
Pela mão do galerista Alexandre Pomar, que expõe na Pequena Galeria até 19 de Abril, em Lisboa, páginas deste livro publicado pelo Governo Geral de Angola, é
 possível apreciar várias sequências fotográficas da obra, clichés
 creditados a C. Duarte, mas que, segundo Pomar, serão da autoria de 
Firmino Marques da Costa (1911-1992), repórter fotográfico do Diário de Notícias durante 50 anos (A. Sena) e, em acumulação, do Diário Popular,
 membro da Missão Cinegráfica que acompanhou a visita de Carmona às 
colónias e a quem se atribui a autoria principal de cinco outros álbuns 
fotográficos que resultaram desse périplo presidencial (que duraria 
entre 1938 e 1939).
Um dos vários fenómenos à volta deste 
livro (imponente na forma e algo estranho no conteúdo) é a sua quase 
completa omissão em vários campos da historiografia recente, à excepção 
da história da arte voltada para a arquitectura colonial (foi referido 
pela primeira vez, em 1999, pelo arquitecto José Manuel Fernandes num 
capítulo da História da Expansão Portuguesa, e depois por Ana 
Vaz Milheiro, Rui Afonso Santos…), muito por causa das dúvidas sobre se a
 autoria da monumental obra arquitectónica e decorativa realizada na 
exposição-feira deve ser creditada ao “funcionário aduaneiro” Vasco 
Vieira da Costa (1911-1982), que viria a tornar-se num dos mais 
importantes nomes ligados à arquitectura moderna em Angola, autor do 
célebre e já desaparecido Mercado de Kinaxixe, entre outros edifícios 
emblemáticos de Luanda. 
Maria João Teles Grilo, arquitecta angolana que 
conheceu Vieira da Costa, em 1979, manifestou “muitas dúvidas” de que 
este possa ter concebido a maior parte dos pavilhões e construções 
associadas na exposição. Em declarações ao PÚBLICO, revelou que possui 
um desenho do arquitecto feito para a feira com traços modernos, “muito à
 frente para época”, mas que nunca chegou a ser concretizado. Para Teles
 Grilo, co-autora de um estudo exaustivo sobre arquitectura moderna em Angola e Moçambique recentemente publicado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (coordenado por Ana Tostões), é a obra fotográfica do álbum aquilo que mais “comove”.
O
 certo é que quer a literatura que se dedica às grandes exposições do 
Estado Novo (que passa da Exposição Internacional de Paris, em 1937, 
para a Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa), quer a 
historiografia sobre os colonos portugueses em África ignoraram a 
realização da feira e o que ficou dela. Também a história da fotografia 
passou ao lado da publicação deste álbum, que segundo Alexandre Pomar 
deve ter sido feito apenas para ofertas e por isso escassamente 
distribuído.
Filipa Lowndes Vicente, investigadora do Instituto de
 Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado 
ao estudo da produção de conhecimento em contexto colonial, atribui esta
 omissão, entre outras razões, “ao desinteresse a que tem sido votado o 
estudo da fotografia portuguesa”. Esta negligência, diz, “fez com que 
este e muitos outros objectos interessantes e importantes 
historiograficamente não tivessem sido notados”. “Os historiadores 
desprezam o visual e os historiadores de arte muitas vezes desprezam a 
fotografia, por não se encaixar numa historiografia de arte tradicional,
 mais centrada na pintura, na escultura e na arquitectura”. Para a 
investigadora, com obra publicada sobre exposições coloniais na índia 
portuguesa, livros como o Álbum da Exposição-Feira de Angola “são muitas vezes lidos como meras superfícies, que só interessam por aquilo que representam e não enquanto objecto”.
A obscuridade a que foi votado este álbum é tal que nem o estudo pioneiro e exaustivo de António Sena na sua esgotadíssima História da Imagem Fotográfica em Portugal 1939-1997
 (Porto Editora, 1999) lhe faz qualquer referência, apesar de deixar 
notas elogiosas aos álbuns da visita presidencial às colónias, que são 
classificados como “deslumbrantes e imprevistos”. Fascinado com as 
“imagens fugazes” desta última obra, Sena chegou a expor na galeria 
Ether – Vale Tudo Menos Tirar Olhos, em 1987, parte do trabalho de 
Firmino Marques da Costa como fotógrafo da comitiva de Carmona, e conta 
que o repórter só descobriu nessa altura que as suas fotografias tinham 
sido publicado nestes cinco álbuns. O que leva a crer que também não 
soubesse da concretização do Álbum da Exposição-Feira, que terá
 sido publicado pela mesma altura dos cinco álbuns presidenciais (entre 
finais de 1938 e início de 1939). Segundo António Sena, Marques da Costa
 enviou de África os negativos para a Agência Geral das Colónias em 
Lisboa e, a partir daí, perdeu-lhes o rasto.
Para Alexandre Pomar,
 que até 19 de Abril fará visitas guiadas na Pequena Galeria, a 
Exposição-Feira de Angola e o álbum que dela surgiu fazem parte “de uma 
história recalcada pelo regime” de Salazar e “ignorada” pela 
historiografia recente. Para além do testemunho da utilização de 
“programas arquitectónicos e decorativos que ilustram a monumentalidade 
moderna oficial” e a melhor art déco portuguesa, o galerista 
sublinha a importância deste álbum para outros domínios. Áreas que vão 
desde a história político-económica de Angola e a sua relação com o país
 colonizador (existia um complexo contexto político angolano numa década
 marcada por sucessivas medidas administrativas centralizadoras do poder
 na “metrópole”) até às primeiras manifestações públicas da etnografia 
angolana (havia um pavilhão de arte indígena, e pavilhões de várias 
províncias, entre as quais se contavam Luanda, Bié, Benguela, Huíla...).
Um fotolivro ousado
Mas
 o principal destaque vai para a imponência e ousadia fotográfica do 
álbum, que para Alexandre Pomar é “um dos melhores fotolivros 
portugueses (ou angolanos?)”. “Há uma opção de gosto do
 editor. Quem criou este álbum quis fazer um objecto muito particular. 
Existe uma unidade gráfica muito grande”, disse Pomar ao PÚBLICO, 
sublinhando a “estudada sequenciação das imagens”. E dá vários exemplos 
dessas ousadias gráficas, umas mais subtis do que outras, que surgem em 
contraponto com publicações da época, nomeadamente com a exuberância das
 fotomontagens dos álbuns Portugal 1934 e Portugal 1940, ambos editados pelo Secretariado da Propaganda Nacional.
Logo
 na sequência de quatro fotografias da abertura aplica-se um inesperado 
recuo em relação ao sujeito mais importante da reportagem fotográfica 
(Carmona a entrar na feira), para, logo a seguir, voltar a um plano 
aproximado, com o chefe de Estado a chegar de carro ao Pavilhão das 
Missões Católicas. Depois do frenesi inaugural com personalidades 
institucionais e muitas pessoas anónimas (que às vezes surgem de forma 
inesperada no enquadramento), seguem-se dezenas de 
imagens onde a ausência de visitantes é quase permanente. Esta visão 
fantasmagórica de espaços amplos e áridos, sem vivalma, que devem ter 
sido fotografados antes da inauguração, de madrugada (as sombras são 
pouco afirmadas, nota Pomar), resulta de uma intenção clara de 
documentar o espaço e as construções da forma mais límpida possível.
Esta
 quase ausência humana na maior parte das fotografias no álbum serve 
“para perpetuar a exposição que acabou”, afirma Filipa Vicente. “O vazio
 é muito consciente e propositado, para não haver ruído visual nas 
fotografias. Aquilo que aparece mais vincado é o que foi feito e o que 
vai desaparecer, porque as pessoas continuam a existir. Isto permite 
apreender este discurso minimal, onde tudo é claro, visualmente 
límpido.” Para a investigadora do ICS “há plena consciência de que a 
exposição vai acabar, que vai ser tudo destruído”. “Era o destino de 
todas as exposições. E álbuns deste género surgem como a melhor forma de
 perpetuar alguma memória.”
Antes de aparecerem as primeiras 
legendas nas fotografias e identificação dos principais pavilhões, 
Alexandre Pomar sublinha a opção do editor em dar ênfase à “longa 
deambulação do fotógrafo” que acaba por se transformar em “visitante”. 
São 51 fotografias do terceiro capítulo (a maior sequência do álbum), 
onde se privilegia o olhar do fotógrafo para espaços desertos através de
 imagens pontuadas por presenças fugazes e acidentais (trabalhadores a 
dar os últimos retoques?).
A instalação definitiva de luz 
eléctrica em Luanda, em 1938, foi um factor decisivo na realização da 
feira, que esteve aberta entre 15 de Agosto e 18 de Setembro (terá 
recebido 70 mil visitantes). O fotógrafo e o editor do álbum perceberam 
esse marco e não o deixaram passar à margem. No mesmo capítulo, que é 
mais livre no olhar, há uma sequência que produz um efeito de 
pisca-pisca, onde alternam fotografias do espaço de dia e de noite. 
Nestas últimas, o repórter procurou a geometria das linhas iluminadas, 
que riscam a penumbra, e os candeeiros art déco em forma de 
cascata, muito presentes em outras exposições da década, inclusive na 
Exposição Colonial do Porto, de 1934, uma mostra que Alexandre Pomar 
coloca nos antípodas daquilo que se passou em Luanda, pelo seu modelo 
“metropolitano”, marcado pela “conjunção do nacionalismo imperialista e 
do exotismo”. Em Luanda, quis-se uma exposição com “uma orientação 
vincadamente utilitária, procurando mostrar Angola tal como ela é”, 
refere o texto introdutório do álbum. “A Exposição do Porto não é só 
colonial, é colonialista. Nesta [Luanda] não se encontra um grande 
carácter colonialista, historicista ou mesmo de propaganda do império. A
 parte política é pequeníssima. Aliás, há queixas num jornal em Portugal
 por causa da falta de informação acerca da natureza do regime”, é a 
tese defendida pelo galerista.
Aspecto curioso é que o álbum da 
Exposição Colonial do Porto foi executado pela mesma gráfica que viria a
 fazer o álbum da exposição-feira, a Litografia Nacional do Porto. 
Semelhantes no formato oblongo e ambos encapados com um cordão e sem 
cola, o primeiro é, no entanto, de dimensões mais reduzidas e reproduz 
menos fotografias, que foram captadas por Domingos Alvão (1872-1946), 
naquele que terá sido um dos seus últimos trabalhos de fôlego.
No
 quarto capítulo (são cinco no total), as grandes protagonistas são as 
imagens dos interiores, onde uma panóplia de soluções gráficas modernas 
(onde a fotografia também se inclui) revela toda a máquina de propaganda
 do governo colonial ao serviço da exaltação das suas virtudes 
económicas e sociais. Aqui, brilha ainda o mobiliário que se distingue 
pelas linhas art déco e modernas.
No último capítulo, são
 reproduzidas apenas sete fotografias (as cinco secções do livro são de 
extensão muito díspar). Mas há lugar para a surpresa. A primeira imagem é
 desinteressante e mostra a fachada do restaurant-bar, mas logo
 a seguir, uma imagem ao alto abre-se para uma vista ampla sobre um 
espelho de água, naquela que é uma das fotografias mais pessoais do 
álbum (vê-se a mesa e uma cadeira da esplanada e temos a ilusão de estar
 sentados com o fotógrafo, que parece descansar depois de uma empreitada
 fotográfica gigante num prazo que deve ter sido muito curto). Surgem 
depois imagens de festa e baile (três) para, no final, se mostrar a 
apoteose com o rebentamento de fogos-de-artifício na escuridão em 
fotografias soberbamente retocadas (como a maioria ao longo do álbum).
Realizada
 dois anos antes da Exposição do Mundo Português, em Lisboa, a 
Exposição-Feira de Angola não lhe fica atrás em ambição propagandística e
 dimensão de obra construída. Se tínhamos bem presente a imponência 
gráfica de edições como a de Portugal 1940, temos agora o 
contraponto (não menos interessante, bem pelo contrário) a um estilo que
 assentava mais no artifício das imagens do que no seu poder per si.
 Ressalvando que a sua área de especialidade não é o espaço colonial 
africano, Filipa Vicente, conhecedora deste fotolivro há algum tempo, 
afirma que nunca se deparou com nenhuma obra que se assemelhe a este 
álbum.
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